Grafar o nome completo e fazer-se gente no traço da letra eram a tarefa de Raimundo Gaudêncio de Freitas, portador de uma carta amorosa cujo conteúdo não se conhece. Em “A palavra que resta” (Cia das Letras), romance de estreia do cearense Stênio Gardel, a trama, dividida entre passado e presente, se costura com lacunas e fios soltos que se atam numa história poderosa sobre amor, violência, negação e capacidade de fabular outros mundos.
“Esticador de horizontes, a professora Ana explicou que na poesia uma palavra diz muito mais do que diz, é a palavra que se estica então”, conta o personagem Raimundo, que apenas tardiamente resolve aprender a ler e a escrever. Deseja-o por uma razão: alargar a vida e tatear o corpo da carta que carrega a todo canto desde a juventude, quando, aos 19 anos, deixou o sertão e a casa paterna, negado pela família por viver a paixão com Cícero, amigo da infância e remetente da missiva.
E Raimundo o vive. Furtivamente, à beira do rio, no areal à sombra, ao lado de onde se ergue uma cruz de madeira fincada sem nome nem data. O idílio se finda, porém. Subjugado, Raimundo evade-se, tangido pela mãe. Antes, recebe uma carta de Cícero, e não a lê porque não sabe. Leva-a consigo como se conservasse nela o próprio amante.
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O mais na história de “A palavra que resta” é a luta de Raimundo com lembranças, encruzilhadas, perguntas sobre onde estará Cícero, o que fez da vida, que caminhos trilhou, tudo formulado precariamente dentro de uma sintaxe atravessada pela oralidade que se alarga à medida que aprende aos bocados nas aulas para adultos – daí a epígrafe de Drummond: “São muitas, eu pouco”.
E a carta ao lado, mantida intacta, não lida sequer por irmã ou amiga. Nem por Suzzanný, uma trans com quem esbarra e a quem açoita, para depois se renderem a forte amizade, constituindo em torno dessa relação um polo de resistência no qual Raimundo terá forças para se reconhecer como é de fato, sem a necessidade de mascaramento e de se infligir suplícios.
Objeto de adoração e cultivo que atravessa o tempo, a carta é o único elo entre o Raimundo de agora, aos 71 anos, prestes a se letrar e voltar à cidade de onde tinha escapado, e aquele antigo, jovem arredio que se lançou em procura de destino diferente daquele que reservavam aos de seu tipo, feito o tio Dalberto – “gente torta, povo imundo”, as palavras do pai cortando mesmo depois de décadas.
“Uma carta-personagem”, brinca Stênio em conversa com O POVO na última sexta-feira, 16. Servidor do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-CE), o cearense de Limoeiro do Norte deu forma à história enquanto participava dos ateliês de narrativa da escritora Socorro Acioli (“A cabeça do santo”), entre 2016 e 2017.
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“A ideia do Raimundo surgiu da junção de duas imagens, uma imagem vivida e uma imagem fictícia. Durante uma parte do meu trabalho, atendi muitos eleitores. Alguns desses eleitores não sabiam ler e escrever em idade já avançada”, conta o autor.
“Todos de alguma forma me marcaram”, revela Stênio, “talvez por achar que ali, naquele momento, um pedaço da vida dessas pessoas estava passando na frente delas, detalhes que não permitiram que frequentassem educação formal”.
Dessa junção entre experiência e invenção resulta a carta-enigma, diante da qual Raimundo se posta, revira-a, mas não a devassa porque a mensagem do passado, aquela escrita de próprio punho por Cícero, também ele enredado em violência, habita um mundo que lhe é vedado.
Este é apenas um dos interditos de que trata “A palavra que resta”: a vida cindida entre letrados e iletrados, o impedimento afetivo e as dificuldades, a pobreza e marginalidade como legados.
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Há outros no romance, contudo, como o interdito amoroso, sexual, reprodutor de repressão física e simbólica, que se replica mesmo nas condutas dos violentados. De modo que a aquisição de capacidade de leitura é também autodefesa, maneira de “esticar o horizonte” e assegurar que Raimundo possa viver à revelia dos olhares tortos e de gestos de censura.
Marcada pela oralidade, a obra é uma lavoura do sertão, de suas falas e hábitos, expondo um cotidiano de crueza e brutalidade fora da gramática literária e das representações já assentadas desse espaço ficcional, nas quais se sobressaem figuras como a do jagunço e do fazendeiro. É também trabalho delicado de elaboração de linguagem.
“Acho que a gente pensa mais perto da fala do que da escrita”, explica Stênio a propósito da matéria-prima para a confecção das vozes que povoam “A palavra que resta”. Agora decifrador e leitor, Raimundo pode finalmente ler o que diz a escrita da carta e o que falam os seus silêncios cinquenta anos depois.
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A Palavra que resta
De Stênio Gardel
Editora: Companhia das Letras
160 páginas
Quanto: R$ 54,90 (E-book R$ 34,90)