A música experimental cearense se confirmou, com o acúmulo de iniciativas realizadas nos últimos anos, como um terreno frutífero de criatividade, expressão e bem-vindos riscos. Escapando de definições e desafiando ouvintes, projetos ligados à produção alternativa se concretizaram, muitas vezes, a partir da atuação de selos independentes que, com os desafios impostos pela pandemia, buscaram adequações para seguir produzindo. É neste contexto que a já reconhecida Mercúrio Música e a estreante Outradança lançam novos álbuns na sexta, 27: respectivamente "Tempo Bravo", da banda Vacilant, e "Quando não se tem outra saída", trabalho de poesia sonora do cearense cozilos Vitor e do sergipano Pedro Bomba. Integrantes de cada iniciativa dividem com o Vida&Arte aspectos que atravessaram as obras e seus contextos de produção.
A Mercúrio Música surgiu oficialmente em 2018 enquanto selo, possuindo no catálogo mais de 30 álbuns de nomes como as bandas Maquinas e Astronauta Marinho. Já a estreante Outradança começa a atuação com o lançamento de "Quando não se tem outra saída", mas traz na equipe nomes conhecidos da cena experimental, como Cozilos Vitor, e da própria Mercúrio, como Clau Aniz, Tuan Fernandes e Yuri Costa - que compõem, os três, a banda Vacilant.
O trabalho do grupo - formado, ainda, por Felipe Couto e Taís Monteiro - que está sendo lançado pela Mercúrio é o disco "Tempo Bravo", construído no Laboratório de Música da Escola Porto Iracema das Artes, espaço formativo do Governo do Estado. No processo, a instrumentista catarinense Maria Beraldo atuou como tutora do projeto.
"Apesar de mudarmos muitas coisas da proposta inicial para adaptarmos à situação (da pandemia), o tema 'tempo' sempre foi o embrião da proposta", divide Yuri. "De início, nossa ideia era desenvolver a nossa apresentação ao vivo. Em algum momento, percebemos que sem os encontros presenciais, muito necessários para ensaio e experimentações visuais, seria difícil avançar nessa pesquisa", reconhece o artista. "Ao mesmo tempo, pensamos muito em ter um álbum visual, já que Tuan Fernandes e Taís Monteiro trabalham com audiovisual e já se empenhavam na criação de visualidades dos sons que estávamos compondo", avança.
A partir desse diagnóstico - acolhido pela coordenação do laboratório, feita pela cantora e compositora Mona Gadelha -, "Tempo Bravo" foi produzido enquanto um álbum visual. Tanto a parte musical quanto a audiovisual foram preferencialmente feitas à distância, mesmo entre os integrantes cearenses. "Um processo muito complicado e doloroso, fazer arte sem a presença dos colegas, mas ficamos muito orgulhosos em conseguir fazer algo tão bonito em meio ao caos que enfrentávamos", destaca Yuri.
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Os acompanhamentos das músicas do disco foram produzidos de diversas formas: a partir de colaborações de Amorfas e Insira, artistas visuais cearenses; imagens de internet e também de arquivos pessoais; efeitos digitais; e, em menor parte, gravações inéditas em locação.
"Isso reduziu bastante a necessidade de encontros presenciais", destaca Yuri. "O uso de imagens digitais, arquivos da internet e gravações de acervos pessoais foi a estratégia que encontramos para a feitura do filme, mas acabou influenciando naturalmente nossa pesquisa", considera.
Lançamento da estreante Outradança, o disco "Quando não se tem outra saída" também teve produção remota, uma vez que foi construído a partir de Belo Horizonte, onde o poeta Pedro Bomba mora, e de Fortaleza. Independentemente do cenário sanitário, porém, Cozilos Vitor destaca que processos do tipo são comuns à produção do movimento.
"É inevitável, em termos de produção artística-musical pelo menos, o fato de que as tecnologias vieram para diminuir as distâncias e isso é antes da pandemia. Graças a elas, mais pessoas conseguem gravar de dentro do próprio quarto e, melhor, conseguem publicar na internet e se divulgar", avalia. "Por outro lado", aprofunda, "a pandemia trouxe essa mesma distância pra dentro da cidade. Deixamos de nos encontrar por aí e houve a necessidade, como Outradança e também individualmente, de nos organizarmos nesses termos".
Tal organização, como ele aponta, custou "tempo maior de adaptação e entendimento do que podemos fazer nessas circunstâncias". "Ainda mais contando com a pandemia devastadora, 570 mil mortos até agora, um governo federal jogando a favor do vírus, junto com o desmonte das políticas públicas de cultura e educação que promove em paralelo ao genocídio", acrescenta.
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Tanto as trocas internas, entre artistas cearenses, quanto as socializações com outros estados são possibilidades de fortalecimento da cena e dos projetos. "Se queremos entender o desenho da nossa cena, temos que entender no que ela se diferencia das outras, mas também com o que ela se identifica dentro de uma estrutura maior", defende Tuan. "De norte a sul estão surgindo selos e festivais, dando conta de uma produção que é diversa e farta em arte experimental. Achamos importante para o processo de fortalecimento estabelecer contatos e criar uma rede para que possamos trocar informações e ajudas mútuas", afirma.
Apesar de ligadas pelas presenças e os universos em comum, as iniciativas da Mercúrio Música e da Outradança são independentes - tanto entre si quanto no sentido de serem realizadas de forma desgarrada de lógicas de mercado. Com o cenário da pandemia, os desafios se acentuaram.
"Com a pandemia, muitos dos nossos trabalhos como selo e produtora de eventos foram impossibilitados. O que nos restou foi apenas trabalhar com lançamentos musicais. Esse ano foram poucos, mas alinhou bem com a proposta atual do selo de manter um cast mais enxuto, porém melhor focado nas carreiras das bandas", explica Ravena Monte, que está à frente da Mercúrio com o músico Allan Dias.
"Nos dividimos para conseguir auxiliar as bandas não apenas em seus lançamentos, mas também na elaboração de projetos em futuros editais de fomento e assessoria de uma forma mais geral", segue ela, definindo o momento como uma "revisão de metodologia" de trabalho do selo. "Aos poucos estamos buscando uma forma de sustentabilidade financeira do nosso trabalho ao mesmo tempo em que buscamos maior profissionalização e expansão no cenário local e nacional", prospecta.
A Outradança surgiu, enquanto ideia, em um momento anterior à pandemia, mas naturalmente alterou os planos de estreia por conta dela. "Aos poucos, fomos aprendendo a lidar com o nosso métier enquanto artistas em pandemia que precisam produzir, fazer circular trabalhos e trabalhar em conjunto, mas à distância", respondem, em conjunto, os quatro artistas do selo.
Com o álbum que marca o primeiro lançamento finalizado e outro disco já engatilhado, decidiram dar partida oficial nos trabalhos. "Entendemos que era hora de formalizar, publicizar o selo e enfrentar concretamente as etapas seguintes", dividem. Entre planos já próximos, estão o lançamento de "LAMA", parceria de Tuan Fernandes e Tito de André, e a circulação de uma oficina de música experimental. No campo de desejos menos formatados, estão as intenções de lançar uma coletânea seriada e também obras audiovisuais.
Para a Mercúrio, o ano de 2021 ficou marcado, até agora, pelos lançamentos de novos trabalhos das bandas O Jardim das Horas e Lascaux, respectivamente "Carbono" e "Agora Lascaux". "Em comparação a 2020, é como se estivéssemos um pouco mais focados e resilientes com o baque que foi lidar com a COVID-19 em seu primeiro ano", compreende Allan Dias, que é também integrante da banda Maquinas. Os novos trabalhos do grupo, inclusive, devem figurar nas atividades de 2022 da Mercúrio, bem como os dos projetos Jangada Pirata e Clau Aniz. Ainda para este ano, estão previstos lançamentos da banda Viramundo.
Os horizontes ainda parecem, sem dúvidas, difusos, mas os dois selos entendem a coletividade e as trocas do campo como uma base importante para a continuidade de ações. "Estávamos, antes da pandemia, em um bom movimento de artistas talentosos surgindo, nomes como Mateus Fazeno Rock, Glamourings, Clau Aniz, Vacilant. Ao mesmo tempo, vejo com bons olhos o fato de estar nascendo a Outradança, de amigos e parceiros de longa data, porque é sempre uma questão de somar forças e saber que teremos mais amigos para contar quando os shows voltarem", ressalta.
Cada vez mais estamos enxergando o papel de trabalho em comunidade na música", avalia Allan, citando os trabalhos de selos como SuburbanaCo e 1992. "Vejo com positividade esse movimento e essa união de forças será necessária para lidar com o pós-pandemia em Fortaleza, onde a maioria das casas de shows fechou as portas e estaremos por um tempo nos circuitos dos institutos culturais", prospecta.
"Fortaleza tem uma cena muito pulsante de música, teatro, performance, cinema, literatura, artes instalativas, plásticas, etc. Conversamos bastante entre nós e acabamos vivenciando as experimentalidades uns dos outros", dividem os membros da Outradança. "A primeira coisa que surgiu em nossas conversas enquanto selo foi justamente promover alguns desses encontros. Não só fazer acontecer, mas buscar estrutura para isso, dar um acabamento e fazer circular bem. Dar materialidade pra cena, entender o desenho dela agitando, registrando e falando sobre".
"Alguns selos como a Mercúrio Música, que tem sido nossa parceira, a Banana Recs, que fez um trabalho muito instigante durante os anos que atuou em Fortaleza e, mais especificamente na música experimental, a SuburbanaCo, que já vem atuando forte nisso há muito tempo, cada uma ao seu modo, são referências muito importantes para a gente. Estamos chegando para somar neste processo.
Lançamento de "Tempo Bravo", da Vacilant
Onde: mercuriomusica.bandcamp.com/album/tempo-bravo
Quando: a partir de sexta, 27
Siga a banda: @vacilant
Siga a Mercúrio Música: @mercuriogestaoeproducao
Lançamento de "Quando não se tem outra saída", de cozilos Vitor Pedro Bomba
Onde: tratore.ffm.to/quandonaosetemoutrasaida
Quando: a partir de sexta, 27
Siga a Outradança: @outradanca