A imbricação de vida e obra é uma das marcas do casal Estrigas e Nice Firmeza e, pode-se afirmar, a essência da ligação se deu de forma mais intensa no Minimuseu Firmeza. Ao mesmo tempo casa, museu e centro cultural, o espaço foi fundado em 1969, num sítio no Mondubim onde eles moraram de 1961 até suas partidas, em 2013, no caso de Nice, e 2014, no de Estrigas. Desafios se impuseram ao longo dos anos, mas o Minimuseu perdura pela ação de figuras que seguem apostando no espaço. Ele permanece, mas pede atenção.
"Metade da casa era para exposição e a outra metade, para morar. Mesmo assim, essa parte de morar foi sofrendo uma 'invasão'", definiu Estrigas ao O POVO em 2008. O acervo do Minimuseu se construiu a partir de trocas, vendas simbólicas e um senso aguçado para a preservação da nossa História. Obras dos dois e de nomes como Antônio Bandeira, Aldemir Martins e Barrica, além de livros, catálogos, documentos da história da arte formam a riqueza do espaço.
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Apesar da vocação essencial de formação, pesquisa e trocas, o espaço passou por dificuldades. No V&A de 06/07/1989, por exemplo, foi noticiado um "mutirão para salvar" o local. "O Minimuseu Firmeza é, há 20 anos, um movimentado espaço cultural", ressalta o texto, "antes mesmo que este termo virasse moda".
Em 12/09/2000, o colunista do V&A Flávio Paiva abordava criticamente a ameaça ao Minimuseu imposta, na época, por obras do viaduto do Metrofor. "Não há sinal de qualquer interesse na preservação do acervo organizado e cuidado pelos artistas plásticos Estrigas e Nice ao longo de 30 anos", apontava.
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Já em 21/04/2010, o caderno noticiava que, àquela altura, era o próprio casal que buscava "novos donos para o acervo". Eles tinham demandas simples: para Estrigas, que fosse alguém que desse a ele maior visibilidade; para Nice, que fosse uma entidade que o deixasse aberto para as crianças.
Em 2013, com a partida de Nice e a idade avançada, Estrigas tentou de novo passar o espaço adiante, mas acabou levando, até o fim e com apoios, a administração. Hoje, ele está sob responsabilidade de Rachel Gadelha, sobrinha-neta do artista e gestora cultural. "Eles deixaram a casa de herança para mim, o que é ao mesmo tempo uma grande honra e uma responsabilidade", divide.
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Consciente dos desafios, o "muito prático" Estrigas deixou avisado a ela: "Rachel, você tenta dar continuidade aqui por uns três anos. Se não der certo, você vende tudo, acaba tudo". Apesar da "liberação" do tio, o fechamento não foi uma opção. "O ideal no pensamento (da família) é que o Minimuseu continue cumprindo sua função, que o sonho deles continue", afirma Rachel. As dificuldades de manutenção do espaço, porém, permaneceram.
Por anos, apoios da Secretaria da Cultura do Estado eram interditos ao espaço, já que Rachel trabalhou como gestora na pasta. Hoje, ela é diretora-presidente da organização social Instituto Dragão do Mar. Além dela - que financia diretamente a "vida" do espaço, custeando energia, segurança e zeladoria, por exemplo -, há outras duas presenças que têm papel essencial na permanência do Minimuseu: a historiadora Paula Machado e a professora de bordado Lúcia Ferreira.
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A partir de um apoio que a Secultfor concedeu ao local antes do falecimento de Estrigas, Paula organizou o acervo do casal e seguiu, depois, ligada ao espaço, sendo hoje coordenadora de projetos. Já Lúcia foi aluna de bordado de Nice e dá continuidade às formações da artista e projetos ligados à técnica.
Abertura do Salão de Abril no Minimuseu Firmeza
Nos últimos sete anos, houve continuidade na aproximação entre o Minimuseu e a comunidade com formações de bordado, produção de bonecas de pano e capacitações em empreendedorismo cultural e social. Entre projetos recentes, houve ainda a catalogação da biblioteca, dos arquivos do Salão de Abril e produção de exposições a partir do acervo.
"Temos um (novo) projeto, o Armarinho da Nice. Pretendemos montar no Minimuseu um espaço de venda da produção feita pelas 26 mulheres que moram no entorno com quem a gente trabalha", adianta Lúcia. As ações, porém, são intermitentes. "Quando tem projeto, o minimuseu abre. Quando não tem, ele fecha", resume Rachel.
"Vivemos com esse paradoxo: um lugar tão forte, tão potente, e ao mesmo tempo tão frágil, nesse sentido da sustentabilidade", segue ela. "O Minimuseu não é 'da família'. De quem é? A quem interessa? Tem lugar em Fortaleza hoje? Como a gente trata nossa história, tudo que viveu? São perguntas que não têm resposta fácil", reconhece.
"É importante que a nova geração conheça, se aproprie dele. Que essa história seja contada. Ela pode não morrer, pode se reinventar a todo momento. Depende de nós. Não é só o poder público, é a sociedade. Somos nós, cearenses e fortalezenses", conclama.
Minimuseu Firmeza
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"O Minimuseu é necessário na Cidade"
Em entrevista ao O POVO, a historiadora da arte e professora da UFMG Carolina Ruoso defendeu uma saída "coletiva" para elaborar a permanência do Minimuseu Firmeza, em Fortaleza, descrito como "necessário" pela pesquisadora.
O POVO - Ainda há espaço para o Minimuseu Firmeza em Fortaleza hoje? Qual o lugar dele nos atuais contextos social e cultural da Capital?
Carolina Ruoso - Pela dimensão da memória, é indiscutível. Só a dimensão de uma relação com a memória é fundamental. O Minimuseu é necessário na Cidade. Fortaleza precisa do Minimuseu Firmeza. Os artistas, as professoras de arte, as professoras das escolas, os estudantes, os jovens precisam. O minimuseu firmeza é necessário. A Cidade vai responder. Ele é necessário, importante, ele nos ajuda a pensar quem somos. É um lugar que afirma nossa potência criativa, também, historicamente. Temos ainda muitas histórias para contar a partir do próprio museu, que são sobre o Minimuseu, sobre Estrigas e Nice, mas também sobre todos aqueles que conviveram no entorno e que congregam. Há muita coisa a ser dita, publicada, vivida no Minimuseu Firmeza. É um lugar de vivência das artes. Trazendo o conceito da Conceição Evaristo, é um local de escrivivência das artes. É um lugar onde a gente tem uma relação com o passado, mas é um lugar de imaginar, também. Historicamente, ele foi uma zona de contato entres mundos das artes colocados em lugares diferentes. Como a gente vai deixar e esquecer o Minimuseu? Isso não cabe. Nós temos que lutar pela sua permanência, pensar coletivamente a permanência desse museu, porque ele é uma iniciativa que não é de Estado. Como a gente iria desmontar essa obra de arte?