Na noite de 19 de março de 1870, há 151 anos, o paulista Antônio Carlos Gomes (1836-1896) consagrou-se o primeiro compositor brasileiro a ser reconhecido no cenário musical internacional com a estreia da ópera "Il Guarany" no Teatro alla Scala em Milão, na Itália. Sob aplausos do público, a soprano Maria Sass e o tenor Giuseppe Villani interpretaram a portuguesa Ceci e o indígena Peri, casal protagonista do romance histórico "O Guarani" (1857) do escritor cearense José de Alencar. Tema de abertura do programa de rádio A Voz do Brasil, herança autoritária do governo getulista, "Il Guarany" é obra fundamental na construção do imaginário de nação — perpetuado até hoje na historiografia oficial. Mas que Brasil se construiu às margens das salas de espetáculo, longe dos interesses políticos imperiais?
Os grupos cearenses Teatro Máquina e No barraco da Constância tem!, instigados pela produção simbólica do "ser brasileiro" nas obras de Alencar e Gomes, reúnem-se no projeto "Resumo da ópera" para inventar um novo Guarani. A montagem prevê múltiplos formatos cênicos: o espetacular, que será realizado nos espaços do Theatro José de Alencar; o teleteatro, contendo registros do espetáculo filmado a ser exibido na TV Ceará; e a série televisiva em formato de lives gravadas durante o processo de montagem. O Vida&Arte inicia hoje a cobertura completa da pesquisa, criação e divulgação da obra ao longo dos próximos meses.
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"A primeira coisa que tivemos em vista quando resolvemos embarcar nesse projeto não foi realizar uma releitura propriamente dita de 'Il Guarany', de Carlos Gomes, mas criar algo a partir da percepção de que, mesmo passados mais de 150 anos da estreia desse espetáculo, alguns paradigmas apresentados na obra ainda são determinantes no imaginário de milhões de brasileiros", pontua o ator e diretor Honório Félix, que dirige o espetáculo.
"Isso se dá porque a arquitetura desta nação foi muito bem projetada e introjetada. A memória que temos de Brasil foi uma memória inventada e propagada aos montes; financiada pela corte portuguesa para apaziguar os levantes que se fortaleciam contra a coroa; criada pelo interesse de estabelecer o Estado. Então, se esse Brasil-simbólico foi desenvolvido a partir dos interesses políticos de um Império, precisamos desconfiar urgentemente de como ele foi construído e de como ele perpetua até hoje".
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"Resumo da ópera", portanto, propõe um outro olhar sobre a gênese social. "Se o 'ser brasileiro' não foi refletido ou tampouco criado pelo seu povo, o que é então 'ser brasileiro' e o que o Brasil? O que é 'ser brasileiro' se nesse 'ser' não houve espaço para a multiplicidade presente nesse território, para os diversos modos de organização e de vida que aqui haviam? Se a gente resolvesse dinamitar essa construção, o que aconteceria?", continua Honório.
"É nesse sentido que a ópera de Carlos Gomes está para nós: como um start para pensar nisso tudo e, a partir de então, começar a tecer, no campo da ficção, outras arquiteturas possíveis para uma outra ópera nova. Sabendo que ópera tem o mesmo significado de obra, e entendendo esse País como uma construção, decidimos que o nosso jogo seria o de trabalharmos como operários nesse canteiro", complementa.
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No processo de pesquisa para a criação das obras cênicas e televisivas, os grupos teatrais traçam conversações sobre a população indígena do Ceará com a Cacique Pequena e outros povos originários do Estado. O historiador Airton de Farias também integra a consultoria do projeto. Em cena, oito pessoas: Felipe Damasceno, Renan Capivara, Sarah Nastroyanni e William Pereira Monte do No barraco da Constância tem!; e Ana Luiza Rios, Levy Mota, Loreta Dialla e Márcio Medeiros do Teatro Máquina.
Os ensaios acontecem online neste momento devido à pandemia de Covid-19, mas a ideia é estrear o espetáculo presencialmente no Theatro José de Alencar conforme a possibilidade. "Nós temos movimento, música, atuação, texto falado. Esse é o desafio. Tudo é um abismo de incerteza. Porém, ao mesmo tempo, há um prazer imenso em redescobrir as possibilidades de fazer teatro dessa forma", finaliza Honório.
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Integrante do Teatro Máquina, a atriz, performer e pesquisadora Loreta Dialla destaca a experiência metodológica entre os dois grupos nos palcos e na televisão, onde uma outra obra se cria nas diferenças de linguagens e suportes. "É a primeira vez que os dois grupos trabalham juntos, então é um processo também de dividir metodologias de trabalho e criar outras, criar modos de trabalho do Teatro Máquina com o No barraco da Constância tem!. São grupos que têm muitas afinidades, mas também têm trajetórias muito específicas. A criação artística é sempre um desafio, é sempre um lugar de muito riscos e de muitas descobertas. Nós olhamos para o romance e a ópera de Carlos Gomes como pontos disparadores para abrir um leque de questões e possibilidades com os nossos interesses artísticos", destaca.
"Nós estamos interessados em investigar como a ópera se impõe sobre a criação da sociedade", continua Loreta. Para os grupos, é importante habitar o Theatro José de Alencar pela possibilidade de revisitar do patrimônio e compreender o que está sedimentado na sua condição de casa de espetáculos. O resgate dos teleteatros na TV Ceará também integram a cartografia desse processo a ser partilhado com o público. "Nós estamos interessados nos lugares de tensões, de explorar fronteiras, de encontrar radicalidade no fazer artístico", encerra a atriz.
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"O Guarani" na história do Brasil
O POVO: Qual era o contexto social à época da publicação de "O Guarani" por José de Alencar?
Marcos Felipe Vicente: É importante lembrar que o Império brasileiro era bem recente no século XIX. Depois da independência, o Brasil passou por um período bastante conflituoso que envolveu todo o período regencial. Somente a partir do Segundo Reinado é que o País começa a encontrar uma certa estabilidade política. Estabelecido o campo político, surgia uma outra preocupação, que era construir uma identidade para o Brasil, formar uma identidade nacional. O próprio sentimento nacionalista começava a se fortalecer bastante em toda a Europa, mas o Brasil que acabara de nascer ainda não tinha uma cara própria, ainda era visto como uma ex-colônia portuguesa — e precisava se colocar dentro desse cenário internacional como uma nação do ponto de vista identitário e cultural. São fundadas, então, academias de arte e de letras; o grande tema norteador de todas essas discussões eram essa identidade nacional. Dentro da literatura, principalmente a partir das obras de José de Alencar, surge o indianismo como linha mestre da construção identitária. Era preciso buscar o que o Brasil tinha de diferente, que era justamente a presença indígena. O discurso do indianismo surge pautado, principalmente, na questão da miscigenação na construção dessa identidade nacional brasileira.
OP: "Il Guarany", de Carlos Gomes, fez parte dessa construção identitária brasileira? É importante revisitarmos os discursos dessas obras sobre os povos originários?
Marcos: Sim, foi bastante importante porque foi a primeira obra genuinamente brasileira a ter destaque dentro de um cenário internacional. Até aquele momento, o Brasil era apenas um consumidor da arte vinda da Europa. "Il Guarany", de Carlos Gomes, conseguiu atribuir uma cara nova na temática e no estilo da ópera, apesar das muitas influências italianas. Esse ar pitoresco fez bastante sucesso na Europa, inclusive a obra foi escrita em italiano e somente depois de muito tempo é que foi traduzida para o português. É importante interpretar os intelectuais dentro dos contextos em que eles produziram. Mas, ao se fazer essa leitura hoje sobre a obra, nós também não podemos deixar de fazer as críticas do presente a essa produção. Não é desmerecê-la, mas saber justamente contextualizá-la para que a gente possa saber em que esse discurso se amparava.
Marcos Felipe Vicente é historiador e professor.
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