Há quem pegue um tamborete — aqueles banquinhos de madeira — para "se assentar" e, com o auxílio de um raspador, "rape" manualmente o coco. Horas a fio, cantarolando alguma canção. O ritual pode significar a delícia de comer a fruta ralada naquele instante, fresquinha, na própria casca. Ou o anúncio de uma tapioca no meio da tarde com café. Por falar na iguaria, herança indígena, tem a farinha (produzida a partir da mandioca). Nas residências de famílias agrícolas no Ceará entre os séculos XVIII e XX, as casas de farinha, além de serem palco da transformação da mandioca, representavam a esperança do sustento. Algumas dessas edificações ainda resistem. Neste território, tem feijão e fava com maxixe e quiabo, camarão e mais pescados, castanha de caju torrada, cana-de-açúcar, banana, jerimum, milho e muito mais. Receitas, produtos e feituras passados por gerações, ressignificados a todo instante. Na identidade gastronômica de milhares de cearenses, uma explosão de aromas, sabores e saberes que atravessam litoral, serra e sertão.
No agora, chefs, cozinheiros e entusiastas valorizam o insumo local e mantêm essa memória viva. A gastronomia cearense está num encontro entre o tradicional e o contemporâneo, com o investimento em produtos e técnicas deste solo e do seu povo. Sob esse contexto, emerge a lei que institui a Política Estadual da Gastronomia e da Cultura Alimentar e cria o Programa Ceará Gastronomia. A medida foi sancionada pelo Governador do Ceará, Camilo Santana, no último dia 6 de agosto.
O Programa fomenta ações integradas para o desenvolvimento da culinária cearense, desde a semente ao prato. Trata-se da primeira política pública criada no Estado para estimular o setor. Segundo o chef João Lima, assessor para Gastronomia do Governo do Estado do Ceará e presidente da Câmara Temática da Agência de Desenvolvimento do Estado do Ceará (Adece), a nova lei entende a gastronomia como uma área dinâmica, com potencial econômico e social conectado a diversos outros campos.
Fortalecer para preservar
"A exemplo de países como o México e o Peru, que apostaram em investimentos na sua gastronomia e em toda sua cadeia produtiva, o Programa Ceará Gastronomia pretende estimular o fortalecimento de seus elos e o crescimento de setores como a agricultura familiar (rural e urbana), o turismo gastronômico (local e regional), a educação e a formação em gastronomia, o agronegócio e os eventos gastronômicos… Tornando o Ceará um referencial em organização, serviço e qualidade de sua gastronomia nacional e internacionalmente", almeja.
A partir da criação da Câmara da Gastronomia, em 2018, a ideia de ter uma política pública com foco na culinária local foi impulsionada. O chef João Lima está à frente dessa articulação desde então. De lá surgiu o conceito: "Um programa que pudesse unir atores da cadeia produtiva com poder público, a iniciativa privada e a sociedade civil, propondo um planejamento estratégico de pelo menos dez anos para o setor".
Ao potencializar o circuito gastronômico local, tem-se o fomento da economia, da cultura e tradição, das histórias do povo e dos produtos desta Terra da Luz. A fundamentação do Programa está atrelada, também, à salvaguarda do Patrimônio Gastronômico do Estado, como as culturas material e imaterial de grupos familiares, indígenas, quilombolas, comunidades de matriz africana ou de terreiro, pescadores artesanais, aquicultores, maricultores, silvicultores, extrativistas, cooperativas e associações.
"Quanto mais ações e projetos são desenvolvidos com esse conceito, o pertencimento e a autoestima do povo cresce. O orgulho em consumir o que é seu, fazendo parte desse movimento "pró cultura local" o torna mais forte e legítimo. A cultura alimentar ganha no que os seus mestres, seus tesouros e suas raízes ganham mais 'luz' e visibilidade, e ainda na sensação de pertença, que fica mais forte no dia a dia do cearense", reforça João Lima, que será o coordenador do Programa Ceará Gastronomia.
Economia criativa
A política pública acontece no âmbito da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult). De acordo com o secretário da Cultura Fabiano Piúba, a proposta explora a gastronomia como potência da economia criativa, mas também conecta com o meio ambiente e a sustentabilidade, a artesania e a diversidade cultural, além da geração de emprego e renda. "A responsabilidade foi ampliada porque nossa atribuição requer uma articulação intersetorial. Temos um desafio enorme, mas o êxito da missão persiste na atuação de maneira integrada e articulada com outros setores", afirma.
A pasta já conta com a experiência da Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco (EGSIDB), gerida pelo Instituto Dragão do Mar (IDM). O secretário também lembra que, na Estação das Artes — complexo cultural em construção na antiga Estação João Felipe, no Centro — irá funcionar o Mercado de Gastronomia.
Para Selene Penaforte, superintendente da EGSIDB, os impactos da nova Política Estadual serão percebidos de forma ampla. "Suas articulações serão sempre respeitosas com o mercado e, ao mesmo tempo, comprometidas com a identidade e o patrimônio da sociobiodiversidade cearense. A criação desta lei em muito reflete um conjunto de esforços do Governo do Estado para fazer da alimentação pauta central de suas políticas, seja para possibilitar segurança alimentar, gerar emprego e renda ou mesmo fortalecer laços identitários", comenta. Segundo a superintendente, a Escola de Gastronomia Social recebe o novo Programa com alegria. "Estaremos ainda mais fortalecidos, podendo ampliar nosso compromisso de formação e apoio à pesquisa".
Litoral, serra e sertão
"As culturas alimentares locais do Ceará, influenciadas pela biodiversidade do litoral, da serra e do sertão, ligam meio ambiente à economia, saúde e política, sendo um elemento social potente e frágil ao mesmo tempo. Porque enraíza nossa cultura e a expõe às constantes interferências", diz Kadma Marques, coordenadora do Observatório Cearense de Cultura Alimentar (OCCA) e colunista do O POVO. Para a professora, "os três microclimas que constituem a paisagem alimentar de nosso Estado não são unidades estanques". Há uma comunicação entre si, influenciando de forma mútua, mesclando passado ao presente. "A oferta local de alimentos se transformou de forma recorrente em hábito alimentar, formando o gosto de cada sociedade ou de cada segmento social, as lembranças coletivas e individuais, ativando sentimentos e conhecimentos", considera.
Vanessa Santos, pesquisadora do OCCA e consultora do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), frisa: quando não se sabia conservar ou produzir em escala, o alimento era o ponto central das decisões coletivas, "conferindo alto valor à comida de cada região". Isso liga o "pertencimento à cultura cearense, que se desdobra em modos de vida e discursos", afirma Kadma. Já ouviu alguém ser chamado de "caroço de angu" ou "cabeça de bagre"? A comida está no próprio dialeto "cearensês". Segundo a professora, o uso popular dessas expressões "apontam nossa interpretação da vida por meio de metáforas culinárias".
No vídeo a seguir, Kadma Marques e Vanessa Santos participam de bate-papo sobre a cultura alimentar cearense, realizado pelo canal no YouTube "Slow Food Brasil".
O POVO +
Na seção “Séries e Docs” do OP+, assinantes têm acesso ao documentário seriado “Ceará à Mesa”, com receitas da terra e entrevistas com chefs. Massa de camarão, caprese alencarina e atum dos verdes mares são alguns dos preparos.
Podcast Vida&Arte
O podcast Vida&Arte é destinado a falar sobre temas de cultura. O conteúdo está disponível nas plataformas Spotify, Deezer, iTunes, Google Podcasts e Spreaker.