"É a vida, mais do que a morte, que não tem limites", versou o escritor colombiano Gabriel García Márquez no livro "O amor nos tempos do cólera" (1985). Filho de pai catarinense e mãe pernambucana, o carioca Luiz Antonio Simas é afeito ao viver de corpo e língua, de fé e futebol. Historiador, professor, escritor, cronista de causos e babalaô no culto de Ifá, Simas é autor de obras como "Pedrinhas miudinhas: ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros" (2013), "Dicionário da História Social do Samba" (2015), "Almanaque Brasilidades" (2018), "O corpo encantado das ruas" (2019) e "Encantamento: sobre política de vida" (2020).
Cartógrafo de ruas, festejos e sons de tambores, Simas é um dos mais renomados pesquisadores brasileiros de samba. Como quem morde a vida e enche a boca, o também sambista aposta no Carnaval como transgressora, subversiva e, sobretudo, política.
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O POVO: O que o Carnaval nos revela sobre a construção sociocultural brasileira?
Luiz Antonio Simas: O Carnaval, na minha percepção, revela sobre a formação social brasileira duas coisas que eu considero fundamentais: uma delas é que essa formação se estabelece como um campo de disputas. Se a gente estudar a história do Carnaval, a gente vai ver que ela é muito marcada por tensões, sobretudo no século XIX na virada para o século XX, entre um Carnaval que se pretendia elitista — o Carnaval dos salões, das grandes sociedades, das batalhas de confete elegantérrimas — e um Carnaval marcado pela rua — o Carnaval das turmas de bate bola, dos blocos de frevo, dos blocos de arenga ou blocos de briga, dos cordões, um Carnaval eminentemente popular. A relação entre essas duas concepções de Carnaval sempre foi muito tensa. Hoje, em larga medida, a gente ainda tem isso com a disputa entre um Carnaval visto por uma lógica exclusivamente empresarial, como a lógica do negócio, e outras manifestações de Carnaval com um perfil mais orgânico, um perfil que não foi engolido ainda pelo mercado. A disputa é uma marca profunda do Carnaval brasileiro e da nossa formação social. O outro elemento fundamental é que, num País em que as instituições estão fechadas a maior parte do tempo à participação do subalternizados por nossa experiência histórica, as festas são espaços de exercício de sociabilidades, de criação de redes de proteção social, de construção de identidade comunitária. O Carnaval também é esse elemento. O Carnaval, pra mim, está inserido no que eu chamo de cultura fresta, aquelas culturas que à margem das instituições conseguem reconstruir os seus modos de vida num País de formação muito elitista.
OP: Um forte imaginário reduz o Carnaval ao lugar da alienação, dos escapismos. Você defende, contudo, que o Carnaval é a menos alienada das nossas festas. Por quê? O que politiza o festejo?
Simas: O Carnaval é uma festa política porque os tensionamentos do Carnaval são os tensionamentos da história do Brasil, são os tensionamentos da política brasileira — o Carnaval é um campo de manifestação dessas perspectivas. Se a gente estuda, por exemplo, os Carnavais do século XIX, da década de 1880, através da sátira e da carnavalização a questão da abolição da escravatura estava colocada de uma forma muito intensa. Se a gente estuda os Carnavais da virada da década de 1980, são Carnavais marcados pela perspectiva da carnavalização do fim da ditadura militar e pelo clamor da redemocratização. Quando o Cordão da Bola Preta desfila no Rio de Janeiro na Avenida Rio Branco, é um peso simbólico muito grande lembrar que a Rio Branco foi construída com uma perspectiva elitista, foi construída para ser um boulevard parisiense cortando o centro da cidade do Rio. Quando ela é tomada por um bloco popular, há uma dimensão política nisso muito evidente. O Carnaval é uma festa que aponta nossas contradições, aponta nossas tensões, aponta nossas criações de alternativas para viver à margem das instituições e tudo isso é político. O Carnaval não tem nada de alienado, o Carnaval é uma festa política.
OP: O Carnaval borda relações com a rua, vivencia-se no espaço público. A pandemia de Covid-19, no entanto, nos exigiu isolamento. Em sua leitura, como será o primeiro Carnaval pós-pandemia? Como reviver o encantamento com a rua?
Simas: Esse negócio de profetizar é complicado, mas eu tenho esperança que o próximo Carnaval seja um Carnaval de uma intensidade muito grande. Eu tenho a impressão que a cultura, de uma forma geral, sempre foi vista com muito desleixo no Brasil — inclusive, evidentemente, pelas esferas públicas — ou então foi vista como um bibelô. A pandemia repercutiu fortemente com o encolhimento do setor da economia criativa, da economia cultural, então me parece que tudo isso faz com que haja um clamor pela cultura muito grande; e eu gosto de inserir o Carnaval nessa perspectiva. Além disso, a gente está passando por um momento muito difícil no Brasil com o obscurantismo avançando e o Carnaval ele sempre caracterizou também, em uma das suas múltiplas facetas, por um perfil transgressor, a festa da transgressão. É a transgressão que permite lidar com os perrengues, com as dificuldades... Neste momento, não ter esse espaço de transgressão é evidentemente traumático. Eu acho que há um desejo represado que, quando for solto, vai se manifestar com muita intensidade. O carnaval de 1919 foi o Carnaval em que a gripe espanhola ainda estava contaminando gente, mas já apontava uma diminuição da epidemia, foi de uma efusão impressionante. Foi um Carnaval que flertou diretamente com a ameaça da morte que pairava sobre todo mundo e isso deu a esse Carnaval um impacto violentíssimo. Eu prevejo um Carnaval de muita efusão, acho que o próximo Carnaval vai ser um Carnaval transgressor, um Carnaval da subversão, um Carnaval da festa mesmo, da manifestação de um desejo enorme de vida diante dessa morte concreta e simbólica que vem nos acometendo.
OP: Na obra "Encantamento: sobre política de vida", escrita em parceria com Luiz Rufino, vocês defendem o encantamento como "ato de desobediência, transgressão, invenção e reconexão". O Carnaval é essa afirmação da vida?
Simas: Eu sempre gosto de trabalhar com certas percepções de mundo que vêm dos terreiros, que vêm das culturas originais, que vêm das culturas africanas que se redefinem no Brasil... E eu sempre gosto de falar que a dicotomia não é entre a vida e a morte: a dicotomia é entre vida e a não vida, a dicotomia é entre o encantado e o desencantado. Essa não vida vem nos acometendo. Eu não penso a não vida como um fenômeno de ordem fisiológica, ligado ao campo da biologia. A não vida, na verdade, é um esvaziamento do sentido do ser. Eu estou respirando, você está respirando, mas isso não significa que a gente tenha vida. Penso a vida nessa dimensão de completude do ser, de um ser que se completa até no seu inacabamento, e na perspectiva de afirmação de uma vontade de viver, de uma vontade de dançar, de uma vontade de comemorar. Não é só o "penso, logo existo" — eu danço, logo existo; eu bato tambor, logo existo; eu entro em transe, logo existo; brinco, logo existo, é essa existência multifacetada. O carnaval é uma afirmação da vida diante da não vida, é nesse sentido que acho que é uma festa vital . Vital é aquilo que é necessário para que haja vida e o Carnaval, na minha perspectiva, é isso.
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