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O futuro é preto: afrofuturismo exalta negritude em ficção científica
Vida & Arte

O futuro é preto: afrofuturismo exalta negritude em ficção científica

Com exaltação da negritude em diálogo com a tecnologia, o movimento afrofuturista narra um porvir com protagonismo do povo preto em diversas linguagens: literatura, música, cinema, artes plásticas, moda e quadrinhos
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Arte da designer Dandarra Santana para o livro
Foto: Dandarra Santana/Divulgação Editora Malê Arte da designer Dandarra Santana para o livro "O céu entre mundos", de Sandra Menezes, publicado pela editora Malê, simboliza a protagonista Karima, natural do planeta Wangari, descoberto por astronautas africanos. No século XXIII, ela chega à Terra e descobre a história de seus ancestrais na África. A arte foi cedida ao O POVO para a reportagem "O futuro é preto: afrofuturismo exalta negritude em ficção científica". Todos os direitos estão reservados à editora Malê

Imagine um mundo com tecnologias avançadas, marcado pelo resgate de mitologias africanas, pela exaltação da negritude e pelo protagonismo do povo preto. Adicione camadas de fantasia e ficção científica. Tudo isso está interligado ao movimento artístico, político, social e cultural afrofuturista.

Essa estética passeia por diversas linguagens, influenciando literatura, música, cinema, artes plásticas, moda e quadrinhos. A partir da perspectiva negra, o afrofuturismo contempla narrativas especulativas, em que se imagina e reinventa diferentes espaços e tempos. No movimento, é possível criar fantasias, fabular realidades, elaborar mundos e especular sobre um futuro preto.

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Luiza Nobel e Taslim lançam o videoclipe do single Anastácia, em homenagem à Anastácia. Conhecida como Escrava Anastácia
Luiza Nobel e Taslim lançam o videoclipe do single Anastácia, em homenagem à Anastácia. Conhecida como Escrava Anastácia

Aquilombamento futurista

"Em uma realidade distópica, uma viajante do tempo foge do governo que rege seu planeta". A frase abre o videoclipe do single "Anástacia", da carioca Taslim e da cearense Luiza Nobel.

No ritmo do pagodão baiano, com elementos eletrônicos, as cantoras apresentam uma narrativa afrofuturista. Na produção, as artistas são de mundos distintos.

Leia também | Distopia no cinema: futuros entre realidade e ficção

Vinda de uma realidade futurista, Taslim é perseguida e foge para não ser capturada. Por meio de um espelho, ela encontra Luiza, residente num local de aquilombamento, onde há possibilidade de acolhimento e vida.

A imagem de Anastácia, heroína negra homenageada em toda a música, simboliza a conexão entre as personagens.

Conhecida como "Escrava Anastácia", a mulher é um dos símbolos do movimento negro brasileiro. Segundo registros historiográficos, Anastácia não cedeu à perseguição sexual de "seu senhor" e, por resistir, foi punida. Em desenho secular, ela é retratada com mordaça de ferro e corrente no pescoço. No videoclipe, Taslim e Luiza ressignificam a imagem.

Anastácia aparece como uma princesa, sem os instrumentos de opressão da escravidão, enquanto os versos exclamam: "Princesa africana/ Afroamericana/ Menina baiana". A canção contou com remix produzido pelo baiano Mimoso. A faixa integra o primeiro álbum de Taslim, "Pretambulando". A direção do clipe é de Dani Lopes, com roteiro de Taslim e figurino de Luiza.

"A realidade que quero ver"

Para Taslim, o afrofuturismo é "apaixonante". "Encontrei nele a possibilidade de criar histórias que sempre quis ver, ler e ouvir, mas não podia por falta de espaço para quem as contava. Com o afrofuturismo, posso construir a narrativa que quero ver se tornar realidade, a partir de uma perspectiva do ser negro, da filosofia africana, de uma lógica coletiva e circular de apoio entre os nossos. Se não quero mais ver dor e máscaras, transformo isso em apoio, aquilombamento, sorrisos".

No show de Taslim, uma nave espacial transporta o público do ano de 2437 ao planeta Terra de 2022. A cantora acrescenta: "São histórias onde pessoas negras são destaque, mas sem que estejamos no lugar de sofrimento. É sobre criar novos futuros, entendendo que não se anda para frente sem olhar para trás. O futuro não existe sem ancestralidade. Presente e futuro caminham juntos. Tudo que já foi feito impacta no que seremos. E o futuro que eu quiser construir, preciso começar agora ou até antes. É a partir disso que crio novas realidades com a música, o audiovisual, a poesia, a arte!".

 

"Criar um imaginário"

Luiza Nobel reverbera suas vivências enquanto mulher negra na música. Na canção "Let's Burn", sua parceria com o rapper Nego Gallo, ela afirma: "Eu vejo o futuro negro". Sobre o lançamento com Taslim e a sua relação com o movimento afrofuturista, a artista comenta:

"Gosto de pensar o afrofuturismo como uma das possibilidades de aquilombamento, de criação. E é muito bom poder criar junto de outra artista negra, que traz referências de outro estado e do mundo. Acredito na necessidade de criar um imaginário, e o afrofuturismo possibilita isso. Foi onde nossos trabalhos convergiram. No meu trabalho, procuro construir referência imagética para o ser negra, e juntar isso às perspectivas de futuro".


Anastácia - Taslim e Luiza Nobel

Onde: YouTube, Spotify, Apple Music e Deezer
Mais info: @eutaslim e @luizanobel no Instagram

Em
Em "Cartuchos de Super Nintendo em Anéis de Saturno", curta-metragem do cearense Leon Reis, um jovem negro e solitário assopra um cartucho de videogame no bairro Vila Velha, na periferia de Fortaleza

Uma estética

A Academia Brasileira de Letras (ABL), uma das principais instituições na área da Linguística, Letras e Artes do País, caracteriza o afrofuturismo como um movimento que, com “elementos de ficção científica e fantasia, cria narrativas de protagonismo negro, por meio da celebração da identidade, ancestralidade e história”. Segundo a entidade, as obras contam com tecnologias e superação de opressões raciais, sob o contexto da vivência africana e diaspórica (dispersão forçada ou não do povo africano pelo mundo).

Na década de 1960, artistas estadunidenses uniram uma estética "hi-tech" à ancestralidade africana em várias artes. Em 1993, o termo "afrofuturismo" foi forjado pelo intelectual Mark Dery. Desde então, a estética circula como a referência de um movimento, uma tendência, um conceito. No Brasil, a escritora Lu Ain-Zaila é uma das primeiras referências em literatura.

"O termo afrofuturismo surge justamente na tentativa de Dery em propor um futurismo negro que pudesse reconfigurar o imaginário futurístico branco dominante do início dos anos 1990. O termo assim descreve as criações artísticas que, por meio da ficção científica, inventam outros futuros para as populações negras", pontua a pesquisadora Kênia Freitas no artigo "Roubando dados: a refundação do afrofuturismo em O Último Anjo da História", do catálogo "O cinema de John Akomfrah: Espectros da diáspora" (2017), organizado por Lucas Murari e Rodrigo Sombra e publicado pelo Centro Cultural Banco do Brasil. 

Doutora em Comunicação e referência na pesquisa em afrofuturismo e cinema negro no País, Kênia é nova curadora do Cinema do Dragão, equipamento do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC), localizado na Praia de Iracema, na capital cearense.

Por falar em cinema, o curta-metragem "Cartuchos de Super Nintendo em Anéis de Saturno" (2018), dirigido pelo cearense Leon Reis, conta a história de um jovem negro solitário que, diante da dor e do desespero, assopra um cartucho de videogame no bairro Vila Velha, na periferia de Fortaleza. A obra foi produzida durante a quarta turma do Curso de Realização em Audiovisual da Vila das Artes e está disponível no YouTube.

Jornalista e escritora, Sandra Menezes lança o livro
Jornalista e escritora, Sandra Menezes lança o livro "O céu entre mundos" pela editora Malê

Diáspora interplanetária

A escritora e jornalista Sandra Menezes lança o livro "O céu entre mundos" pela editora Malê. Na trama, a engenheira ambiental Karima nasceu em Wangari, um planeta descoberto por uma frota de astronautas africanos. Em 2273, a jovem negra chega à Terra como refugiada. Perseguida por um poderoso de seu planeta, ela tenta se proteger por aqui. Durante a estadia, conhece a origem e trajetória de seus ancestrais da Terra. Na África, ela descobre sua salvação.

O livro é o primeiro romance afrofuturista, escrito por uma autora brasileira, publicado por uma editora brasileira. Sandra Menezes comenta: "Um romance pode conter o amor de uma mãe por sua filha, como pode conter também o amor entre duas mulheres negras no século XXIII. Assim como é importante que criemos cada vez mais histórias com pessoas de todas as raças e gêneros, é fundamental que o amor esteja lá, seja em qual tempo for, aconteça o que acontecer, na distopia ou na utopia de nossas criações futuristas. Como em "O céu entre mundos", o amor de uma corrente ancestral, que vem de milênios e alcança uma mulher que se vê sozinha e perseguida pela maldade, pode ser a garantia de sua existência. No afrofuturismo, a importância das narrativas afrocentradas é a esperança de que, mesmo no futuro tomado por tecnologias ocidentais, o protagonismo negro fará uso, em primeiro lugar, do que é natural, do que é humano, antes do artificial".

 

Ale Santos apresenta o livro
Ale Santos apresenta o livro "O Último Ancestral". Disponível nas versões impressa e digital, a obra conta com a narrativa futurista típica de sua literatura

Distopia associada ao real

Autor afrofuturista, roteirista, podcaster e finalista do Prêmio Jabuti 2020, Ale Santos apresenta o livro "O último ancestral" pela editora Harper Collins. Num futuro ultratecnológico, o jovem Eliah mora na favela de Obambo, no distrito de Nagast, onde a população negra foi exilada por Cygens (híbridos de homens e máquinas). Ele acaba descobrindo que carrega o espírito do último ancestral consigo.

Fã de ficção científica desde a infância, Ale viu uma forma de levantar, no gênero, discussões sociais. O afrofuturismo une aquilo que gosta (robôs, tecnologia, utopias e distopias), com sua experiência de vida. Segundo Ale, o conceito de ficção científica remete às "pautas afroamericanas e afrolatinas". "A ficção científica é sobre esse elemento estranho, numa narrativa que parece estranha… Sobre o outro ser alienado, diferente, não ser normal para esse mundo. Isso tem a ver com a história de comunidades negras pelo globo, que foram roubadas e tratadas como o estranho, o estrangeiro, o forasteiro".

Ale destaca: "Antes de se consolidar na literatura, esse imaginário já estava na música, com Sun Ra, Planet Rock, no hip-hop. Acaba sendo transversal. A literatura bebe da história, que bebe da música, das artes plásticas, do cinema. No livro, uso o trap. Considero trap, rap e drill como o próprio afrofuturismo em expressões musicais e uso como impulsionadoras na minha literatura".

O universo do livro é uma extensão do conto "Cangoma", da coletânea "Todo mundo tem uma primeira vez" (2019). "O processo de escrita foi doloroso, no meio da pandemia. Tentei focar no que queria para a narrativa, com disciplina e firmeza. Um processo de transe. Saí escrevendo e colocando emoções sem parar para pensar exatamente no que não podia fazer. Foram cinco meses entre edição e revisão".

Recentemente, Ale comemorou no Twitter que seu livro esgotou na livraria de shopping de São José dos Campos (SP). "Fiquei muito feliz! Geralmente a galera imagina que as grandes discussões, produções, ideias, vêm da capital. Muito feliz de ver meu trabalho materializado, chegando na minha região".

Sobre a urgência de fabular mais narrativas afrocentradas, o autor afirma: "Não existirá um Brasil ou um mundo melhor sem a contribuição de todas as pessoas na ciência, educação, no trabalho, nos empreendimentos, na saúde… Em tudo. Parcelas da população são desprezadas e ignoradas. Uma parte da população negra é assim. A gente só vai ser um 'país do futuro' quando essa parcela, que é mais de 51% da população, também for integrada na produção intelectual, econômica, nas melhores condições de saúde, segurança... É só isso. Não existe a reconstrução do Brasil sem a integração de todos os povos que vivem aqui".

Estante

Letícia Feitosa é jornalista, mestranda em Comunicação, diretora do portal de cinema Ô Filmaço e uma das criadoras do Kilombas Podcast, disponível no Spotify. Em texto especial ao O POVO, escreve sobre afrofuturismo
Letícia Feitosa é jornalista, mestranda em Comunicação, diretora do portal de cinema Ô Filmaço e uma das criadoras do Kilombas Podcast, disponível no Spotify. Em texto especial ao O POVO, escreve sobre afrofuturismo

Ponto de vista: "Novas possibilidades da existência preta"

Por Letícia Feitosa*
especial para O POVO

Ao pensar em corpos pretos protagonistas de mundos tecnológicos, onde a opressão não tem vez sobre a vivência negra, pensamos em afrofuturismo. Os elementos ancestrais e não-ocidentais da cultura preta juntam-se à fantasia e à ficção-científica para criar narrativas com o negro como figura central. Com isso, o passado é abordado em uma projeção futurística para debater o que ocorre no presente.

A ficção especulativa é muito presente nesse movimento. São especulados mundos, eventos e sociedades, usando da manipulação de tempos passados. Isso é visto em "Pantera Negra" (disponível no Disney+), por exemplo. O filme da Marvel, de 2018, não é apenas mais uma trama de herói qualquer. A história nos apresenta Wakanda, uma nação africana nunca antes colonizada. Nela, a tecnologia se faz presente em uma sociedade bastante ligada à ancestralidade.

"Pantera Negra" nos permitiu conhecer essa nova narrativa para pessoas negras e apresentou o afrofuturismo para a grande massa. Entretanto, esse movimento pode ser encontrado na literatura, nas artes, na moda e na música desde as décadas de 1950 e 1960, apesar do termo só ter surgido em 1993.

No Brasil, artistas afrofuturistas se fazem presentes. O movimento está no cinema, com o filme "Branco Sai, Preto Fica" (2015), de Adirley Queirós; na literatura, com os escritores Fábio Kabral e Ale Santos; na música, com Xênia França, Jonathan Ferr, Carlinhos Brown, entre outros. A moda, a fotografia e várias outras linguagens também são terrenos propícios para se pensar novos mundos sob a ótica cultural negra.

O afrofuturismo mira na fantasia, mas com um objetivo bem concreto: propor o debate para mudanças estruturais nas sociedades reais do presente. Além disso, essas novas narrativas servem de mecanismo de avanço, para que possamos recuperar saberes ancestrais em prol de construirmos um futuro com possibilidades de existência para a população preta.

*Letícia Feitosa é jornalista, mestranda em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), diretora do portal de cinema "Ô Filmaço" e  uma das criadoras do Kilombas Podcast. Produzido no Spotify de 2020 a 2021, o podcast propõe um quilombo virtual, com discussões de temáticas étnico-raciais.

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