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Maracajá, Grupo Clã e Scap: conheça a segunda fase do Modernismo no Ceará
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Maracajá, Grupo Clã e Scap: conheça a segunda fase do Modernismo no Ceará

Maracajá, Grupo Clã e SCAP: segunda fase do Modernismo no Ceará é marcada por transformações nas múltiplas linguagens artísticas
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Terceira e última parte de reportagem sobre o centenário da Semana de Arte Moderna. Confira material completo na plataforma 
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Foto: Isac Bernardo Leia Amanhã Terceira e última parte de reportagem sobre o centenário da Semana de Arte Moderna. Confira material completo na plataforma O POVO

"Elles mettem excessiva erudição no que fazem. E bancam sisudez. Nós somos alegres por índole. Em São Paulo, os rapazes para fazer a sua antropofagia precisam dar o laço à gravata. (...) Aqui não. Nós rimos de tudo" (sic), satirizou o jornalista, odontólogo, poeta e político Demócrito Rocha (1888-1943) ao explicar as diferenças entre modernistas do Ceará e de São Paulo nos idos de 1929.

Fundador do jornal O POVO, periódico primordial na consolidação do Modernismo no Ceará, Antônio Garrido — pseudônimo do intelectual — criou a folha modernista Maracajá, suplemento editado também por Paulo Sarasate e Mário de Andrade do Norte, um indício do Modernismo telúrico nas terras de Iracema. Rachel de Queiroz (1910-2003), a grande dama do sertão, decretou: os intelectuais daqui estavam "convencidos de que fazer Modernismo era escrever regionalismo, com grande gasto de índios, antas, cocares e mais brasilidades, em frases de três palavras".

Solitário e noturno, o gato-maracajá é felino nativo da América Central e América do Sul — fauna nossa, como a revista editada no jornal O POVO. O primeiro número do suplemento foi publicado em 7 de abril de 1929; o segundo e último, dia 26 de maio. No interstício entre os dois, os modernistas cearenses se reuniram e fundaram na redação do jornal a Tribuna Cearense de Antropofagia.

"Embora percebamos o mesmo 'espírito' propalado pelo Manifesto Futurista de F.T. Marinetti (1909), é notória a adesão à antropofagia", explica o editor e escritor Raymundo Netto ao resgatar a historiografia do folhetim. "Cremos ser o nome de Raul Bopp (poeta e diplomata gaúcho) o mais ligado aos nossos cearenses. Ele, que era diretor, ao lado de Alcântara Machado, da Revista de Antropofagia, tinha contato constante por meio de correspondência, articulação de publicações de autores daqui no Sul, assim como de autores de lá aqui, principalmente pelo jornal O POVO, o que fez com que Filgueiras Lima afirmasse ser Demócrito Rocha a coluna mestra do Modernismo no Ceará", complementa.

"No discurso, menos do que nas obras, mas também nelas, é perceptível o espírito demolidor e 'devorador' dos nossos modernistas, mesmo quando se percebia em sua produção, o que não era privilégio cearense, 'hesitações', heranças simbolistas, penumbristas, entre outras. Importante entendermos que mesmo entre os 'semanistas', havia aqueles que conservavam atitudes estéticas ligadas à tradição, sendo que alguns, mais tarde, publicariam obras com características 'passadistas'", adiciona Raymundo, também gerente editorial e de projetos da FDR. Os conflitos estéticos no Ceará, incendiados pelo rastro de fogo da Semana de 22, tornaram-se aguerridos.

"Coluna mestra do Modernismo no Ceará", Demócrito Rocha dedicava-se aos imaginários modernistas desde 1924, apoiando a produção inovadora na revista Ceará Ilustrado. "Desde 1928, Jáder de Carvalho, Franklin Nascimento, Sidney Neto e Mozart Firmeza — além de outros simpatizantes como Silveira Filho, Filgueiras Lima, Paulo Sarasate, Antônio Garrido, Rachel de Queiroz, Mário de Andrade do Norte, Heitor Marçal, Suzana de Alencar Guimarães, Lúcio Várzea — encontraram acolhimento na redação do jornal O POVO, onde teriam sua produção publicada na seção 'Modernos e Passadistas'".

"A revista Maracajá foi deveras importante, não apenas porque representa um espaço privilegiado, produtor e difusor desse ideário nos moldes cearenses, mas também porque permitia a socialização desses autores militantes da corrente, de forma coletiva e coautoral, não se restringindo apenas ao Ceará, pois é notório que escreviam para os modernistas 'de lá', dialogando com o sul do país e fortalecendo relações com eles. Rachel de Queiroz, participante de Maracajá, diria mais tarde: 'Sei que tive a glória insigne de nos ver lidos e comentados por alguns dos grandes do Rio e São Paulo — para nós, então, as duas metades inacessíveis do Paraíso'. A repercussão da Maracajá nos outros estados foi intensa e fartamente comemorada", ressalta Raymundo.

Em 2019, 90 anos após a publicação da Maracajá, O POVO resgatou o suplemento — agora sob curadoria de Raymundo. "O POVO, que já seria a 'casa dos modernistas' naquele final da década de 1920, estava antenadíssimo com os acontecimentos da Semana e em contato direto com muitos modernistas de fora do Estado. Na verdade, Demócrito sempre foi um grande agregador e divulgador da literatura cearense", afirma.

Muito além da Semana de 1922

A Maracajá findou-se em 1929 e, ao longo do ano seguinte, as notícias e referências ao Modernismo rarearam nas páginas dos jornais. Em setembro de 1931, no entanto, o lançamento da folha modernista Cipó de Fogo — que seguia o projeto estético do suplemento criado pelo O POVO — reuniu novamente os escritores da terra.

Ao 26 de outubro de 1942, o Modernismo no Ceará viveu uma nova fase com a fundação do inicialmente chamado Clube de Literatura e Arte Modernas, Clam. Criado num "convescote" em Mondubim, o Grupo Clã — com a ortografia alterada em virtude da fortuita ambiguidade da palavra — foi um movimento abraçado por artistas, literatos, filósofos e demais intelectuais. Fran Martins (1913-1996), membro da Academia Cearense de Letras e pai da agremiação, era irmão de Martins Filho (1904- 2002), primeiro Reitor da Universidade Federal do Ceará (1954). O Estado, após o marasmo cultural da década de 1930, reacendeu nas artes.

Vinte anos após Anita Malfatti (1889-1964), Di Cavalcanti (1897-1976) e Ferrignac (1892-1958) se destacarem na Semana de São Paulo, a criação da Sociedade Cearense de Artes Plásticas (SCAP) marcou a Fortaleza de 1944. Fruto do ainda anterior Centro Cultural de Belas Artes (CCBA), a SCAP forjou talentos como Antônio Bandeira, Heloísa Juaçaba, Zenon Barreto, além de Mário Baratta (1915-1983), Aldemir Martins (1922-2006), Barrica (1913-1993), Nice Firmeza (1921-2013), Estrigas (1918-2014) e Jean-Pierre Chabloz (1910-1984).

Sérvulo Esmeraldo (1929-2017), ourives das formas, atentou-se ao Modernismo como o reino do instante. Escultor, gravador, ilustrador e pintor, o filho do Crato inseriu o Ceará no mapa das artes contemporâneas ao flertar com a eletricidade estática e povoar cidades com obras retas, sinuosas, imperativas — são dele criações que integram a paisagem da Capital como "Monumento ao Saneamento Básico da Cidade de Fortaleza" (1978), "Monumento ao Jangadeiro" (1992) e "La Femme Bateau" (1994).

Curadora de arte, presidente do Instituto Sérvulo Esmeraldo e esposa do artista visual, Dodora Guimarães pontua: "O encontro com a SCAP foi fundamental para o Sérvulo conhecer outros artistas e trocar. O que era interessante da SCAP era essa reunião de artistas mais velhos com artistas mais jovens, esses intercâmbios. A importância da SCAP para o Sérvulo foi tamanha… Quando ele chega à Capital em 1947, é por meio da SCAP que ele tem contato com a pintura, já que era xilogravador. A mudança para Fortaleza implicou nesse movimento do Sérvulo na pintura, com participações em ateliês a céu aberto…", relembra.

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