Na Fortaleza dos anos 1990, entre dias mornos que passam até mais devagar, Florice Raposo irrompeu a algazarra dos quatro filhos e o alarido cessou perante o desconhecido: no embrulho carregado pela mãe, um bilhete de viagem por terras até então inexploradas — um videocassete. "Numa família de classe média — que, por sorte, sempre teve de comer, mas com todas as dificuldades de uma mãe solo —, alugar uma fita era sempre uma coisa muito especial. Eu passava horas escolhendo o material que veria", relembra Frederico Raposo. Ator, diretor teatral, preparador de elenco, intérprete-criador e educador cearense formado na Argentina, Fred encantou-se pela arte durante a infância, perdido nas locadoras e com olhos ávidos pelo circo que circundava a cidade. "A minha relação com a arte sempre foi como um presente. Era tão difícil eu ter acesso a alguma coisa que, cada vez que ia ver algo, eu me entregava por completo".
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Aos nove anos, Fred conheceu o circo tão desejado e se apaixonou pela menor máscara do mundo, o nariz de palhaço. "Na infância, a arte entrou na minha vida como um pequeno bombom, valioso e precioso", partilha. No mês de maio, data de provável reabertura das casas de espetáculos argentinas, o cearense estreará na Sala Martin Coronado, a maior das três salas do Teatro General San Martin — um dos mais importantes templos das artes cênicas na Argentina. "É o teatro onde atuam todos os grandes atores, grandes peças e grandes diretores argentinos. Como não sou ator argentino, sempre visitei o teatro e achei lindo, mas não esperava estar como intérprete. Agora vai acontecer", comemora Fred. O artista integra o elenco do espetáculo "Fuck me", com direção de Marina Otero.
O reconhecimento é fruto de uma vida dedicada à arte. Acolhido numa família de professores e intelectuais em Fortaleza, Fred ingressou na graduação em História da Universidade Federal do Ceará (UFC). Nos idos de 2010, entretanto, o então estudante do oitavo semestre cambiou seus caminhos com a velocidade que props se alternam nas mãos de malabaristas: Fred maravilhou-se pela palhaçaria ao assistir o espetáculo "De risa en risa" que o clown mexicano Aziz Gual performava em comemoração ao centenário do Theatro José de Alencar. "Meu encontro com o teatro se deu como espectador, um espectador que estava só esperando o empurrãozinho para pular na piscina. Não pensei duas vezes, logo percebi que precisava abandonar a faculdade porque ser palhaço era o que eu realmente queria. Mas ter cursado História é algo fundamental até hoje no meu trabalho, eu não consigo fazer nenhum trabalho sem ter uma investigação histórica por trás", pontua.
Corpo afeito ao movimento, Fred encontrou nas ruas de Fortaleza a primeira escola teatral — com fome de vida, engoliu cada riso frouxo do cotidiano e transformou em arte. "Eu acho que a rua foi muito importante para abrir meu corpo, para que eu percebesse a necessidade de uma energia extra cotidiana. A rua apresenta uma necessidade de sobrevivência, o que também está muito arraigado na raiz da comédia. É parte fundamental do trabalho do cômico entender o trabalho de rua, entender que ele necessita de uma energia grande para chamar a atenção do público. Essa energia, quando é levada ao palco e bem administrada, acolhida e praticada ao longo de anos, é uma ferramenta a mais em relação ao ator que só foi formado em palco. A ideia de trabalhar redondo, em 360º, a ideia da intempérie, do bêbado, do policial… A rua é uma grande escola. A rua é fundamental para aprender a defender o seu trabalho".
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Na Buenos Aires de 2010, o brasileiro aportou feito embarcação errante seduzida pelo mar. "Os portenhos chamam Buenos Aires de 'A cidade da fúria'. É uma cidade que vai muito bem com a minha personalidade, eu sou uma pessoa que está sempre de lá pra cá e a capital impõe essa velocidade aos seus habitantes, esse vulcão sempre em erupção. O audiovisual, a dança, o teatro independente; tudo é muito forte e tem tanta coisa acontecendo que, se você quiser assistir a peças teatrais de segunda a segunda e mais de uma vez por dia, é possível", destaca.
"Cheguei em Buenos Aires no mês de dezembro e paguei cursos em fevereiro e março. Lá, decidi estudar palhaçaria e fazer formações completas. Como eu não tinha dinheiro para os cursos, eu conversava com os professores e trocava trabalho pelas formações", rememora Fred. Neste valioso intercâmbio cultural, Fred pesquisou artes cênicas e palhaçaria clássica com referências nas áreas, como Marcelo Savignone e Pompeyo Audivert.
Em 2013, Fred ingressou como assistente técnico na companhia de Toto Castiñeiras, clown do Cirque du Soleil desde 2004, e nas coxias dos palcos aprendeu a falar com o corpo inteiro. "O Toto Castiñeiras foi meu principal mestre e estudei também com o Gabriel Chame Buendia, grandes referências. Depois de estudar palhaçaria junto ao Toto, ele me disse: 'É hora de estudar teatro. Você não tem que estudar palhaço, você tem que estudar teatro para ser melhor palhaço'", relembra. Em 2015, o cearense entrou na primeira criação na companhia. "Estudei palhaçaria, clown, máscaras, Commedia dell'arte, a pedagogia teatral de Jacques Lecoq — quem introduziu o clown teatral, porque tinham pessoas saindo do circo e entrando no teatro. Dentro dessa pedagogia, Lecoq desenvolveu a metodologia de um clown mais teatral e esta é uma das linhas que mais força tem nos estudos de clown mundial. Estudei também com Marcelo Savignone, um amigo que me abriu as portas da casa e tive acesso aos livros da bibliografia teatral dele. Por recomendação de Toto, aprendi muito também com o Pompeyo Audivert, que trabalha numa vertente mais surrealista na Argentina. Lá comecei a estudar teatro e vi que o mundo da atuação também é para mim".
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Radicado na Argentina ao longo de 10 anos, Fred formou-se um artista multilinguagem: aprendeu a montagem de espetáculos, técnicas de luz e som, direção e estruturação de todo o processo cênico. "Eu morei num teatro em 2002, fiz do palco minha casa. Hoje, meu ritual de sorte é montar meu espetáculo inteiro", compartilha. Além das artes cênicas, Fred trabalha também como intérprete, atuou na televisão argentina — Netflix Argentina e Amazon Prime — e no cinema. Em 2017, foi aluno do clown italiano Leris Colombaioni em São Paulo.
Hoje, morando onde a mala está, Fred borda laços numa extensa geografia afetiva. Em Fortaleza, o artista tece parceria com o Laguz Circo e já trabalhou com os grupos Trupe Do Riso, Cia Teatral Acontece, Coletivo Paralelo e Companhia Itinerante de Malabares. "Esses deslocamentos constroem o meu trabalho. A dinamicidade é incrível. Esse lugar de estar migrando e de não ter um solo firme faz eu me sentir um marinheiro de Camões, 'navegar é preciso'. Essa busca por estar sempre em movimento faz eu me meter em qualquer lugar e me adaptar. No Brasil, na Argentina, na Costa Rica, no Chile, na França… Estou familiarizado com a não familiaridade".
No pleno exercício de ensinar, Fred também aprende. "Em Buenos Aires, quando comecei a atuar semanalmente, a prática se tornou predominante. Nos quatro primeiros anos na Argentina estudei teatro, esgrima, acrobacia, tudo o que poderia adicionar e melhorar o meu clown. 'Gurisa', a primeira obra que eu fiz na companhia do Toto, demorou dois anos para ser finalizada — ou seja, o próprio processo funciona como formação. Depois, a formação passa a dar lugar à criação e, posteriormente, há também o trabalho de formação do ator dentro da peça. Repetir uma peça 40 vezes no ano nos ensina muito", elucida. A década de experiência teatral com clown reverbera, agora, na prática pedagógica. Como educador, Fred já formou mais de 800 alunos nos cursos ofertados no Brasil e na Argentina.
"A formação é fundamental porque a formação gera pensamento crítico. Assim, talvez a gente possa gerar um humor menos machista, menos racista, menos homofóbico, menos transfóbico. O teatro é a possibilidade de viver outras coisas. O palhaço é um gênero teatral, que funciona e atua em vários campos, mas não esqueçamos que ele é um gênero teatral — ou seja, atira para um lado e atira para outro também. Penso muito nesse lugar duplo que a arte tem: ao mesmo tempo ela educa, ela liberta, ela é emancipadora; mas a arte tem uma finalidade em si mesma. Eu estou fazendo arte porque é algo necessário", finaliza.
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