O que significa a bandeira do Brasil para você? A Copa do Mundo de 2002, com Ronaldo Fenômeno e Rivaldo em campo e o pentacampeonato da Seleção Brasileira? O 7x1 de 2014? O "lindo pendão da esperança", "símbolo augusto da paz" que Olavo Bilac escreveu? O bolsonarismo? O orgulho ou a vergonha?
Em 1928, o poeta, escritor, ensaísta e dramaturgo paulista Oswald de Andrade (1890-1954) — um dos principais mentores da Semana de Arte Moderna de 1922 — publicou seu o Manifesto Antropófago ou Manifesto Antropofágico na Revista de Antropofagia. "Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the question. Contra todas as catequeses", sentenciou Oswald.
O texto, repleto de metáforas e simbolismos, versou sobre o canibalismo cultural: acreditava-se que, após engolir a carne de uma pessoa, seriam concedidos ao antropófago todo o poder, conhecimentos e habilidades do devorado. Era tempo de comer a cultura estrangeira, transformar e cuspir do quente da boca brasileira.
Hoje, 100 anos após a vanguardista Semana de 22, a construção do "ser brasileiro" se atualizou. Em tempos de Trump a Bolsonaro, a ideia de nação é atravessada pelo perigo do extremismo, a sombra do ufanismo que tantos aterrorizou durante a ditadura militar no País (1964-1985). A brasilidade pós-modernismo, afinal, foi realmente revolucionária?
"O Modernismo tem uma uma importância muito grande na cultura brasileira, então há várias releituras do que aconteceu naquelas décadas de 1920 e 1930", ressalta Rodrigo Marques, professor de Literatura da Universidade Estadual do Ceará e editor da Aluá Cordéis.
"Por exemplo, não se pode pensar no Cinema Novo e nem na Tropicália sem pensar em Macunaíma; sem pensar no Manifesto Antropofágico, na estética ou no teatro de Oswald de Andrade. O grupo do Zé Celso, quando encena 'O Rei da Vela' no Teatro Oficina, pega um texto do Oswald. A Tropicália, com toda aquela deglutição da cultura norte-americana misturando com baião, rock, música erudita, dodecafônica, todo esse caldeirão é tributário do Modernismo, principalmente de Oswald e de Mário de Andrade. Esses dois mexeram na cultura popular brasileira. Antonio Candido dizia que o brasileiro recalcava a sua cultura — até que o Modernismo colocou para fora aquilo que era escondido", complementa.
"O Modernismo é importantíssimo hoje para o que a gente compreende como nação; para uma imagem do Brasil. A arquitetura de Niemeyer, a Bossa Nova, tudo isso só foi possível por conta de Anita Malfatti, de Cândido Portinari, de Cícero Dias… Um certo projeto de Brasil que vai se desenhar na década de 1950, da Bossa Nova à Tropicália, é tributo do Modernismo. Acontece que a gente teve um golpe militar e foi esfacelada a continuação desse pensamento. Mas quem leva a cultura brasileira a sério tem que passar por esse legado do Modernismo em todas áreas, inclusive na fotografia, na pintura, nas artes visuais", adiciona Rodrigo.
No Ceará, o movimento musical Massafeira Livre bebeu da fonte modernista nos anos de 1978 e 1980. Consolidado por meio de uma feira cultural realizada em 1979 no Theatro José de Alencar, uniu nomes como Patativa do Assaré, Belchior, Fagner, Dominguinhos, Ednardo, Jards Macalé, Zé Ramalho, Amelhinha, Petrúcio Maia, Irmãos Aniceto, Rosenberg Cariry, Cale Alencar, Nirton Venâncio, Rogério e Régis Soares, Climério, Lúcio Ricardo, Mona Gadelha, Fausto Nilo, Angêla Linhares, Oswald Barroso, Descartes Gadel . Artistas que cantam a terra, embriagados de Brasil.
"No final da década de 1970, havia uma intensa produção musical e outras linguagens também despontavam com muito vigor no cenário artístico de Fortaleza. Muitos dos que haviam surgido para o cenário nacional com o Pessoal do Ceará vinham ao final do ano e só retornavam pro 'sul maravilha' depois do carnaval. Isso aproximava as novas gerações de compositores, músicos e letristas já consagrados, com o reforço dos que já haviam voltado a morar aqui, como Rodger, Teti e Édson Távora. E tinha também os que moravam aqui mesmo, como Brandão, Francis Vale, Sérgio Pinheiro, Tânia Cabral". relembra Calé Alencar.
"Havia uma ocupação dessa turma no Estoril e o pessoal novo ia pra lá também. Isso aproximou as gerações e ao mesmo tempo criou um ambiente de produção musical envolvendo muita gente. Um pouco antes da Massafeira aconteceram festivais de música e outros eventos onde o pessoal da música já mostrava um trabalho de muita consistência", continua o cantor e produtor musical.
Ele afirma lembar-se de "três shows que tinham essa característica de trabalho coletivo, de juntar muita gente e ao mesmo tempo expor as individualidades, todos apresentados no TJA: o lançamento do disco Maraponga, do Ricardo Bezerra; Pé na Terra, do Stélio Vale; e Como as Primeiras Chuvas do Caju, da Ângela Linhares, que também tinha voltado a morar em Fortaleza após uma experiência bem sucedida com o Grupo Raízes. Vivíamos uma época difícil, de muita repressão, ditadura militar, e a resposta a isso foi uma intensa produção de arte onde todos buscávamos reagir ao tempo de caça aos bruxos e às bruxas", destaca Calé Alencar.
Cantor, compositor e produtor musical, Calé teve suas primeiras composições gravadas pela cantora cearense Téti. "Eu havia participado de de shows que tinham uma característica coletiva, nos quais apresentei-me como intérprete e compositor. Um deles foi com minha parceira Ângela Linhares. Durante os ensaios conheci Petrúcio, Fausto, Stélio, reencontrei Francis e começamos a interagir musicalmente", conta.
"Da minha geração, já havia um trabalho de composição musical em parceria com Zé Maia, Ana, Zezé e Jaboti (os irmãos Fonteles), Jáder de Menezes, Alano de Freitas. Foi quando Ednardo veio lançar o disco 'Cauim' e foi alertado por seus irmãos Régis e Rogério de que havia muita gente fazendo música, uma pluralidade de linguagens buscando espaço. Lembro que aconteceram algumas reuniões no apartamento do Ednardo, próximo ao antigo aeroporto, e fui avisado por Ângela que ela havia incluído meu nome no rol de artistas da música que iriam se apresentar na Massafeira. A princípio não caiu a ficha. Mas, uma vez participando, vendo as diferentes expressões sendo apresentadas e o teatro lotado durante quatro dias seguidos, percebi a dimensão da revolução que estava acontecendo ali", relembra.
"A Massafeira Livre é um momento de extrema importância, sobretudo naquele momento em que precisávamos contestar a ditadura através da arte e, ao mesmo tempo, acrescentar uma nova geração na história da música que fazemos aqui".
"O segmento musical na Massafeira reuniu diferentes gerações, do Pessoal do Ceará aos que estavam iniciando no final da década de 1970, e trouxe também a representação do Cariri, apresentando naturalmente uma gama respeitável de estilos e influências. Interessante é observar que a ressonância do que foi realizado aqui chegou em outras regiões do Brasil e esse diálogo atualmente acontece em função da facilidade de comunicação via Internet".
A Massafeira Livre, falando especificamente da questão musical, trouxe uma expressão muito forte da contribuição cearense à música brasileira, momento de juntar gerações, uma expressão de muito vigor, de força, de fortaleza. Cada vez mais nós acompanhamos esse abraço em torno desse momento que vivemos há mais de quatro décadas e que permanece como referência, como legado de uma geração que soube acolher os novos talentos que estavam buscando seu espaço", finaliza Calé.
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Pátria amada, Brasil?
Graduado em Publicidade e Propaganda, o artista cearense Cadeh Juaçaba investiga símbolos nacionais com o objetivo de debater sobre as relações de identificação e pertencimento em seu trabalho. "O centro da minha obra é o símbolo. Acho que todos os artistas, no stricto sensu da coisa, versam sobre símbolos em suas diversas maneiras… Mas esses símbolos que são impostos, como esse modelo de Estado-nação, são muito interessantes para sentir os sintomas dos tempos. Eu me interesso por olhar símbolos que são criados na política, como a caneta Bic, a faca do Adélio Bispo… Uso muito a bandeira porque tem essa importância como símbolo universal. Eu me interesso pelos símbolos tradicionais, pela heráldica, pelos símbolos nacionalistas", explica.
"Panóplia Paradoxo", exposição de Cadeh montada em 2021, apresenta uma coleção de bandeiras e mastros para pensar o lugar do símbolo na construção do patriotismo. "O que eu acho sobre o patriotismo? Eu sou patriota crítico. Patriota crítico porque estou em oposição ao nacionalismo radical. A gente precisa compreender que o mundo já não tem mais fronteiras. Onde a gente vai se reconhecer enquanto brasileiros? O brasileiro é muito misturado…O que é ser brasileiro? Fiz uma exposição em Portugal chamada 'Eles não sabem as armas que têm'— eu usava o brasão de armas do Brasil para fazer essa analogia sobre identificação e identidade. A minha pergunta é: 'O que é serem brasileiros?'". Brasil é plural.
"É muito interessante olhar para a história da arte brasileira e encarar a movimentação de Oswald e Mário, o início do Modernismo brasileiro. A Semana de 22 foi o embrião do Manifesto Antropofágico. É a partir da antropofagia de Oswald que surge, para mim, uma das maiores referências culturais brasileiras, o Tropicalismo. Caetano Veloso é o maior artista visual de todos os tempos", defende.
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Reportagem em série com três episódios que contam a história das influências da semana da Arte Moderna de 1922 no Ceará, e revela como os artistas cearenses seguiram seu próprio caminho rumo ao modernismo.