Origem teatral marca "A Voz Suprema do Blues", novo drama da Netflix
João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.
O espaço e o tempo do filme "A Voz Suprema do Blues" são específicos e pontuais: Chicago, 1927, uma tarde de gravação com a cantora Ma Rainey e sua banda. É a partir desse recorte que o filme, baseado na peça teatral do dramaturgo August Wilson, desenrola questões de raça, gênero, sexualidade e arte a partir dos embates ocorridos no microcosmo do estúdio entre a artista, seus músicos e seus empresários.
Apesar de elementos que possam indicar o contrário - como o próprio título e alguns materiais de divulgação do filme -, "A Voz Suprema do Blues" não é uma cinebiografia de Ma Rainey, artista de sucesso nos primeiros anos do século XX e reverenciada como "a mãe do blues". A peça original na qual o longa é baseado parte de aspectos da vida da cantora, mas adiciona série de personagens e tramas ficcionais.
É por eles que o filme de George C. Wolfe mais profundamente se interessa. Nomeadamente, nos membros da banda de Ma: o trombonista Cutler (Colman Domingo), o pianista Toledo (Glynn Turman) e o contrabaixista Slow Drag (Michael Potts), todos experientes e mais velhos, e o jovem e impetuoso trompista Levee, último papel do ator Chadwick Boseman.
Dono de um talento sem amarras que vem acompanhado de uma segurança que, vez por outra, pode tender à arrogância, o jovem músico traz rupturas e atravessamentos ao contexto da gravação. É a partir de ações e falas dele que embates fortes se desenrolam com os outros músicos, abrindo espaço para que os personagens, a partir do choque de gerações, representem diferentes experiências de homens negros nos Estados Unidos. Mesmo ficcionais, construídos por Wilson no texto da peça, os personagens trazem à obra reflexões bastante reais e contemporâneas.
Retratando essa tarde inventada de uma gravação específica, o longa investe muito tempo nas trocas entre os músicos, que ensaiam antes da cantora chegar, discutem diferentes assuntos entre os intervalos impostos pela artista e chegam a momentos de maior tensão após o encerramento dos trabalhos no estúdio. É por este contexto que a presença de Ma Rainey, a bem da verdade, está longe de comandar o filme.
O espaço da personagem, no todo, acaba diminuto, sem conseguir abarcar a grandeza e a complexidade daquela mulher. Questões relevantes da personalidade e da trajetória dela, como a sexualidade dela e o modo com que lida com os homens brancos a seu redor, são mais pontuais do que desenvolvidas de fato. Viola Davis, ressalte-se, faz o máximo com a personagem quando há espaço, mas Ma acaba apresentada de forma rasa.
De aspectos formais, vale destacar a escolha do filme por manter os recortes temporal e espacial específicos da peça - fato que, em si mesmo, já se conecta de forma bem direta à origem teatral do longa. Pautado em cenas internas - a maioria dos eventos se desenrola entre dois espaços fechados do estúdio de gravação -, o longa é filmado como se fosse desenrolado em um palco. A forte presença de diálogos, de monólogos em meio a estes e os modos de registrá-los reforçam a aposta na influência teatral.
Ao agregar elementos da linguagem do teatro à forma cinematográfica, o longa se destaca por evitar grandes arroubos cinebiográficos, mas tropeça na coesão entre os momentos. Alguns dos mais pautados nas falas, em especial os monólogos contextualizadores dos personagens, criam uma tessitura por vezes sem sutilezas. Há situações pontuais com mais fluidez e precisão emocional, mas, ao fim da sessão, a impressão que fica é que o resultado final de "A Voz Suprema do Blues" é menor do que a soma de suas partes.
Confira trailer
A Voz Suprema do Blues
Já disponível na Netflix
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