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Ruptura na cultura: Secult cancela três editais após resolução do TCE
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Ruptura na cultura: Secult cancela três editais após resolução do TCE

Imbróglio jurídico envolvendo o TCE e a Secretaria da Cultura do Ceará levou ao cancelamento de três editais que estavam em trâmite
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XIV Edital Ceará de Cinema e Vídeo está entre os certames cancelados, um impacto em toda a cadeia do audiovisual no Estado
 (Foto: Sergio Poroger/ Divulgação)
Foto: Sergio Poroger/ Divulgação XIV Edital Ceará de Cinema e Vídeo está entre os certames cancelados, um impacto em toda a cadeia do audiovisual no Estado

Por conta de resolução do Tribunal de Contas do Estado do Ceará, a Secretaria da Cultura do Estado cancelou três editais que estavam em trâmite em diferentes fases do processo e foram lançados entre 2019 e o início de 2020. A decisão, que é consequência de um complexo imbróglio jurídico envolvendo o entendimento de um artigo da Constituição Estadual, impacta de forma direta os quase 300 classificados e dezenas de classificáveis em resultado preliminar do XII Edital Ceará de Incentivo às Artes, os 160 habilitados do XIV Edital Ceará de Cinema e Vídeo e os 36 classificados e 228 classificáveis em resultado preliminar do Edital Cultura Infância 2020 - sem mencionar as outras trabalhadoras e trabalhadores que se envolveriam nas centenas de projetos que deixarão, por agora, de serem apoiados.

Desde 2017, o TCE analisava três editais da pasta — o XI Edital Carnaval do Ceará (2017), o Edital Ceará de Cinema e Vídeo (2016) e o XI Edital de Incentivo às Artes (2016) - que teriam incorrido em pretensa inconstitucionalidade por utilizarem como base jurídica uma lei complementar que se fundamenta num artigo da Constituição Estadual que, por sua vez, ultrapassaria as competências legais do Estado do Ceará.

O artigo é o 190-B que, como explica a advogada especialista em Gestão e Política Cultural Cecilia Rabêlo, "diz claramente que é possível repasse, através de parceria, a pessoas físicas e pessoas jurídicas com ou sem fins lucrativos". Porém, o TCE demandou na recente resolução a restrição do alcance do artigo, excluindo pessoas jurídicas com finalidade lucrativa e pessoas físicas.

Os editais questionados usavam como norma jurídica a Lei Complementar nº 119/2012, que justamente se fundamenta no artigo questionado pelo TCE. O tribunal entendeu, como explica o presidente da Comissão de Direitos Culturais da OAB Paulo Maranhão, "que essa lei complementar estava legislando em cima de uma lei federal". De acordo com a Constituição Federal, é competência exclusiva da União a criação de leis sobre contratos e licitações e, por isso, haveria "usurpação de competência privativa".

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Foi por isso que os três editais recentes tiveram que ser revogados, já que se baseiam nessa lei complementar e não tiveram o processo finalizado. "Se cai o artigo da constituição estadual, cai a lei complementar que tem base nele e cai o que vem depois, como um efeito dominó", resume Cecilia.

"Por que se vinha fazendo transferência para pessoa física desde sempre? Porque a lei permitia. Não é nada ilegal", ressalta a advogada, "mas agora o TCE, analisando a norma, entendeu que ela é inconstitucional e por isso determinou que ela não fosse mais utilizada", avança. Destaca-se que a impossibilidade referida pelo tribunal de celebração de termos com PFs é específica para editais com base na referida lei complementar. Já em relação às pessoas jurídicas com fins lucrativos, a participação delas já não era prevista nos editais cancelados. "Hoje em dia, não há repasse de recurso para pessoas jurídicas com fins lucrativos nos editais da Secult", afirma Cecilia. Segue possível, porém, a participação no mecanismo de Mecenato, uma vez que o fomento é indireto, por patrocínio de empresas

"Existem outros mecanismos jurídicos que a Secult pode utilizar para poder atender às pessoas físicas também. É isso que ela vai buscar, uma legislação que abarque isso", afirma Paulo. Cecilia cita, inclusive, a lei de 2006 que institui o Sistema Estadual da Cultura do Ceará. "É um tema que o TCE chama atenção: que a Secult deve utilizá-la, regulamentar os instrumentos que tem nela", sugere.

A reportagem entrou em contato com a Secult com demandas relativas a pontos que rondam os cancelamentos dos editais. Em resposta por e-mail, a pasta afirmou que já está trabalhando "para a construção de uma legislação cultural específica e autônoma que preveja o fundamento jurídico necessário para a celebração de termos com pessoas físicas".

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"Ressaltamos que, no ano de 2020, já aconteceram avanços nesse sentido, por meio de mudanças na legislação do Sistema Estadual de Cultura efetuadas por meio da Lei Complementar Estadual nº 220/2020 e do Decreto Estadual nº 33.747/2020. Em continuidade, a Secult planeja aprimorar a legislação para prever um regramento mais detalhado", avança a Secretaria.

Outro questionamento feito foi se a resolução do TCE poderia atingir de forma retroativa editais anteriores, uma vez que o processo que deu vazão à resolução partiu de chamadas de 2016 e 2017. Conforme o órgão, não. Os editais "cujos projetos aprovados já estavam em execução, por já estarem com os termos de repasse firmados assegurando os direitos e obrigações das partes, não serão afetados pela resolução". "Os editais atingidos são unicamente aqueles que haviam sido lançados com base na Lei nº 119/2012 e que ainda estavam em processo de seleção, sem assinatura dos termos", reforçou a Secult.

Uma vez que os editais cancelados já tinham avançado para fases como habilitação e resultado preliminar de avaliação e seleção de propostas, o V&A questionou também se o avanço deles será totalmente perdido. A Secretaria informou que não será possível "manter ou aproveitar futuramente as inscrições realizadas", uma vez que todo o regramento estrutural das chamadas será reorganizado.

"As inscrições e análises já efetuadas não serão mantidas, sendo necessário que os proponentes interessados inscrevam-se novamente nos futuros editais lançados pela Secult. Esclarecemos que os proponentes poderão adaptar projetos ao novo edital", indica a pasta.

Mais um ponto de dúvida é em relação aos orçamentos dos editais cancelados - R$ 8,2 milhões para o XIV Edital Ceará Cinema e Vídeo, R$ 6.877.492,00 para o XII Edital Ceará de Incentivo às Artes e R$ 1.500.000,00 para Edital Cultura Infância 2020. De acordo com a advogada Cecilia Rabelo, a revogação do edital não implica em perda de recurso. "Existe a dotação orçamentária, vai mudar só o instrumento. Claro, eles podem escolher que vão lançar um edital com outro valor, ou que vão dividir o valor em outros editais", aponta.

"Talvez a Secult reparta em um só para pessoa física, outro só para pessoa jurídica. Apesar de ficar um pouco mais burocrático para a própria Secretaria, fica mais claro para quem está participando, mais seguro para todo mundo, mais compreensível para os tribunais de contas e para o ministério público", conjectura. Questionada sobre os recursos dos editais cancelados, a Secult afirmou que os orçamentos "estão em análise e serão, inclusive, debatidos com o setor artístico e cultural na ocasião do relançamento". Um dos questionamentos da reportagem foi sobre o prazo da readequação e relançamento dos editais, mas não houve resposta direta a ele.

Por nota, o Tribunal de Contas do Estado do Ceará ressaltou: "A decisão do TCE Ceará acolheu integralmente as sugestões emitidas tanto pelo órgão técnico competente, da Secretaria de Controle Externo no Tribunal de Contas do Estado do Ceará, bem como do Representante do Ministério Público de Contas, na qualidade de fiscal da lei".

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