O fim do mundo está por toda parte no novo romance de Ana Paula Maia, "De cada quinhentos uma alma" (Cia das Letras), segundo capítulo de uma trilogia que acompanha os passos de um grupo já conhecido dos leitores da escritora: Bronco Gil, matador nas horas vagas, Tomás, o ex-padre, e Edgar Wilson, um recolhedor de corpos.
O lugar é qualquer ponto de uma cidade perdida num rincão do Brasil. O tempo, um fragmento situado no agora ou num futuro próximo, no qual uma epidemia se sobreleva, carreando consigo elementos sobrenaturais e apocalípticos anunciados no vento e em acontecimentos cuja compreensão Wilson tenta capturar.
Acrescente-se certo elemento que confere à narrativa uma atualidade que desconcerta: o país, sob o governo de um capitão, conduz as pessoas a campos de morte, cenário que contraria mesmo a ética de um anti-herói como Wilson.
Habituado à morte e ao sofrimento, o personagem não tolera que se dê aos vivos o mesmo destino das carcaças encontradas às margens do asfalto, sem direito a luto ou lamento familiar. Qualquer semelhança com certo Brasil não será mera coincidência.
Na estrada novamente, o grupo parte então para entender o que se passa a sua volta, juntando pistas e colecionando, além de cadáveres na traseira de um caminhão, citações bíblicas e indícios de que algo insidioso os aguarda no horizonte.
Na mesma linguagem direta que a caracteriza, sem floreio ou maneirismos, vazada num brutalismo de inspiração na literatura, mas também em faroestes e filmes de terror dos anos de 1980, Maia investe numa história cujo principal atributo é talvez a capacidade de fundar paisagens e encenar dramas fora do cardápio que a literatura nacional costumeiramente oferece.
Nesse ponto, a escritora e a roteirista trabalham juntas – hoje a autora divide o tempo entre a elaboração de seus livros e roteiros para séries de televisão, como "Desalma", da Globoplay.
"Enterre seus mortos", o primeiro romance da trilogia, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura de 2019 (Maia foi a única autora até hoje a ganhar o prêmio duas vezes, consecutivamente), foi a porta através da qual esse universo violento se expandiu, despejando essas três almas num mundo acossado por degradação – a humana, corroída aos poucos, e a ambiental, demarcada por morticínio de bichos.
Cruzam-se, aí, os dois elementos da obra recém-chegada às livrarias: a moralidade do macho, oscilante entre uma religiosidade e uma ética da marginalidade, e um ímpeto de sobrevivência que se estende não apenas ao microcosmo das personagens, mas também ao próprio planeta.
Afinal, "De cada quinhentos uma alma" tematiza uma exaustão da natureza, explicitada no súbito perecimento de espécies animais que Edgar Wilson encontra. O que tem causado essa devastação? Quem está por trás das ordens de morte da população? Há uma autoridade a comandar esse necroprojeto?
Sempre em direção ao oeste, a caminhonete se desloca através da paisagem. O horizonte não traz respostas, apenas mais perguntas. A conclusão, adiada, se vislumbra na terceira parte da série.
Em conversa com O POVO de Curitiba, onde vive hoje, Ana Paula Maia fala sobre as linhas de força de seu trabalho e da construção livro a livro desse universo povoado por homens em conflito e animais entregues à própria sorte.
"Como minhas histórias estão afastadas das cidades, quando pegamos a estrada o cenário muda, a paisagem muda. Nesse ambiente rural e afastado, a presença animal é imprescindível", conta a escritora, que acrescenta:
"Acho que a gente não percebe o quanto está próximo do bicho. A gente carrega o sangue dele e a carne dele todo dia. A gente tem essa relação. Estamos muito entrelaçados com o animal".
Essa animalidade é apenas uma das chaves de interpretação da obra da autora. Nela, o humano é fator de predação do mundo que o cerca. A geografia é a de um Brasil rural onde as questões éticas se adivinham mais nos gestos do que nas falas.
Combinando distopia ambiental e política, religiosidade e entretenimento, "De cada quinhentos uma alma" alarga a paisagem literária contemporânea, excessivamente concentrada em relatos de autores em torno de cotidianos de classe média branca de grandes cidades como São Paulo e Rio.
Estante de livros
A planta do mundo, de Stefano Mancuso
Editora Ubu
192 páginas
R$ 59,90
Catorze camelos para o Ceará, de Delmo Moreira
Editora Todavia
288 páginas
R$ 74,90
Hello, Brasil! e outros ensaios, de Contardo Calligaris
Editora Fósforo
328 páginas
R$ 69,90
O homem do casaco vermelho, de Julian Barnes
Editora Rocco
272 páginas
R$ 79,90
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