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Nada será como antes: as transformações nas novelas brasileiras
Vida & Arte

Nada será como antes: as transformações nas novelas brasileiras

Há sete décadas, as telenovelas brasileiras mantêm um público fiel e se sustentam como produtos rentáveis. Agora, as obras enfrentam os tempos de pandemia e se reinventam como "obras fechadas"
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Novela Amor de Mãe. (Foto: Divulgação/Rede Globo)
Foto: Divulgação/Rede Globo Novela Amor de Mãe.

Quando Sinhozinho Malta, interpretado pelo ator Lima Duarte em Roque Santeiro (1985), sacudia o relógio e as pulseiras de ouro que trazia no braço, ouvia-se o som de uma cascavel misturado ao chocalho dos acessórios. “Tô certo ou tô errado?”, perguntava, indignado — e o bordão caiu na boca do povo.

Anos depois, em 1997, Dona Altiva (Eva Wilma) em “A Indomada” também se incorporou ao cotidiano brasileiro com seu famoso “Oxente, my God!”. “Não é brinquedo, não!”, de Dona Jura (Solange Couto) em ""O Clone" (2001); “É a treva!”, de Bianca (Isabelle Drummond) em “Caras e Bocas” (2009); “Salguei a santa ceia”, do inesquecível Félix (Mateus Solano) em “Amor à Vida” (2013): a telenovela nacional já tem mais de 70 anos de história, mas qual o futuro do produto mais rentável da indústria cultural do País?

Escrita e dirigida por Walter Forster, "Sua Vida Me Pertence" foi a primeira telenovela nacional. A obra, exibida pela extinta TV Tupi São Paulo entre 21 de dezembro de 1951 e 15 de fevereiro de 1952, foi inicialmente apresentada ao vivo e duas vezes por semana. Ator de rádio, cinema e teatro, o pioneiro Forster — que interpretou o personagem principal na trama — protagonizou o primeiro beijo da televisão brasileira e compreendeu o apelo da radionovela nas telas. Dos aparelhos de TV nas calçadas aos episódios finais comentados em bares e ônibus, a novela cria sensibilidade coletivas.

"Sua vida me pertence", primeira telenovela brasileira(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação "Sua vida me pertence", primeira telenovela brasileira

Paulo Marinho, diretor de Canais da Globo que assumirá a presidência executiva da empresa em fevereiro de 2022, pontuou em artigo ao jornal O Globo: "A forma como os brasileiros pensam os laços de amor, amizade, família e as relações humanas mais essenciais passa muito pelo jeito como nossas histórias foram e ainda são contadas pelos talentos da nossa dramaturgia. A telenovela também reflete o País que somos e queremos ser. Ela é janela e espelho".

Temas como clonagem humana, vida após a morte, eutanásia, doação de órgãos, racismo, dependência química, homoafetividade, machismo, feminicídio e crise ambiental atravessaram e seguem em pauta nas novelas brasileiras, num reflexo de um produto que fala da sociedade e também transforma essa sociedade.

Historicamente, a narrativa da telenovela tem sua origem no melodrama, que desde o século XVIII influencia as artes dramáticas. O desenvolvimento do gênero melodramático se deu no contexto da Revolução Francesa, num período de profundas transformações na França, e se caracteriza em torno do bem e do mal, do oral, do excesso estético, dos juízos morais, dos jogos sentimentais, da intensificação das virtudes e vícios dos personagens, vilões ou heróis.

A centralidade do melodrama na América Latina, para o semiólogo, antropólogo e filósofo colombiano Jesús Martín-Barbero (1937-2021), cultiva uma forte ligação com a cultura dos contos e das lendas, a literatura de cordel, as crônicas cantadas. O gênero mantém ainda o predomínio da narrativa oral, da presença do narrador estabelecendo a continuidade dramática. No Brasil, a telenovela surgiu quase ao mesmo tempo da inauguração da televisão — em 1950 —, e a partir de 1963 sua veiculação se tornou diária e decisiva na constituição do espaço público.

Novela O Clone.(Foto: Divulgação/Rede Globo)
Foto: Divulgação/Rede Globo Novela O Clone.

"Por volta da década de 1970, quando o Brasil atravessava um contexto social e político muito específico, as telenovelas passaram a assumir características mais realistas, passaram a ter como cenários e panos de fundo eventos nacionais, as grandes capitais do País e personagens típicos da nossa sociedade, abordando temas que estavam em pauta no nosso dia a dia. Ou seja, a telenovela brasileira foi cada vez mais assumindo a característica de falar do seu próprio povo e para o seu próprio povo (mediando nesse processo tanto demandas do público quanto também demandas institucionais e mercadológicas)", destaca Mariana Almeida, jornalista e doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

 

Para Mariana, surge daí a inserção cada vez maior de temas gerais/nacionais inseridos em dramas pessoais como alfabetização e reforma agrária "— uma especificidade do próprio melodrama, gênero ainda preponderante no formato folhetinesco da telenovela e que tem essa capacidade de se transformar e se adaptar aos diferentes contextos sociais e tecnologias. Os incrementos narrativos dessas obras acompanham os incrementos técnicos (que permitiram, por exemplo, maior utilização da profundidade de campo diante do aumento na qualidade da imagem e dos próprios aparelhos televisivos) e as mudanças no mercado audiovisual potencializadas pelos serviços de streaming. Esses fatores colaboram para a construção de histórias mais complexas, mais elaboradas, com trama e subtramas mais trabalhadas e conectadas entre si", explica a pesquisadora.

Ao longo das últimas sete décadas, a programação da telenovela brasileira — e de toda a grade televisiva nacional — experimentou alterações nos formatos, horários, personagens e demais demandas exigidas pelo público e pelo mercado. "Mesmo com todas as muitas e aceleradas transformações da televisão nos últimos anos, a TV broadcasting brasileira (ou aberta, como costumamos chamar) continua a se direcionar para um público amplo, diverso e que compartilha repertórios comuns do país.

 

"As novelas continuam a dizer sobre nossa própria história cultural, sobre a nossa própria realidade, sobre quem fomos e quem somos." Mariana Almeida, jornalista e doutoranda em Comunicação pela UFMG

 

A TV aberta vive hoje um processo de adaptação aos novos contextos (com ficções seriadas que, por exemplo, também são produzidas já pensando em uma exibição potencialmente global), mas ainda assim segue colaborando na constituição de um imaginário de nação, com telenovelas ainda sendo um recurso comunicativo para tratar, inclusive de temas sensíveis à sociedade brasileira, o que nos atravessa, o que compõe nosso cotidiano, tempo e espaço", explica Mariana. "Ainda que as histórias sejam agora, desde o início, produzidas para um consumo transnacional, elas continuam a dizer sobre nossa própria história cultural, sobre a nossa própria realidade, sobre quem fomos e quem somos", adiciona ainda.

 

As novelas ainda serão obras abertas?

As novelas, por excelência, são obras abertas — ou seja, é possível ampliar, reduzir, criar ou alterar tramas e participações de acordo com o interesse do público. O Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) é o termômetro da audiência: a partir de janeiro de 2022, um ponto no Ibope na Grande Fortaleza, por exemplo, passará a indicar 12.193 espectadores por domicílio ou 36.995 indivíduos. Com a pandemia de Covid-19, no entanto, as emissoras brasileiras precisaram readequar as gravações e o formato das novelas foi alterado.

 

"Amor de mãe" sofreu adaptações por causa da pandemia de Covid-19(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação "Amor de mãe" sofreu adaptações por causa da pandemia de Covid-19

Escrita por Manuela Dias com direção geral e artística de José Luiz Villamarim, a novela global "Amor de Mãe" estreou no horário nobre em novembro de 2019, substituindo A Dona do Pedaço. Após 102 capítulos exibidos, entretanto, a transmissão foi interrompida em 21 de março de 2020 por causa da pandemia e a retomada das gravações só aconteceu em 10 de agosto. Na segunda parte da trama, a autora optou por incluir a pandemia como parte da história.

"As telenovelas atuam na mediação entre matrizes culturais, formatos industriais, lógicas da produção e competências de consumo onde também operam temporalidades, espacialidades, sensibilidades, ritualidades, institucionalidades, identidades entre outros fatores. Isso quer dizer que essas produções não estão deslocadas da realidade na qual estão inseridas e da qual fazem parte. Enquanto narrativas sobre a nação, até hoje, e narrativas melodramáticas componentes de uma modernidade heterogênea como é a latino-americana, as telenovelas ainda se constituem como dramas do reconhecimento, uma busca pelo reconhecimento de si e do outro (a mãe em busca do filho roubado em "Amor de Mãe", por exemplo) e que dialogam diretamente com histórias individuais e coletivas da audiência, sendo um modo de enxergar e experimentar a própria vida na ficção", ressalta Mariana Almeida.

Novela Amor de Mãe.(Foto: Divulgação/Rede Globo)
Foto: Divulgação/Rede Globo Novela Amor de Mãe.

"O caráter de obra aberta das telenovelas faz com que a temporalidade da ficção se misture e se confunda com a temporalidade da vida de quem assiste e isso permite, por exemplo, que as narrativas se adaptem aos contextos em transformação, se adequem às experiências vividas fora das telas, possibilitam mudanças na trama a partir dos contextos e demandas sociais. A inserção da pandemia de Covid na trama da novela funciona para constatar que, mesmo com todas as mudanças na audiência, no mercado, no formato, as impostas pela crise sanitária etc, as telenovelas continuam a mesclar dramas pessoais com histórias nacionais, continuam na busca por se conectar ao público para o qual de início se direciona, por tornar possível o reconhecimento de si e do outro nos dramas fictícios".

“Um lugar ao Sol” e “Nos tempos do Imperador” entraram na grade da programação para provar que nada será como antes. Folhetim que marcou a estreia da autora Lícia Manzo no horário nobre da TV Globo, "Um Lugar ao Sol" tinha apenas algumas cenas gravadas no exterior quando teve a primeira paralisação. A retomada aconteceu pouco depois, mas as incertezas sobre saúde e segurança tornaram a novela inovadora: além do ritmo mais lento de gravação, que lhe garantiu dois anos de produção e uma qualidade de série, a obra estreou já toda gravada, sem possibilidade de mudanças ao gosto do público. Os finais são alternativos, mas a mudança inaugura novas formas de produzir audiovisual no País.

Novela Um Lugar ao Sol.(Foto: Divulgação/Rede Globo)
Foto: Divulgação/Rede Globo Novela Um Lugar ao Sol.

Autora de novelas de sucesso como "De Corpo e Alma" (1992), "O Clone" (2001), "América" (2005), "Caminho das Índias" (2009) e "A Força do Querer" (2017), Glória Perez comentou em live com o jornalista Luis Erlanger não gostar do novo formato. "Eu acho que novela fechada não é mais novela. A característica básica é ser obra aberta, ter o diálogo com o público. Acredito que isso está acontecendo agora por causa do vírus, por causa da Covid-19, mas não acredito que isso permaneça. Como você escreve uns 180 capítulos sem poder mudar nada… É muito difícil!".

Para Mariana, "Um Lugar ao Sol" acompanha em certa medida tendências recentes de transformação dessas narrativas para se adequar aos novos contextos de consumo intenso e acelerado de séries e outros produtos audiovisuais. "O ritmo na relação de causa e efeito dos acontecimentos assume outros contornos, por exemplo.

Ainda é difícil dizer por serem mudanças muito recentes que ainda demandam vários estudos, mas as novelas atuais (a exemplo das duas últimas inéditas das 21h) parecem aos poucos diminuir o tempo e o espaço de subtramas e eventos que não acrescentem informações novas ao enredo, que antes estavam ali para compor a temporalidade e fazer a trama se estender por mais tempo a partir da demanda do público. A própria quantidade de capítulos das novelas atuais diminuiu, o que demanda um ritmo mais acelerado para contar as histórias.

Na novela atual, por exemplo, pouco ou quase nada se vê de cenas (antigamente mais comuns) em que personagens caminham para refletir sobre o que já aconteceu — sem acréscimo de algo novo para a trama — ou fazem refeição juntos em família com função de marcar o tempo e imitar uma ação cotidiana da audiência".

Bastidores de "Um Lugar ao Sol". (Foto: André Freitas/AGNews)
Foto: André Freitas/AGNews Bastidores de "Um Lugar ao Sol".

Maurício Farias, diretor de "Um Lugar ao Sol", afirmou torcer pelo retorno dos folhetins como costumavam ser em comunicado à imprensa no mês de novembro. "Acho que temos uma obra nova, feita de uma forma diferente, provavelmente fará parte de uma galeria pequena de obras, mas esperamos que as obras grandes possam voltar a esse formato. É só um hábito quebrado pela pandemia".

Para Mariana, é tempo de observar as mudanças e descobrir quais formatos funcionam na teledramaturgia brasileira: "Não creio que essas pequenas, mas significativas mudanças, sejam exclusividade de obras que precisaram estrear já fechadas, com tudo gravado, devido ao contexto. Nem acredito que levar ao ar uma novela nessas condições vá ser uma nova característica da televisão brasileira por ser uma manobra muito arriscada."

"Se não funcionar, se o público no meio da novela não gostar do caminho que a trama assumiu, não tem como modificar, não tem como adaptar e isso reflete até financeiramente nas emissoras. É um mérito muito grande da dramaturga Lícia Manzo conseguir manter até agora o público fiel à trama, acompanhando dia a dia, mesmo sabendo que não há mais como interferir, como indicar outros caminhos para a história. Algo que, me parece, não ocorre com 'Nos Tempos do Imperador', que desde o início apresentou problemas que repercutiram no público e na audiência da novela. E, nesse caso, não há mais nada a fazer além de exibir até o fim do jeito que está e contar que a próxima novela nova dê conta de recuperar o interesse da audiência", finaliza.

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