"Estamos sempre à procura das nossas grandes crianças. Essas que começámos por ser e que se tornam paulatinamente inacessíveis, como irreais e até proibidas. Crianças que caducaram, partiram, tantas por ofensa, tantas apenas por esquecimento". O trecho do novo livro de Valter Hugo Mãe, "Contra mim", explica os motivos que levam sua mãe - já aos 80 anos - a sempre contar as mesmas histórias do passado. Mas pode justificar também as razões para que a mais recente obra do escritor trate das memórias íntimas da infância. O próprio autor já comenta no texto: "A criança que não regressa é uma falta de saúde do tempo. Uma efermidade que aguarda de qualquer maneira."
A literatura do português costuma percorrer um universo em que as lembranças do leitor e do personagem se entrelaçam. Suas palavras criam um mundo que conecta uma vida ainda embrionária com a maturidade que somente o tempo concede. Esses aspectos estão expostos, por exemplo, no aprendizado de um neto com o avô em "As mais belas coisas do mundo" (2010). Estão presentes nas mudanças da relação da menina Halla com a realidade após a morte da irmã em "A desumanização" (2013). Ainda podem ser encontrados na solidão de Crisóstomo, que sonha em ter um filho e encontra o órfão Camilo em "O filho de mil homens" (2011).
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Esse tema tão recorrente em títulos passados se repete na publicação mais recente pela Biblioteca Azul, selo da editora Globo Livros. Desta vez, porém, Valter Hugo Mãe utiliza recursos autobiográficos. Com uma linguagem que se assemelha às crônicas, transita pelos primeiros anos de sua vida em Portugal. A influência da religião, a convivência familiar com Angola, o sentimento que detinha pelas avós e os interesses amorosos são algumas questões íntimas que aborda. "Mesmo que em obras anteriores de Valter Hugo Mãe a infância seja tema, não se percebe claramente ali o elemento autobiográfico em evidência — já neste livro ele é o mote principal", explica Lucas Lima, editor da Biblioteca Azul.
Segundo o profissional, o livro se diferencia de outros textos biográficos, porque o mais comum neste gênero é encontrar acontecimentos com uma relação de causa e efeito. Ou seja, determinadas situações ocorrem para que outras possam se suceder. "Como se trata de um ficcionista cujo artifício reside na materialidade da palavra, é possível fazer um trajeto oposto, que é o de ver como o escritor já formado compõe os primeiros anos de sua vida no mesmo estilo que seus leitores já conhecem e apreciam", explica.
Além de construir um universo íntimo, também revela as situações sociais e políticas com as quais conviveu. Os marcos históricos do fim do Império Colonial da África, a Revolução dos Cravos, a emergência da cultura brasileira em Portugal e a força da religião católica são tratados de maneira intrínseca aos acontecimentos da vida pessoal. Em seu perfil nas redes sociais, o literato ponderou sobre as memórias de quando era criança: "talvez por ter estado em todas as grandes equações da minha vida, claramente na origem de tanto que usei na ficção, serve hoje para ponderar quem quis ser, quem sou, quem me imagino no futuro que me resta".
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"Estar diante de seus livros é como experimentar uma forma de habitar o mundo com outros sentidos que não aqueles sob os quais fomos educados. A escolha em revisitar a infância, portanto, podemos vê-la como um esforço de sentir novamente os primeiros estímulos como de forma inédita, e ter a chance de nos assombrarmos com as sensações, como se fôssemos pessoas de outros sentidos, ou de novos sentidos", comenta Lucas Lima. De acordo com ele, Valter Hugo Mãe detém um texto em português que trata de temas universais. Talvez por isso tenha se tornado prestigiado também em terras brasileiras.
Para reforçar o vínculo entre Portugal e Brasil, "Contra mim" ganhou prefácio da escritora Nélida Piñon. Autora de livros como "Um dia chegarei a Sagres" (2020) e "A República dos Sonhos" (1984), ela foi uma escolha própria do português. Na introdução, resume o novo livro: "Regalou-nos uma potente memória que se fez nossa. E, enquanto pautava feitos biográficos, desfiou o mistério da criação com a voz profética e imaterial do verbo. Ofertou-nos uma arte que projeta para a grandeza literária".
Contra mim
Ed. Biblioteca Azul
256 páginas
Preço médio: R$ 54,60 (e-book: R$ 39,90)