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Com abordagem pessoal e reflexões de linguagem, "As Mortes de Dick Johnson" emociona e desafia
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João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.

João Gabriel Tréz arte e cultura

Com abordagem pessoal e reflexões de linguagem, "As Mortes de Dick Johnson" emociona e desafia

|Vida&Arte Viu | Cineasta Kirsten Johnson "antecipa" morte iminente do pai no inventivo e emotivo documentário "As Mortes de Dick Johnson"
Tipo Opinião
Documentário da cineasta Kirsten Johnson sobre a morte do próprio pai enquanto ele ainda está vivo, 'As Mortes de Dick Johnson' é celebração da vida em vida e reflexão sobre escolhas de registro (Foto: Netflix)
Foto: Netflix Documentário da cineasta Kirsten Johnson sobre a morte do próprio pai enquanto ele ainda está vivo, 'As Mortes de Dick Johnson' é celebração da vida em vida e reflexão sobre escolhas de registro

Em uma sequência chave de "As Mortes de Dick Johnson", a diretora Kirsten Johnson assume o que é, potencialmente, a principal motivação para a realização do filme. Imagens de arquivo filmadas pela cineasta surgem na tela, mostrando uma senhora idosa, com dificuldades de locomoção e memória que, entendemos depois, é a mãe de Kirsten. Em dado momento, a diretora informa, numa narração que soa como confissão, que mesmo filmando documentários há quase 30 anos, aquelas imagens eram algumas das únicas que gravara da mãe. "Não tem uma cena da calorosa e brilhante pessoa que ela foi", conclui. A produção, já disponível na Netflix, desponta como uma espécie de prestação de contas não só com o passado, mas também com o futuro. Em "As Mortes de Dick Johnson", a cineasta decide fazer um documentário sobre a morte do pai, um psiquiatra com mais de 80 anos e com indícios primários de senilidade, enquanto ele ainda está vivo.

O ponto de virada é a forma que Kirsten decide fazê-lo. Ao invés de estruturá-lo enquanto um documentário biográfico tradicional, a cineasta inventa diferentes versões de uma inevitável verdade e convida o pai para filmar diferentes possibilidades de morte dele: atingido por algo que cai de um prédio, tropeçando enquanto caminha na rua, sendo surpreendido em cheio no rosto por uma tábua de madeira carregada por um trabalhador de obra. É a partir das invenções e dos bastidores das filmagens delas que a história e as memórias de Dick são desveladas. Enquanto filma as "mortes" do pai, a diretora constrói uma obra que é uma celebração - em vida - da vida dele.

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A partir do jogo entre ficção e realidade, o longa ganha contornos interessantes ao pensar não só a forma fílmica, mas os contratos, oficialmente estabelecidos ou tácitos, entre quem filma e quem é filmado, quem produz e quem assiste. O protagonista é retratado como uma figura extremamente doce, zelosa e carismática, ao mesmo tempo em que o longa não se furta em mostrar, também, os sinais da senilidade despontando. O documentário vai do tom jocoso e imaginativo das mortes inventadas ao envelhecimento implacável registrado de forma dura, mas sem jamais perder a ternura. Em meio às reflexões de linguagem, o espaço do afeto é poderoso e é difícil não se identificar, seja por lembrar-se dos seus anciãos, seja pela reflexão universal da mortalidade. Entre esquecimentos e dificuldades de locomoção, Dick está acima de tudo vivo, implicado e com agência no projeto da filha.

Em uma entrevista ao jornal inglês "The Guardian", Kirsten apontou que uma parte importante do processo foi encontrar o equilíbrio entre o estado alerta e respeitoso por estar filmando uma pessoa com "menos poder" que ela e a abertura para entender que o pai tinha "mais agência" do que ela poderia imaginar. Esse balanço revela complexas escolhas que surgem tensionadas pela cineasta.

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A carreira da diretora é extensa e totalmente dedicada ao cinema documental, com atuação nas áreas de fotografia ou cinegrafia. Há quatro anos, ela chamou atenção com "Cameraperson", documentário no qual divide reflexões pessoais sobre o ofício de registrar imagens. O caráter biográfico e confessional já se demonstrava ali, bem como as reflexões sobre o ato de escolher ou não o que filmar e como essa escolha pode guardar tanta violência e tanta delicadeza em si.

"As Mortes de Dick Johnson" chega enquanto "continuação não oficial" do anterior por estender as discussões, aprofundar a forma e, também, expandir o caráter biográfico e a trama familiar. Se as imagens que compõem "Cameraperson" são uma curadoria diversa em tema daquelas registradas ao longo dos anos de profissão - incluindo espécies de "blocos temáticos" voltados para cenas da mãe, do pai e da família -, a recente produção baseia-se na criação de novas imagens e elaborações para avançar nas aberturas de si, dos seus e das questões pulsantes.

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Entre fatos, invenções e o que mais existir entre eles - como invenções assumidas e fatos escondidos -, o filme progride e alcança a indefinição de fronteiras, um gesto que ganha força conforme a obra começa a entregar elementos que não são facilmente identificáveis enquanto inventados, reais ou, em si, invenções na realidade. Da mesma forma que a sequência descrita na abertura deste texto é central para entender de onde veio o filme, as sequências finais compreendem precisamente em si estes desarranjos - é ver para saber. Dick Johnson está morto, vida longa a Dick Johnson!

As Mortes de Dick Johnson

Documentário de Kirsten Johnson

90 minutos

Já disponível na Netflix

Foto do João Gabriel Tréz

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