Relação entre ficção e documentário é inspiração para o cinema brasileiro
João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.
As fronteiras e relações entre documentário e ficção não são novidade, existindo desde a gênese do gênero documental. Mas é possível perceber que, cada vez mais, iniciativas que experimentam a mistura de códigos e elementos factuais e inventados vêm abrindo espaço para a construção de reflexões críticas sobre questões sócio-políticas e pessoais.
"Minha primeira experiência nesse sentido foi no meu primeiro longa, 'Que bom te ver viva' (1989). Acho que naquele momento era uma tendência mundial, só que era uma época que você não tinha internet e eu achei que estava descobrindo a pólvora", ri-se a cineasta Lucia Murat. No filme, depoimentos reais de mulheres torturadas na ditadura são misturados com elementos ficcionais. "Foi por uma necessidade interna de falar sobre tortura, denúncias, mas também sobre a experiência interna daquilo, o que só a ficção podia me dar", explica a cineasta, uma das convidadas do seminário on-line "Na Real_Virtual", onde debaterá o filme "Uma Longa Viagem" (2011), que também se utiliza de elementos dos gêneros.
Na obra a ser debatida, Lucia vê um "espírito documental" forte que se utiliza de elementos ficcionais. "O filme como um todo é um documentário, mas tem a estética ficcional trabalhada através do ator, de projeções", considera. O mais recente lançamento de Lucia, "Ana. Sem Título", também joga com os gêneros cinematográficos ao mostrar a busca empreendida de uma atriz por Ana, uma artista brasileira desconhecida que viveu ditaduras latino-americanas. A obra pode ser vista até hoje, 4, na Mostra de Cinema de São Paulo.
Os limites entre essas fronteiras são o foco de atenção, também, da Mostra Fabulações do Real, com curadoria da produtora Kamilla Medeiros, que debate aspectos distintos de obras selecionadas - entre elas, estão "Partida", de Caco Ciocler; "Filme de domingo", de Lincoln Péricles; e "A falta que me faz" e "Girimunho" de Marília Rocha.
"As fronteiras que se borram entre ficção e documentário são temas discutidos há muito tempo no cinema brasileiro. Às vezes pessoas me perguntavam por que estar falando disso agora, e é porque está tendo uma atualização nesse debate, no fazer, nas formas e temas", aponta a curadora. "'Fabulação no real' é um termo muito poroso. Não tem uma fórmula, mas você percebe as fabulações nos extremos, nos limites, nas bordas. É um jogo. Às vezes, você tenta desvendar o que é real, o que é ficção. Quando se tenta ultrapassar esse limiar, se entra na fabulação", reflete Kamilla.
Entre os debates futuros da mostra, está um sobre as produções do coletivo cearense Alumbramento, que teve na porosidade entre o factual e o ficcional força motora para a criação cinematográfica, como destaca o cineasta Pedro Diógenes. "Fatos e invenções, vida e cinema, arte e cotidiano. Isso tudo tava muito misturado. Nossa vida contaminava muito o nosso fazer cinema e nosso fazer cinema contaminava muito nossa vida", afirma. O caráter de coletivo da produtora e a proximidade das pessoas integrantes, que por vezes moravam juntas ou mesmo na sede, reforça a relação "sempre muito próxima, muito viva e muito borrada" construída.
"A ficção era muitas vezes completamente baseada no que a gente tava vivendo. Um dos primeiros filmes do Alumbramento é o curta 'Sabiaguaba' (de 2006, dirigido por Luiz e Ricardo Pretti),que é eles filmando e inventando o cotidiano de quando moravam no bairro", exemplifica. Nos longas que dirigiu com o coletivo - como "Estrada Para Ythaca", "Os Monstros" e "Com Os Punhos Cerrados" -, Pedro observa "reinvenções" dos contextos nos quais as obras foram criadas, elaborando angústias, inquietações e questões.
O mais recente trabalho de Pedro, o longa "Pajeú", da produtora Marrevolto, nasce como um projeto de documentário sobre o riacho, mas, com o desenvolvimento da pesquisa, incorporou dispositivos de ficção. "A gente queria muito mais ouvir sobre ele, entender a relação dele com a Cidade, do que dizer o que ele é ou contar simplesmente a história dele. Para trazer a relação do Pajeú com as pessoas que moram na Cidade, a gente fez essa escolha de ter uma personagem ficcional que guiasse o filme", contextualiza. Assim, a ficção borra o documentário e o documentário contamina a ficção, como metaforiza o cineasta.
Mostra Fabulações no Real
Quando: quinzenalmente às terças, a partir de 17/11 Onde: debates no YouTube e Facebook do Porto Iracema das Artes. Os filmes debatidos são disponibilizados a partir de inscrição em formulário on-line Mais informações:www.portoiracemadasartes.org.br ou @portoiracemadasartes
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