Era 30 janeiro de 1942. Em Berlim, aviões de combate rasgavam o céu no auge da Segunda Guerra Mundial. Em Fortaleza, o que comia de esmola era a chuva: conta-se que chovia forte há dois dias, água muita, e as nuvens pesavam breu. No terceiro dia, irrompendo contra a fúria desmedida de São Pedro, o Sol surgiu — chegou cabreiro, meio amuado, mas enfim o astro-rei.
Passando pelo Centro à caminho da redação do jornal O POVO, entre calçadas molhadas, um repórter demorou-se na Praça do Ferreira e registrou um dos causos mais conhecidos da história do Ceará: a vaia ao sol. "Olhando para o alto e apontando, começaram uma demonstração estrondosa, vaiando o astro vencido e apagado, naquele momento, num grito uníssono de várias bocas. Mas, afinal, o velho Rei das alturas venceu, botando todo corpo vermelho para fora das nuvens e dispersando os vaiadores", grafou à época. O nome do jornalista se perdeu, mas a molecagem do cearense atravessa gerações no estridente "iêêêêêêêêêii!".
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Ao longo do século XX, entretanto, o movimento modernista promoveu uma valorização do popular e o termo "moleque" passou a significar "alegre", "irreverente" — pense num povo invocado, sem frescura, dez ano! Para compreender a construção imagética do cearense como engraçado, contudo, é fundamental abandonar estereótipos e essencialismos. Afinal, por que o cearense é considerado galhofeiro?
"O cearense é um povo forte que criou mecanismos de sobrevivência contra as agruras: o gracejo, a brincadeira, o exagero, o apelidar, a espontaneidade... Nessa irreverência, nesse humor, também tem uma dose de imensa de solidariedade", afirma o jornalista, compositor, produtor e pesquisador de cultura popular Tarcísio Matos.
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"Tem dois matutos, um mora numa casa aqui e outro mora numa casa acolá: se eles forem amigos, eles não passam fome porque o outro dá ou empresta a colherada de café, o quilo de farinha...", pondera. Dedicado há mais de 40 anos a mapear expressões, dizeres e trejeitos do Litoral Norte do Estado ao Cariri, Tarcísio é autor do "Grande Dicionário da Fala Cearense", obra que reúne entre 10 e 12 mil verbetes do mais autêntico cearês. "Uma coisa que me deixa encantado é como o cearense encara a vida de uma forma não cabisbaixa, não entregando o lombo ao açoite das adversidades, mas com muito trabalho, responsabilidade, senso de humor e espiritualidade incomuns", complementa.
Para Tarcísio, o humor se apresenta no comunicar mais corriqueiro e cotidiano do cearense. "A mania de comparação, a metáfora do cearense, por exemplo. Quando o cabra diz assim: 'Meu irmão, ontem eu vi o cabra dançando com a namorada dele e pareciam duas bilas dentro de um prato, imagine!'", convida o produtor cultural. "Esse é um traço único no mundo, muito bem expresso no Chico Anysio, no Tom Cavalcante, no Renato Aragão, no Falcão, mas também em muita gente anônima dentro da família, nos bares, nos estádios, na praia, no açude, na pescaria, na serra, no barco, nos velórios…", complementa. "Cearense não diz 'apressado', diz 'avexado'; cearense não joga fora, 'rebola no mato', cearense não luxa o ombro, ele desmente. Diante das adversidades da natureza e da sociedade, restou ao cearense sobreviver fazendo gracejo até na morte: a visagem, a alma, bora beber o morto. O cearense é uma marmota, uma arrumação! Ô bicho pra falar alto, fazer comparação, botar apelido no povo. É uma forma de resistência", adiciona o pesquisador.
Ator, diretor, produtor cultural e fundador do Teatro da Praia, Carri Costa resgata a vocação ao humor das brenhas do sertão. "Nada tira da minha cabeça, pelas minhas pesquisas e pelo meu entendimento, que essa molecagem genuinamente cearense é sertaneja, sabe? Ela é do sertão porque o sertanejo é aquele que ainda se junta no final da tarde na calçada para um bate-papo com os amigos, falando das revelações e piadas, sempre banhado de riso, graça, jocosidade e sem pejorativismo porque o sertanejo tem a sutileza do frescar".
"Eu acredito que vem daí o que nós somos. De certa forma, após passar o dia inteiro capinando numa terra seca ou plantando, você está junto com seu compadre, com a sua comadre, e diz que o calango passou de cabeça erguida como se tivesse acabado de chover — aí puxa o riso, 'e fulano? E beltrano?'. A gente tem que trabalhar uma autoestima mais fortalecida e tirar proveito de ser considerado a Terra do Humor".
Nas palavras de Carri, "de fato, não existiu essa escola do humor: o que existiu foi realmente um incentivo muito grande do mercado. Quando se abriu esse filão e percebeu-se que isso poderia contribuir economicamente para aquelas pessoas — artistas ou não — que contam piadas muito bem a nível de família, de turma, de rua, houve uma entrada de cabeça dessa galera que precisava aditivar seu orçamento sem nenhum entendimento, sem nenhum estudo, sem nenhuma compreensão do que é o humor. Munidos desse repertório que estava no vocabulário popular, na cearensidade e na oralidade, pegavam piadas que fulano contava e assumiam para si", analisa.
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"Existe uma política de domínio de piadas. Alguns humoristas se apropriam de algumas piadas e fazem dela o seu carro-chefe ou o seu show e outros humoristas preferem não contar porque é uma questão de compromisso ético não assinado". O boom de humoristas descompromissados com a arte de contar piadas gerou uma perigosa consequência: a ridicularização do outro.
"Eu acho que, agora, o humor tem um papel de entretenimento e também uma função de denúncia, de crítica, de sátira. O humor tem que ser reflexo do seu tempo, o humor tem que ser reflexo da sua história, sabe? Nós não podemos querer fazer humor em 2020 como nós fazíamos em 1990. Não cabe mais. A gente tem que ter o entendimento daquilo que nos torna mais humanos e acho que o politicamente correto nos liga à humanidade", finaliza Carri Costa. Acho fundamental", opina o diretor de "Tita e Nic", peça há 22 anos em cartaz.