O Governo Federal apresentou recentemente duas propostas com viés econômico que prevêem a extinção do direito de meia-entrada nos cinemas e a taxação de livros. Considerando que, segundo a Constituição Federal, o Estado deve garantir "a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional", além de apoiar e incentivar "a valorização e a difusão das manifestações culturais", o Vida&Arte convidou especialistas em direito e profissionais dos setores culturais para refletir: em que medida essas propostas impactam no direito de acesso à cultura? E o que elas revelam sobre o projeto do governo para a cultura no País?
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"Os dois casos envolvem a difícil relação entre cultura e economia, cujos problemas de uma frequentemente são colocados na responsabilidade da outra, havendo uma tendência de, nessa briga, a cultura levar vantagem aparente e a economia a vantagem real", elabora o professor de Direitos Culturais da Unifor, Humberto Cunha. "No caso da meia-entrada, quando leis que determinam a sua instituição entram em vigor, provocam a duplicação dos ingressos, o que significa que não há vantagem para os supostos beneficiados (que continuam a pagar inteira, agora apelidada de meia) e desvantagem para os demais (que passam a pagar o dobro)", afirma.
A advogada especialista em Economia Criativa e em Gestão e Política Cultural Cecilia Rabêlo reconhece "falta de eficácia" na prática do benefício da meia-entrada nos cinemas, mas vê a extinção como uma saída que não se pauta "no dever estatal de garantia dos direitos culturais". A aprovação, segundo Cecilia, "extinguiria uma política pública que tem potencial de realizar seu objetivo, que é o de tornar os bens culturais mais acessíveis a quem mais precisa. Talvez uma saída possível para corrigir as distorções existentes nessa política seria pautá-la em critérios de renda e implementar uma real fiscalização no uso do benefício", sugere.
No caso da tributação de livros - que são isentos do pagamento de impostos conforme a Constituição Federal e têm, também, isenção prevista em lei de contribuições sociais -, Humberto aponta que a aprovação dela deve provocar "acréscimo real, o que sempre deve ser evitado". "A Constituição determina que o Estado tem deveres de propiciar o acesso aos bens culturais às pessoas que não tenham condições próprias para tanto, mas o faz por meio de normas programáticas, caracterizadas por serem adaptáveis a variados programas de governo, desde que não haja retrocesso, o que deve ser demonstrado por quem almeja fazer mudanças. Assim, essas e outras propostas de alteração somente são aceitáveis se prévia e seguramente ficar demonstrado que não se descerá a patamar de acesso inferior ao atualmente existente", aponta o professor.
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Cecilia reforça que a medida voltada às publicações "tornaria mais caro um bem cultural essencial e afetaria de forma grave um setor (editorial) já bastante fragilizado". "A reforma tributária poderia, ao invés de taxar livros, se propor a, finalmente, efetivar o Imposto sobre Grandes Fortunas, previsto na Constituição Federal (art. 1535, VII) mas nunca implementado até hoje", contrapõe.
Entenda as propostas
A lei que prevê a meia-entrada beneficia estudantes, idosos, pessoas com deficiência e jovens de 15 a 29 anos comprovadamente carentes em espetáculos artístico-culturais e esportivos. A proposta atual refere-se somente ao cinema, já que o que houve foi a abertura de uma consulta pública feita pela Agência Nacional do Cinema sobre a obrigatoriedade legal do benefício. Segundo a Ancine, 80% dos ingressos vendidos em 2019 foram de meia-entrada, um acesso amplo ao benefício que acabaria por elevar o preço médio do ingresso. Para resolver o problema, a agência sugeriu rever regras de meia-entrada, baseando-se em renda, ou extinguir o benefício.
É fruto de uma proposta de reforma tributária do Ministério da Economia enviada ao Congresso Nacional que pretende retirar a isenção das contribuições sociais de PIS e COFINS que o livro tem estabelecida pela lei 10.685/2004. O projeto prevê a criação da Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS), com alíquota de 12%, que seria cobrada dos livros, consequentemente aumentando os gastos de todo o processo da cadeia do setor e resultando em aumento de preço do produto final.