Da rua Santa Isabel até alcançar o mundo, foram pouco mais de duas décadas. A via da infância, porém, não abandonou o pintor cearense Antonio Bandeira quando ele esteve em Paris nos anos 1940, assim como o fervor global já parecia despontar dentro do menino fortalezense que brincava de rabiscar. Regional e universal, o artista cearense teve papel crucial para a construção de movimentos e formatos que seguiriam marcando décadas depois os modos de fazer arte no Ceará e no mundo. Para comemorar o centenário do nascimento de Antonio Bandeira, em 26 de maio de 2022, o Vida&Arte ressalta o lado agitador do pintor.
O contato inicial de Bandeira com a formação artística veio, ainda cedo, a partir de Dona Mundica, professora de artes que o ensinava a reproduzir outras obras. Foi essa a base do menino-artista, mas o desenvolvimento se deu, verdadeiramente, no começo dos anos 1940, quando ele se aproxima de nomes como Mário Baratta (1915-1983), Raimundo Cela (1890-1954) e Aldemir Martins (1922-2006).
O grupo de artistas fundou, em 1941, o Centro Cultural de Belas Artes (CCBA), que depois se transformaria na Sociedade Cearense de Artes Plásticas (SCAP). “A importância foi tão grande que até hoje não aconteceu movimento cultural semelhante”, avalia o artista visual Francisco Bandeira, sobrinho do pintor e também estudioso de vida e obra do tio.
“Na (avenida) Duque de Caxias, havia uma casa onde eles se reuniam — foi demolida —, trocavam. Bandeira estava aglutinado com essas pessoas, foi muito importante a SCAP por toda essa efervescência cultural”, segue Francisco. Nas reuniões e encontros do grupo, eram comuns as ajudas mútuas, as trocas, os comentários e avaliações sobre as produções.
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Para a historiadora de arte e professora da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Carolina Ruoso, "a dimensão do fazer junto, de modo colaborativo, de movimentar as artes, é extremamente importante para compreender a agitação que vai se construindo no Ceará" na primeira metade do século XX.
Foi o mesmo grupo, por exemplo, que estabeleceu o Salão de Abril como um dos principais espaços de exposição das artes visuais de Fortaleza. Lançado no começo da década de 1940 como iniciativa da Secretaria de Cultura da União Estadual dos Estudantes, o evento passou a ser realizado pelos membros da SCAP até, em 1964, ser assumido pela administração municipal.
“Ele não é um um salão que inicia instituído como algo pensado pelo estado, mas é resultado de um processo de articulação coletiva de estudantes que estão interessados em ver, mostrar, discutir sobre artes, criar espaços de arte e, sobretudo, mostrar que há uma arte produzida no Ceará”, ressalta Carolina. A primeira exposição de Bandeira foi, justamente, no primeiro Salão de Abril, em 1942, do qual saiu vencedor.
Com o destaque obtido ainda no início da carreira, o artista passou, então, a circular pelo País, muito a partir do apoio do artista Jean-Pierre Chabloz, suíço radicado no Ceará. “Chabloz viu que Bandeira tinha potencial, porém teria que sair do Ceará, como muitos artistas faziam, ir para o Rio de Janeiro. Hoje em dia, não mais”, explica Francisco.
A viagem para a então capital federal ocorreu em 1945, período no qual Bandeira acaba por ganhar uma bolsa para estudar na Escola Superior de Belas Artes e na Academia de La Grande Chaumière, em Paris, para onde se muda já em 1946.
Na capital francesa, explica Francisco, Bandeira “se apaixona pelos abstratos” a partir da relação, especialmente, com o pintor alemão Wols, o que o aproxima da estética pela qual se tornaria mais reconhecido. “Ele começa, em 1949, 1950, a entrar num abstracionismo informal, lírico, a fazer exposições”, segue o sobrinho.
Nos eventuais retornos ao País neste período, deixou “todo mundo pasmo” com a nova fase. “Ele rompe completamente com o figurativo, surge com o abstrato informal. Tinha uma crítica de que o abstrato seria ‘jogar tinta na tela’. Alguns não aceitavam, mas ele rompeu os paradigmas”, afirma Francisco.
Apesar de começar a se estabelecer na Europa, o artista seguia ligado à terra natal. Em texto publicado na edição de 1º de julho de 1963 do O POVO, o pintor assume “a ternura do filho que vai e volta”. “Antonio Bandeira nunca abre mão do compromisso dele. Não é porque vai para França que vira as costas. Ao contrário, Bandeira é extremamente generoso na relação com o Ceará e, claro, o Ceará também é generoso com ele”, explica Carolina.
Na mesma época em que começava a circular no contexto cultural parisiense, Bandeira também inicia a atuação na gênese do que viria a ser o Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (Mauc), projeto capitaneado pelo reitor Antônio Martins Filho (1904-2002) e concretizado oficialmente, com apoio de artistas cearenses, em 1961.
“Antonio Bandeira é uma figura central para imaginação, concepção, criação e inauguração do Mauc”, resume Graciele Siqueira, museóloga e diretora do equipamento. Além de Bandeira, outros artistas visuais do movimento efervescente dos anos 1940 e 1950 na Capital cearense, como Heloysa Juaçaba e Zenon Barreto, foram interlocutores importantes para a construção do museu.
“Data de 1949 o encontro deles em Paris e da inserção de Bandeira na Embaixada Clóvis Bevilacqua, chefiada por Martins Filho, como integrante e cicerone pela capital francesa do grupo cearense”, avança Graciele. A viagem referida foi, avalia a diretora, a “fagulha” do projeto.
“Competiu a Bandeira levá-los aos museus e galerias de arte e ao Quartier Latin para contato dos cearenses com o campo museal e cultural europeu. Como foi algo marcante para Martins Filho, acredito que ali foi acendida uma fagulha para se pensar um primeiro museu de arte para a capital cearense”, avalia Graciele.
A construção coletiva do Mauc chega ao ápice, justamente, na inauguração do equipamento. Bandeira esteve presente na ocasião, vindo direto de Paris para a abertura de uma exposição que trazia recorte da produção de pinturas dele e que marcou o início oficial das atividades do museu.
O texto do catálogo da exposição de Bandeira, escrito pelo advogado, jurista e escritor Fran Martins — irmão de Martins Filho —, dava o peso da presença do artista para o museu recém-criado: "Nada melhor do que uma exposição de Bandeira para mostrar que o Museu de Arte da Universidade do Ceará nasceu vivo e promete endiabrar-se”, professou.
Da construção do Salão de Abril à do MAUC, Bandeira orbitou a criação de movimentos que, décadas depois, se tornariam não somente referenciais, mas também institucionais. “Já falavam de descentralização da arte, federalização da cultura. Esse debate existia no Ceará nos anos 1940. Eles estavam trabalhando para criar e conquistar instituições no âmbito local sem perder a dimensão de um diálogo nacional e internacional. Era um desejo em pauta, constante, nessa geração dos anos 1940 a 1960. Foi uma geração que estava desenhando as bases de uma política cultural no Ceará”, afirma Carolina.
“Eles estavam fazendo esse debate, tinham consciência de que havia um contexto cultural no Ceará que precisava também de investimento, uma discussão política fundamental da gente retomar nesse momento por conta dessa discussão das leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo”, correlaciona a pesquisadora.
Nessa construção da ligação local-nacional-internacional, Bandeira teve papel central. “Ele tem um discurso brilhante nesse sentido ao falar de circulação. Ele é um artista que circula, que está no Ceará, em São Paulo, no Rio, na França, nos Estados Unidos. Bandeira é um intelectual mediador da imaginação sobre uma cultura cearense em um debate geopolítico”, define Carolina.
No já citado artigo escrito pelo artista em 1º de julho de 1963, no qual discorre sobre uma mostra de obras assinadas por ele em cartaz no Mauc, Bandeira atesta: "Esta seria uma exposição que poderia ter sido pendurada em Paris, Londres, Nova Iorque ou Rio de Janeiro. E penduro-a em Fortaleza porque creio que a cidade já está acordada para as grandes emoções e os grandes acontecimentos de cultura e sensibilidade".
“Bandeira é o artista que viajou, migrou, fixou residência, revolucionou a arte, mas que não perdeu o contato com a sua terra natal, fazendo-a presente nas suas obras. Inquieto buscou outros ares e aprendizados, mas retornou compartilhando as suas experimentações e refrescando a cena cultural cearense”, dialoga Graciele.
Após abrir a década de 1960 inaugurando não somente o Mauc, mas também o Museu de Arte Moderna da Bahia, que teve trabalhos iniciados em 1961 com uma exposição do cearense — a quem o escritor Jorge Amado definiu à época como “o primeiro pintor nacional do País” —, Bandeira deixou novamente o Brasil pela Europa pouco depois da instauração da ditadura militar.
“Quando ele volta para Paris, já estava em nova fase, fazendo monotipias (técnica de impressão) e se preparando para fazer uma grande exposição em Nova York”, reconta Francisco. “Bandeira não estava mais no abstracionismo. Era uma pintura mais leve, suave. O artista vai mudando. Ele conseguia ser multifacetado”, avança o sobrinho.
As experimentações foram interrompidas, porém, em 6 de outubro de 1967, quando Bandeira morreu precocemente, aos 45 anos, após complicações de uma operação cirúrgica. “Se não tivesse falecido cedo, ele teria estimulado a criação de outras estruturas formais e informais, como espaços expositivos dos artistas locais e de circulação de artistas de outras regiões”, acredita Graciele.
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