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Casinhas Feias: Projeto defende preservação de imóveis menores do Centro
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Casinhas Feias: Projeto defende preservação de imóveis menores do Centro

Projeto Casinhas Feias debate preservação do patrimônio histórico em Fortaleza a partir de narrativas afetivas que marcam imóveis do Centro
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. A tipologia das casas – a altura, o formato alongado dos lotes com quintais ao fundo, a relação com a calçada e a rua – cria condições espaciais que viabilizam as relações entre as pessoas', aponta Cinira. Na foto, imóveis na rua 25 de Março
 (Foto: Marcelo Barbalho / divulgação)
Foto: Marcelo Barbalho / divulgação . A tipologia das casas – a altura, o formato alongado dos lotes com quintais ao fundo, a relação com a calçada e a rua – cria condições espaciais que viabilizam as relações entre as pessoas', aponta Cinira. Na foto, imóveis na rua 25 de Março

"Em Fortaleza, o desaparecimento lento e progressivo das casas de nossos avós nos deixa entristecidos". A frase do memorial descritivo do projeto "Casinhas Feias" é da arquiteta urbanista e artista visual Cinira d'Alva e faz referência a uma passagem pessoal: a demolição da casa dos avós, na avenida Dom Manuel, 392. Além da estrutura física, desaparecem também "os corredores escuros habitados por fantasmas, a cidade vista do portão, o carnaval na avenida, os caranguejos na calçada aos domingos"... A partir de um olhar interessado em imóveis menores que fogem da noção de "boa arquitetura" - as tais "casinhas feias", nome escolhido justamente para ressaltar o descaso imputado às construções - e nas memórias afetivas destes espaços, o projeto dá a ver parte deste patrimônio ignorado que segue resistindo no Centro de Fortaleza, entre o desinteresse imobiliário e a dificuldade de ser oficialmente preservado. Na terça, 31, às 19 horas, o Instagram do Museu de Arte do Dragão do Mar recebe debate sobre patrimônio a partir da iniciativa.

"O projeto surge desse afeto mesmo", reconhece Cinira, em referência à casa dos avós que viu em ruínas ao retornar para Fortaleza em 2015, após anos morando fora. "Andando por aquela região, que alguns chamam de centro expandido, percebi que as casinhas menores permaneciam e as práticas e gestos relativos àquele modo de morar também sobreviviam, como a relação de vizinhança e o hábito de colocar as cadeiras nas calçadas no final da tarde. Minha reação foi querer guardar na memória o casario e as práticas que eu sei que tendem a desaparecer", aprofunda.

Originalmente aprovado no XI Edital de Incentivo às Artes do Governo do Estado do Ceará, de 2016, o projeto teve início de produção em janeiro de 2019, com previsão de uma exposição no Museu do Ceará em 2020. Por conta do contexto de pandemia, migrou para o espaço virtual, se desenrolando no Instagram desde o início de agosto.

Na rede social, são compartilhados vídeos e fotos com histórias de diversas moradias visitadas pela equipe - formada ainda por Gabriela Delgado no design gráfico, Marcelo Barbalho na captação das imagens e Gláucia Soares na edição -, encontradas a partir de métodos cartográficos.

Em citação ao filósofo francês Félix Guattati, o projeto faz lembrar: "O espaço construído nos interpela de diferentes pontos de vista: estilístico, histórico, funcional, afetivo". A defesa da preservação das casinhas passa, em especial, pelas memórias íntimas e pessoais.

"O universo pessoal pode ter um impacto no coletivo. Penso que em uma cidade estamos todos ligados afetivamente por um emaranhado de fios. Há um fio específico que liga minhas experiências no centro da cidade à experiência de vários habitantes. É como se esse fio fizesse, de uma memória pessoal, uma memória coletiva", compreende a artista. Entre as experiências, estão a comunhão entre a casa e rua, as trocas com a vizinhança - aspectos que, hoje, têm menos lugar.

 
 
 
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A imaterialidade do que ronda as casinhas encontra paralelos, também, com aspectos materiais que as compõem e que são destacados no projeto: elementos simples como as paredes descascadas e azulejos desgastados. "Eles dão uma espessura temporal para a experiência na cidade que sentimos com o corpo. A preservação dessa 'rugosidade', como fala o geógrafo Milton Santos, tem consequências não só no aspecto plástico da cidade, mas na nossa saúde emocional", compreende.

Constituídas de forma simples, as casinhas, então, passam ao largo do debate patrimonial em Fortaleza, que se centra construções de "valor histórico", ligadas a grupos com poder econômico ou que sejam exemplares de uma pretensa "boa arquitetura".

Ligações entre o ambiente doméstico e a rua se somam nos imóveis visitados pelo projeto. Na foto, casas da rua Rodrigues Junior(Foto: Marcelo Barbalho / divulgação)
Foto: Marcelo Barbalho / divulgação Ligações entre o ambiente doméstico e a rua se somam nos imóveis visitados pelo projeto. Na foto, casas da rua Rodrigues Junior

"As casinhas têm uma condição diferente dos prédios de valor arquitetônico e histórico. A meu ver, são um patrimônio quase imaterial. A tipologia das casas - a altura, o formato alongado dos lotes com quintais ao fundo, a relação com a calçada e a rua - cria condições espaciais que viabilizam as relações entre as pessoas. Não só entre vizinhos, mas também com os passantes", elabora a arquiteta e artista.

"As ruas ladeadas por essas casas térreas são vigiadas pelos próprios moradores, são seguras e vivas. Passe pela rua Rodrigues Júnior no final da tarde e você vai encontrar, logo depois da esquina com a rua Costa Barros, o Chico e o Joacir na calçada. Na Dom Joaquim, seu Mundica vai estar lá. Na Tereza Cristina, às 17h em ponto, Dona Nereide coloca as cadeiras, uma pra ela e mais duas pra quem chegar", narra Cinira, citando pessoas entrevistadas pelo projeto.

Por um lado, tais condições afastam as casinhas do interesse imobiliário, ajudando na permanência delas; por outro, dificultam os caminhos para sua salvaguarda. Como, então, preservá-las? "Existiriam inúmeras possibilidades, na legislação do município de Fortaleza, de criarmos condições de preservação e de atualização desses espaços, de forma a manter essas condições que, como disse, são quase imateriais", aponta Cinira.

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"Já vi, como professora universitária, trabalhos de alunos que exercitavam esse desenho de uma cidade sensível à preservação de forma muito factível. Como manter o que vale a pena ser mantido, modificando o que deve ser modificado? Isso exige um exercício do pensamento que é um exercício de cuidado com a vida. Também uma expressão da capacidade de amar a cidade, que para nós, seres urbanos, é onde a vida vive", desvela.

A casa segundo Galeano

No “Livro dos Abraços”, obra central na trajetória do autor uruguaio Eduardo Galeano, um dos textos que compõe a publicação é “A casa”. No escrito, o artista cita que 1984 foi um “ano de merda”: ele sofreu um infarto, a esposa, Helena Villagra, sofreu um aborto espontâneo, as plantas das quais o casal cuidava morreram… “A casa parecia maldita”.

Um ponto de virada nesta relação foi a visita de Nani e Alfredo Ahuerma, que renderam visita a Eduardo e Helena e, ao ir embora, escreveram no espelho: “Nesta casa fomos felizes”. “E também nós tínhamos encontrado alegria naquela casa de repente amaldiçoada pelos ventos ruins, e a alegria tinha sabido ser mais poderosa que a dúvida e melhor que a memória, e por isso mesmo aquela casa entristecida, aquela casa barata e feia, num bairro barato e feio, era sagrada”, segue o texto.

Casinhas Feias

Onde: @casinhas.feias

Live 'Casinhas Feias: memória e encanto na cidade'
Com Cinira d'Alva e Gabriela Delgado, do projeto Casinhas Feias, e Marcelo Capasso (arquiteto mestre em Gestão Urbana), Julia Brito (arquiteta e sócia da ONG Taramela), Mariana Smith (artista e pesquisadora em artes visuais)
Quando: terça, 31, às 19 horas
Onde: @macdragao

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