Logo O POVO+
Surrealista e popular, David Lynch completa 75 anos; especialistas comentam sua obra
Foto de João Gabriel Tréz
clique para exibir bio do colunista

João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.

João Gabriel Tréz arte e cultura

Surrealista e popular, David Lynch completa 75 anos; especialistas comentam sua obra

Conhecido pela autoralidade, abordagens oníricas e surrealistas e jogos com artifícios de gêneros, diretor e roteirista David Lynch completa 75 anos
Tipo Notícia
David Lynch começou a carreira no cinema no fim dos anos 1960. Hoje, acumula fãs, prêmios e reconhecimento da crítica (Foto: divulgação)
Foto: divulgação David Lynch começou a carreira no cinema no fim dos anos 1960. Hoje, acumula fãs, prêmios e reconhecimento da crítica

Registra-se que a crítica de cinema Pauline Kael (1919-2001) definiu o cineasta David Lynch em determinada ocasião como “o primeiro surrealista popular”. O “título” traz características centrais do artista, cuja trajetória passa por artes visuais, cinema, TV e música. Para marcar os 75 anos de Lynch, completados nesta quarta, 20, o V&A destrincha com especialistas os impactos narrativos, estéticos e formais do cineasta na linguagem audiovisual.

O início da carreira dele se deu nos anos 1960, primeiro com a pintura, mas logo passou a produzir curtas. Neles, onde “o cineasta se sente mais livre para explorar e experimentar formas, é muito comum o uso de efeitos de animação”, aponta a pesquisadora e cineasta Beatriz Saldanha. Em diálogo, a professora da Pós-Graduação em Comunicação e de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Mato Grosso Letícia Capanema ressalta que, ali, aspectos centrais da autoria de Lynch já eram perceptíveis.

Leia também | Visite o ateliê e conheça a obra da figurinista Ruth Aragão

“Em seus primeiros curtas, o cineasta apresenta forte traço experimental misturando pintura e colagem a técnicas cinematográficas em enredos insólitos e com desenhos sonoros igualmente perturbadores”, descreve. “Sua atuação como multiartista é marcada pelo estranhamento, pelo tom perturbadoramente onírico e por um humor insólito que atravessam suas produções no campo da pintura, da música, do cinema e da televisão”, avança a professora.

Beatriz destaca a atmosfera como elemento definidor do cinema lynchiano. “Uma espécie de ambientação muito particular que reforça uma ideia de mundo possível. É uma atmosfera de estranheza, uma sensação de absoluto desamparo e uma impressão generalizada de não-pertencimento”, afirma. Entre aspectos recorrentes, Letícia cita a mistura entre gêneros, inspirações na pintura surrealista e expressionista, as “construções em abismo” e “duplicações e recursos metarreflexivos".

Leia também | O que pode um cinema no interior?

O caráter autoral de David Lynch se consolidou a partir das experimentações empreendidas pelo cineasta. “Império dos Sonhos” (2006), último longa lançado por ele, é fruto de investigações em vídeo digital feitas no início dos anos 2000 - período, lembra Beatriz, em que cineastas ainda eram reticentes com a nova tecnologia. O longa foi filmado com uma câmera digital de baixa resolução e aposta em distorções de imagem. “Ele abraçou a novidade com muita empolgação pois aquilo lhe dava mais possibilidade de experimentação”, avalia.

Outro exemplo é o universo de “Twin Peaks”, série criada em parceria com o escritor Mark Frost e lançada pela ABC em 1990. O assassinato da jovem Laura Palmer leva um agente especial do FBI, Dale Cooper, a investigar segredos da cidade fictícia da trama. “Ela ditou os rumos da narrativa televisiva, misturando características da soap opera com investigação, mistério e doses de neosurrealismo”, define Beatriz. “Lynch introduz a ambiguidade e a bizarrice na televisão ao abrir as portas dos subterrâneos da América, onde o pacato e o familiar andam lado a lado com o insólito e o sombrio”, acrescenta Letícia.

Leia também | Zendaya, Pelé e "Para Todos Os Garotos": novidades que chegam ao catálogo da Netflix em fevereiro

A obra conquistou público e crítica, mas na segunda temporada, em 1991, sofreu pressões de executivos e queda de audiência até ser cancelada. Mesmo assim, destaca-se como uma das pioneiras nas “estratégias de expansão narrativa e de transmidiação”, aponta Letícia. Além da obra televisiva, a trama foi alargada em livros como “O diário de Laura Palmer” e “Autobiografia do agente especial do F.B.I. Dale Cooper: Minha Vida, Minhas Fitas” e no filme “Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer” (1992).

Angariando fãs ao longo das décadas, a série foi retomada em 2017 pelo canal Showtime, tendo distribuição mundial na Netflix. “Twin Peaks: O Retorno” retorceu expectativas e deu novos contornos à trama original. Além disso, foi central nas discussões sobre limites entre TV e cinema. Os dois primeiros episódios foram exibidos no Festival de Cannes, Lynch definiu a série como “um filme em 18 partes” e publicações especializadas elencaram a obra nas listas de “melhores filmes” daquele ano.

Leia também | Filme "Unidas pela Esperança" convoca à vida por meio da música

“Isso é mais um sintoma de que as linhas que separam um produto feito para o cinema e para a televisão estão cada vez mais tênues. Lynch, como diretor de cinema reconhecido e premiado, acaba borrando ainda mais esses limites”, avalia Beatriz. “A terceira temporada surpreende pela capacidade de reinventar a cultura audiovisual, se apresenta como uma obra pós-televisiva e pós-cinematográfica”, acrescenta Letícia.

Atualmente, entre boatos sobre uma quarta temporada de “Twin Peaks” e uma nova série da Netflix, o artista se dedica ao canal do YouTube “David Lynch Theater”, onde posta vídeos diários de duas “séries”: “Today’s number is…” (“O número de hoje é…”), na qual sorteia bolas numeradas em um jarro, e “David Lynch’s Weather Report” (“Previsão do tempo de David Lynch”), onde divide boletins meteorológicos e reflexões. Pode soar aleatório e talvez o seja, mas não deixa de estar em consonância com a abordagem lynchiana. “O segredo para fruir a obra do Lynch não está numa tentativa de compreensão formal da narrativa. Seu cinema é feito principalmente de sensações”, sugere Beatriz.

Onde assistir

Apesar das obras mais célebres de David Lynch não estarem disponíveis em plataformas de streaming - não é possível encontrar “Cidade dos Sonhos” em nenhum serviço e somente a terceira temporada de “Twin Peaks” está na Netflix -, é possível acessar um rico escopo da filmografia do cineasta.

Eraserhead (1977)

Longa de estreia do diretor, “Eraserhead” apresenta uma trama de terror protagonizada por um homem que leva uma vida apática que é afetada pela chegada de uma antiga namorada e um filho recém-nascido.

Disponível no Telecine Play

Duna (1984)

Baseado no romance de ficção científica de Frank Herbert, a obra foi um blockbuster, custando U$ 40 milhões. No entanto, foi considerada um fracasso comercial. No futuro, um duque e sua família são mandados por um imperador para um planeta árido. O filho do duque escapa e procura vingança. Um remake do filme está previsto para este ano.

Disponível no Telecine e no Prime Video

Estrada Perdida (1997)

Obra menos referenciada na filmografia de Lynch, traz uma trama de mistério e suspense ao seguir uma história na qual vídeos anônimos preveem que um músico será condenado por assassinato.

Disponível no Telecine

Império dos Sonhos (2006)

O último longa dirigido por Lynch leva a novos níveis características centrais da produção do cineasta. Laura Dern interpreta uma atriz que passa a adotar a personalidade da personagem que interpreta em um filme.

Disponível no Belas Artes à La Carte

What Did Jack Do? (2017)

Curta-metragem que mostra um detetive de homicídios conduzindo um interrogatório com um macaco que é suspeito de assassinato. Foi disponibilizado em 2020 no catálogo da Netflix, plataforma que deve bancar nova produção do cineasta

Disponível na Netflix

Foto do João Gabriel Tréz

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?