O ano era 1994. Enquanto Renato Russo tentava ficar mais confortável em seu quarto para uma entrevista para a MTV, o jornalista Jorge Espírito Santo o questionava sobre os motivos pelos quais a Legião Urbana despertava “tanta curiosidade” nas pessoas devido ao caráter “diferente” do grupo de rock. Em resposta, o líder da banda sugere: “Acho que é porque as letras e a nossa própria atitude falam de nós, então se de repente uma pessoa que ouve uma canção da Legião Urbana se identifica e gosta dela, ela vai sentir que aquilo é uma coisa que está sendo dita para ela mesma”.
Momentos antes, na mesma entrevista dada dois anos antes de sua morte causada por complicações associadas à aids, ele é perguntado sobre como definiria a banda, no que responde que seria “apenas um conjunto de rock”. Com tantos prêmios e álbuns vendidos, é possível dizer que a Legião Urbana não se configura como “apenas” uma banda, pois tem grande influência até hoje. A mesma situação pode ser dita sobre o vocalista, mas com acréscimos: além do cantor, é preciso falar do poeta e do dramaturgo Renato Russo neste 11 de outubro.
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As lembranças a respeito dos “outros lados” não tão repercutidos sobre Renato Russo começam com a reflexão proposta pela doutora em literatura brasileira, Julliany Mucury, sobre a vertente poética do artista. Motivada pelo questionamento se ele realmente seria um poeta, Mucury desenvolveu, por mais de dez anos, um projeto de pesquisa para seu doutorado na Universidade de Brasília (UnB). A tese “Renato Russo – Um eu em colisão consigo mesmo: construtos poéticos-musicais” se desdobrou no livro “Renato, O Russo”, que será lançado a partir de financiamento coletivo.
A obra busca compreender como Renato Manfredini Júnior - nome de origem do cantor - se tornou Renato Russo. Nessa iniciativa, percorre desde o início de sua carreira até o fim dela, reunindo as letras compostas em conjunto com Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá e principalmente as que escreveu sozinho. Em relação às autorais, são analisadas 29 canções feitas pelo artista.
O trabalho de Julliany busca apresentar o seu lado “cancionista” - termo cunhado pelo pesquisador Luiz Tatit para “classificar um sujeito que, além de fazer a letra de canção, consegue escrever também a melodia e associar tudo isso em uma mensagem a mais”. Aliado ao seu poder vocal como intérprete e às "performances" apresentadas em shows, Renato ainda conseguia “se dividir em uma dicotomia” entre sua origem (Manfredini Jr.) e o personagem que criou (o cancionista Russo).
Essa situação teve início quando começou a fazer anotações - muitas vezes em inglês - em cadernos sobre a história da “The 42nd St. Band”, banda imaginária que era liderada por “Eric Russell” (nome em homenagem ao matemático Bertrand Russell e ao filósofo Jean-Jacques Rousseau). “Ele cria esse personagem (Renato Russo), que consegue se portar bem diante dos repórteres, dos jornalistas e da indústria, ou seja, que dá conta de tudo”, comenta Julliany Mucury. Além disso, o “Russo” de Renato reúne consigo o conhecimento adquirido pelo Manfredini Jr. e o incorpora em suas produções.
As canções de Renato o ajudaram “a encontrar seu lugar no mundo”, algo que se refletiu também para os seus fãs, na opinião de Julliany. “Isso se deve à profundidade das letras, às camadas que o Renato consegue atingir quando ele resolve falar sobre o sujeito contemporâneo, e isso na década de 1980. As suas letras ainda continuam comunicando e isso com certeza tem a ver com um projeto de deixar legados históricos, sociais e políticos que se refletem também nas questões amorosas e existenciais das pessoas que escutam Legião Urbana”, acrescenta.
Entre as 29 canções analisadas pela pesquisadora estão clássicos como “Geração Coca-Cola”, “Eduardo e Mônica”, “Tempo Perdido”, “Faroeste Caboclo” e “Que País É Este?”. Além disso, há músicas como “Vamos Fazer Um Filme”, “Vinte e Nove” e “Boomerang Blues”. “Todas as canções no livro refletem poeticamente o Renato em um viés diferente, sejam as que falam de amor ou as que falam de protesto político, elas servem como um retrato histórico do tempo que ele viveu”, avalia Mucury.
Para Julliany, Renato “se deixava contaminar por todas as referências possíveis e imagináveis”, e a atemporalidade de suas composições está atrelada também à profundidade das histórias contadas nas músicas (“a maioria das letras são histórias sobre a metrópole, o amor, a dor de existir e à sobrevivência neste mundo”). Em alguns casos, com o uso da ironia, como em “Índios” e em “Perfeição”, que “nos fazem refletir sobre questões ainda atuais”. “Hoje mais do que nunca estamos vendo o que está acontecendo no cenário político, social e econômico do País e o Renato continua fazendo sentido”, complementa.
Embasada também na teoria sobre o “amor líquido” do sociólogo Zygmunt Bauman, Mucury aponta que Renato “já entendia que estava havendo uma transformação nas relações humanas da década de 1980 em diante”, tema sobre o qual muito escrevia. Além disso, as composições do vocalista podem servir para contar a própria história de sua vida.
“Nós acompanhamos nos três primeiros álbuns um Renato Russo que escreve músicas de protesto porque era um jovem que estava compondo essas músicas quando foi um 'Trovador Solitário'. Depois, você tem um sujeito mais experimentado pela vida, que sofreu amores e decepções amorosas, foi diagnosticado com aids e adota uma criança. Então, ele encontra os outros sujeitos e as outras pessoas de um jeito muito honesto, e quando ele coloca essa verdade e esse sentimento, as pessoas que realmente escutam e prestam atenção nas letras da Legião Urbana se sentem conectadas com esse sujeito”, discorre.
Trazer Renato Russo para os dias atuais não significa apenas continuar lembrando de sua obra, mas também ter a possibilidade de imaginar como seriam suas produções caso ainda estivesse vivo. Ao analisar a trajetória do vocalista, Julliany aponta que possivelmente ele desenvolveria outros lados artísticos - e trazendo a “inovação” como carro-chefe. Fosse desenvolvendo roteiros para o cinema, escrevendo livros ou tendo presença no teatro, para a pesquisadora “ele seria muito fiel ao que quisesse fazer”, independentemente do que o público fosse achar. Não à toa, então, chegou a lançar em vida álbuns em inglês e em italiano.
Se pensarmos sob o ponto de vista de temáticas que seriam exploradas por Renato, Julliany é enfática: ele não estaria “conformado” com o Brasil atual. “Quando pensamos na constância desse sujeito que escreve letras como ‘Perfeição’ e ‘Que País É Este?’ com certeza podemos dizer que ele não estaria conformado e deixaria mensagens muito importantes de conscientização”. Pregando o “amor ao próximo” e sendo “contra a vilania”, o cancionista continuaria a pensar em “uma sociedade mais utópica e sonhadora”.
Versos da música “Mais Uma Vez", composta por Renato Russo e Flávio Venturini, são evocados por Julliany Mucury quando o assunto se trata dos legados deixados pelo líder da Legião Urbana. No famoso trecho “Quem acredita sempre alcança”, uma mensagem se destaca para a doutora em literatura: a “positividade”. Em sua visão, é o que “mais precisamos atualmente”.
“Eu gosto muito das mensagens do Renato quando ele prega o amor ao próximo, mas de uma maneira honesta e genuína e de uma forma para que você trabalhe isso como algo real na sua vida: ter a esperança. Quando falamos ‘Mas é claro que o sol vai voltar amanhã’, muitos pensam que é uma frase boba, mas ela ajuda muito no sentido de potência de vida de qualquer indivíduo a acreditar que existem chances diante dos cenários caóticos que vemos hoje”.
Ela complementa: “Eu acho que poesia é isso. Poesia é esperança. Então, o maior legado do Renato é a poesia que está embutida no que ele escreveu. Ele deixou um legado profundamente poético e que é muito importante para as pessoas”.
As produções de Renato Russo não se restringiram ao campo musical. O teatro também fez parte de sua vida. Foi em 2013 que o jornalista cultural, artista, pesquisador e crítico de teatro Diego Ponce de Leon teve em mãos a primeira - e, como alega, única - peça escrita por Renato Russo. Desenvolvido em 1982, quando Renato tinha cerca de 22 anos e ainda era conhecido apenas pelo seu sobrenome de origem, o texto estava restrito até então a familiares e amigos próximos do vocalista da Legião Urbana.
Acostumado a realizar pautas que envolviam Renato, Diego recebeu o conteúdo a partir de um amigo próximo de Russo. Não foi só o curioso nome da peça que chamou a atenção de Diego. Um outro aspecto foi marcante em relação à “A Verdadeira Desorganização do Desespero”: a peça estava com duas páginas faltando.
Após repercussão nacional a partir de matéria sobre a descoberta da dramaturgia, Ana Cristina Ferreira, grande amiga de Renato, soube do ocorrido e encaminhou as páginas que restavam a Diego - acontece que Ana havia recebido uma cópia original do próprio vocalista. Com isso, o “lado dramaturgo” de Renato poderia ser mais conhecido.
Diego, então, incorporou essa descoberta a sua dissertação de mestrado em Artes Cênicas pela Universidade de Brasília (UnB). Intitulada “O Metateatro de Renato Russo - Dramaturgo Solitário”, a pesquisa trouxe como um de seus processos uma leitura dramática de “A Verdadeira Desorganização do Desespero” em 2017. “A peça não poderia deixar de ser uma loucura”, como afirma.
Em sua obra, Renato Russo usa o aspecto do “metateatro”, ou seja, “uma peça que fala sobre uma peça”. O trabalho apresenta jovens “conduzidos por uma figura chamada Robert”. A partir de análises e metáforas sobre situações cotidianas, o autor faz provocações “relacionadas à elite, ao comportamento do jovem, ao entretenimento e à música”. “Esse mesmo Renato Russo que nós conhecemos, que depois veio a contestar muito do status quo a partir da música, já fazia isso no teatro. Era um Renato ainda na juventude, buscando as melhores ferramentas para canalizar suas inquietações”, alega Diego Ponce de Leon.
A qualidade do texto da peça chamou a atenção de Diego, assim como a capacidade do autor de falar “com propriedade” de uma forma tão profunda sobre teatro. As referências de Renato - na época apenas Manfredini Jr. - traziam Shakespeare e o teatro grego, por exemplo, para dentro de seu universo criativo. Diante disso, o crítico teatral analisa que “será preciso um grande diretor” para dar conta do trabalho desenvolvido pelo dramaturgo Renato: “Não é uma peça fácil de se traduzir para o público mantendo a sua essência e ao mesmo tempo convidando para um diálogo mais acessível. É uma peça que tem muitas rupturas e um aprofundamento muito grande em alguns aspectos do teatro”.
Diante da enormidade analisada, Diego lembra da experiência “especial” que teve com a leitura dramática do material produzido por Renato Russo. Uma das poucas pessoas a ver a peça na íntegra, o crítico de teatro traz à luz o interesse e o "apelo" de jovens estudantes de artes cênicas da UnB quando ocorreu a seleção para participação na leitura. “Você percebe como a figura do Renato Russo ainda tem uma ligação muito forte com o público jovem, como ele ainda é pertinente e como as pessoas estão sedentas por qualquer coisa que existir a respeito dele”, comenta.
A ligação com o líder da Legião Urbana, por sinal, era um dos requisitos para a seleção. “Eu não queria que participassem desse processo pessoas aleatórias só pelo fato de a peça ter sido escrita pelo Renato. Eu queria realmente pessoas que entendessem a importância daquilo”, garante Diego. A leitura dramática conseguiu reunir uma atriz que saiu de um processo de depressão escutando Renato Russo e um ator cuja primeira peça de sua vida foi interpretando o cantor, o que reforçou, assim, a relevância do artista em suas vidas.
Na plateia da apresentação estavam estudantes e até familiares de Renato, como sua irmã Carmem Manfredini. Nos olhos dos espectadores, a curiosidade pelo que o “outro lado” do líder da Legião Urbana teria a dizer e, ao fim da experiência, “muita emoção, muito choro e muitos arrepios”, como assegura o pesquisador. Carmem, especialmente, ficou bastante emocionada, pois “viu seu irmão em cada fala”. Além disso, destacou a importância de se ter contato com o “lado” teatral pouco falado de Russo.
O lado voltado para as artes cênicas de Renato, aliás, conservava uma característica marcante dele que acabaria ecoando em seus outros trabalhos: o desejo de “deixar as pessoas inquietas”. Na avaliação de Diego Ponce de Leon, o “grande dramaturgo” Renato incorporava até um pouco do título de sua peça: buscando “organizar a desorganização”, ele queria que as pessoas repensassem o modo como agiam e fossem mais críticas.
“O Renato não queria passar despercebido na vida das pessoas, e com a peça de teatro também não. Ali vemos um Renato que nos inquieta, que nos convoca a sermos mais críticos e mais analíticos sobre o nosso dia a dia. Além disso, a sermos pessoas melhores”, complementa Diego.
Nesse sentido, é possível notar um dos legados deixados por Russo, na opinião de Diego: “É um cara que conforta muito as inquietudes que todos nós temos principalmente na juventude, quando somos tomados por uma vontade de mudar o mundo, e esse cara vem e organiza esse desespero”.
Ele ressalta a importância do cancionista e dramaturgo: “O Renato nos tira de uma passividade enquanto cidadãos e espectadores e nos traz para um protagonismo da nossa história, de onde vivemos e do País. Ele nos convida a repensar de forma micro e macro Nos faz pensar sobre quem somos e aonde queremos ir. Acho que talvez esse seja o maior legado do Renato Russo”.
Os direitos do texto continuam restritos à família do cantor, então não há previsão de encenação pública da peça. Ainda assim, é possível apontar que os caminhos trilhados por Renato Manfredini Jr - e, então, Renato Russo - em diferentes linguagens deixaram rastros e influências para diferentes áreas - como cinema, por exemplo - e idades. Enquanto sua obra permanecer no imaginário de quem admira seu trabalho, seu legado remanescerá, e as próximas gerações poderão confirmar que, de algum modo, mesmo após anos de sua passagem, Renato vive.
*Os trechos das análises foram retirados do livro “Renato, O Russo”, de Julliany Mucury. É possível ter acesso completo ao conteúdo a partir da compra da obra.
As 29 letras de músicas escolhidas para análise da doutora em literatura Julliany Mucury foram assinadas exclusivamente por Renato Russo. Como menciona em seu livro, a escritora alega que as composições “funcionam como o álbum da construção de um sujeito que amadurece diante da vida e também por meio da mensagem que usa para transmitir o seu projeto estético”.
“A arte surge como construção desse ser líquido e fragmentado que é no momento e que busca, ao longo da vida e do seu transcorrer, um entendimento maior de si, do outro e da jornada como um todo. Aqui está o intento do cancionista, Renato Manfredini Jr., e a mensagem que quer transmitir, e da sua persona, Russo, que dialogo com o seu tempo e com as inquietudes do sujeito moderno (pós-moderno, hipermoderno, atual). Começa aqui a jornada de uma vida nas quatro estações que a compõem: nascimento, juventude, vida adulta e morte”, acrescenta Mucury.
“A primeira letra de Russo foi ‘Geração Coca-Cola’ e os primeiros versos dessa letra utilizam a primeira pessoa do plural e já ditam o tom do discurso, com um sujeito que se inclui no grupo refém de imposições vazias, ironizando o ‘sistema’: ‘Quando nascemos fomos programados’ serviu para aproximar ainda mais o autor da geração para a qual ele remete sua poesia, ambos em busca de uma identidade própria – mais uma vez com o apelo da/para a juventude.
O contraponto ‘vocês’ serve de máscara para incluir o outro que impõe o que não é aceito: ‘A receber o que vocês / Nos empurraram com os enlatados / Dos U.S.A., de nove às seis. / Desde pequenos nós comemos lixo / Comercial e industrial’. A rebeldia dos jovens e o espírito de contestação são também afirmativas deste sujeito: ‘Mas agora chegou nossa vez / Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês / Somos os filhos da revolução / Somos burgueses sem religião / Somos o futuro da nação / Geração Coca-Cola’.
A lei surge como mensagem de doutrinação e rigidez a ser quebrada, os enlatados americanos, juntamente com seu cinema e seu refrigerante reforçam essa cultura do entretenimento e espetáculo, que ofusca a visão e não permite ver com clareza a realidade, corroborando uma postura passiva e permissiva. Por ser a primeira composição de Renato, revela muito do que ele já entendia como espírito de sua juventude, na negação do conforto do modelo de espectador e consumidor de produtos estadunidenses, um ‘burguês sem religião’, notadamente Manfredini Jr. ironizando sua própria condição privilegiada”.
“[...] Neste vão está o sujeito contemporâneo. Entre o ego e a síndrome de Burnout. Nesta dificuldade entre enxergar a diferença em tempos cada vez mais líquidos e nos quais as pessoas não interagem. Russo tenta dar conta desse sentimento na canção “Por enquanto”, que foi regravada algumas vezes.
“Mudaram as estações e nada mudou / Mas eu sei que alguma coisa aconteceu / Está tudo assim tão diferente / Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar / Que tudo era pra sempre / Sem saber / Que o pra sempre / Sempre acaba?”. Memento mori inserido na canção, o luto pela certeza do fim, antes mesmo do começo: lembre-se de que tudo deve morrer, que acaba.
O eu nesta composição e o outro passaram por uma transformação conjunta. Em contraste com o exterior, imutável, lento, no interior do ser aconteceu uma mudança que não foi bem capturada ou entendida, mas que está refletida no outro, também vitimado pela ação aparentemente inofensiva da passagem das estações, o imutável, pois elas continuarão a passar, continuamente. A perda da inocência é revelada: nada dura para sempre, tudo tem fim. E um mal-estar recai nos sujeitos que vivem essa transição: “Mesmo com tantos motivos pra deixar tudo como está / E nem desistir, nem tentar / Agora tanto faz / Estamos indo de volta / Pra casa”.
Resignados, trilham o meio-termo entre o nada e a tentativa. Sem forças, entregam-se à segurança e retornam ao eixo: a casa. Este local de sossego e retorno é o futuro da juventude da geração Coca-Cola, que também entrega as decisões para outro tempo, esperando que tudo se ajeite.
“A história de amor aqui narrada sempre surgiu como um relato clássico das relações amorosas marcadas pela superação das dificuldades do cotidiano. Sem idealizações, o que se vê são personagens próximas ao sujeito comum, situadas em um especial espaço urbano: a cidade de Brasília.
Os primeiros versos apresentam um senso comum, que teoricamente não pode ser posto à prova, e que retorna como refrão para consolidar este entendimento: “Quem um dia irá dizer / Que existe razão / Nas coisasfeitas pelo coração / E quem irá dizer / Que não existe razão?”. Com a pergunta retórica, o cancionista lança a proposta desta letra que logo em seguida apresenta versos que demarcam o caráter das personagens: enquanto Eduardo acorda, Mônica toma um conhaque no outro canto da cidade. No fim desta estrofe surge um elemento que agrega verossimilhança ao enredo: “como eles disseram”, assim o narrador demarca que essa história de fato existiu e posiciona-se como onisciente diante do desenrolar das ações.
As vozes são variadas, vão desde o testemunho de Eduardo e Mônica à menção de falas dos amigos dos personagens: todos criam uma polifonia que endossa a voz do narrador. Discursos direto e indireto se entrelaçam, e nas estrofes seguintes os personagens se encontram em uma festa, da qual Eduardo sai alcoolizado e Mônica demonstra interesse pelo “boyzinho que tentava impressionar”. O uso dos diminutivos: “festinha”, “carinha”, “boyzinho” aproxima o discurso da oralidade, da informalidade e do teor da narrativa, que trata do universo jovem da cidade e dos encontros e desencontros de um romance que se desenrola nela, ao acaso: “Eduardo e Mônica um dia se encontraram sem querer / E conversaram muito mesmo pra tentar se conhecer”.”
“[...] A juventude sofre os efeitos do tempo. Na divisão ocidental de estudos versus faixa etária, os privilegiados que frequentam o ensino regular desde a infância encontram na adolescência o desafio de lidar com limites, ócio, transformações e tédio. Neste campo de pensamento, o sujeito de “Tempo perdido” estabelece um tempo próprio, articulado diariamente, desde o instante em que ele acorda ao em que se recolhe. Este sujeito se constrói a partir das regras e ditames que lhe são apregoados como cantos ancestrais, escritos em alguma pedra perdida em algum texto sagrado.
Na contagem do tempo, com o passar dos dias, constrói-se a ideia de que o que passou está perdido e que não há tempo a perder. O trabalho, representado pelo “suor sagrado”, contrapõe-se ao “sangue amargo”, sendo mais sério e selvagem que as agruras do cotidiano. Na urgência da fuga do tempo comum, o eu-lírico versa em uma contradição: “Veja o sol dessa manhã tão cinza / A tempestade que chega é da cor dos teus olhos castanhos”.
Essa manhã que anuncia uma tempestade tem um sol entre o cinza e a cor dos olhos de um outro sujeito, fincada no horizonte, “castanhos”, a tempestade como metáfora do fim. “Tempestade” é o último álbum da Legião Urbana.
O embate interior aqui se revela poeticamente na construção dessa imagem, uma das mais belas compostas por Russo. Sugestão do sofrimento que vem com os tons alheios, a letra aponta uma fuga, no instante do abraço, no flagrante da angústia pela falta de luz e por promessas antagônicas: “E o que foi prometido, ninguém prometeu / Nem foi tempo perdido / Somos tão jovens”.
Ainda na temática da juventude, o poeta mais uma vez aponta para o “Ainda é cedo”, por ser ele e o outro “tão” jovens, intensificador que revela um tempo que se faz longo, que não urge, aceita erros e sugere um universo de possíveis construções e visões de futuro. É a angústia que os filósofos e pensadores do nosso tempo capta no sujeito pós-moderno: ter todo o tempo do mundo, mas não poder perdê-lo. A questão é: por onde começar?”
“[...] Como o cancionista veste aqui o olhar desse sujeito que recebe o “conquistador”? Transgredindo. O primeiro verso dessa letra de canção começa com o eco de “Fábrica”: “Quem me dera, ao menos uma vez”, o desejo é o mesmo do operário que calava seu sofrimento. Em “Índios” o sujeito evoca o passado e roga por uma impossibilidade, pois o que ele deseja recuperar já não pode mais ser trazido de volta. No decorrer desta letra há uma confusão de vozes, entre a do índio e a do sujeito que atende por todos os rótulos. Assim o cancionista apresenta uma sucessão de desenganos, de arrependimentos e frustrações que vão além da tribo.
Na primeira estrofe, a amizade foi o mote para a exploração, o ouro foi levado em nome dessa mentira e o sujeito deu ao outro até o que não tinha. Na segunda estrofe, a ostentação, com panos de chão “feitos de linho nobre e pura seda”, diante de um sujeito que não acreditava ser possível o absurdo, que constata a insanidade e é incapaz de esquecê-la: “Quem me dera, ao menos uma vez, / Esquecer que acreditei que era por brincadeira / Que se cortava sempre um pano-de-chão / De linho nobre e pura seda. // Quem me dera, ao menos uma vez, / Explicar o que ninguém consegue entender: / Que o que aconteceu ainda está por vir / E o futuro não é mais como era antigamente”.
Ergue-se a desilusão diante da repetição da exploração, da ganância cega e destruidora, que sucumbe diante do luxo, do poder. “Índios” poderia ser o retrato de qualquer nação, de reinos e impérios, pois sua universalidade abrange os operários, os trabalhadores, os explorados. A voz do sujeito toma essa dimensão e vai além, questiona também o amor a um Deus assassinado pelos próprios fiéis, amado e morto, o incompreensível.
O refrão apresenta uma quebra temática, que traz de volta a canção para o âmbito da relação ambígua entre dois indivíduos: “Eu quis o perigo e até sangrei sozinho / Entenda /Assim pude trazer você de volta pra mim / Quando descobri que é sempre só você / Que me entende do início ao fim. / E é só você que tem a cura pro meu vício / De insistir nessa saudade que eu sinto / De tudo que eu ainda não vi”.
Ao expor-se à dor, o sujeito evoca o outro, aquele capaz de lidar com seu íntimo, trazendo a cura para um vício paradoxal – o da saudade por tudo que ainda não se viu/viveu. Essa saudade pautada na suposição é também a que resgata esse outro, cuja retribuição é desconhecida, tal como na relação do índio com o conquistador, que oferecia objetos banais em troca de tesouros, abusando da inocência do conquistado”.
“Geração Coca-Cola”
“Por Enquanto”
“1977”
“Eduardo e Mônica”
“Tempo Perdido”
“Metrópole”
“Música Urbana 2”
“Fábrica”
“Índios”
“Que país é este?”
“Tédio (Com um T bem grande para você)”
“Depois do começo”
“Química”
“Eu sei”
“Faroeste caboclo”
“Feedback song for a dying friend”
“Monte Castelo”
“A canção do senhor da guerra”
“Vinte e nove”
“Vamos fazer um filme”
“1º de julho”
“Dado viciado”
“Marcianos invadem a terra”
“Mariane”
“Boomerang Blues”
“Mariane 2”
“Apóstolo de São João”
“Vício moderno”
“Medieval”