Mensurar seis décadas em um espaço e um número de caracteres mais ou menos limitados é um desafio para tanta história. Urge, daí, um gesto quase curatorial: decisões sobre o que dar a ver - entendendo que elas são também sobre não-dar-a-ver outro tanto - e a intenção de estabelecer uma linha narrativa que minimamente diga sobre tempos e visões distintas, mas em consonância com uma ideia: a ideia de um museu.
Um museu de arte, em uma Universidade Federal, no Ceará, num contexto onde isso parecia impossível e, ao mesmo tempo, inevitável. Para tanto - seja para mensurar hoje essa história de 60 anos, seja para construí-la nos idos de 1961 -, urgem espíritos colaborativos, trocas atentas e a intenção de fazer o melhor possível torcendo para que outras e outros sigam na lida. A partir destes elementos - e alguns outros essenciais -, foi gestado o Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (Mauc), oficialmente instalado a 25 de junho de 1961 e aberto para atividades a 18 de julho do mesmo ano.
Àquela altura, a própria Universidade do Ceará era ainda fresca, criada por lei em 16 de dezembro de 1954 e instalada de maneira oficial em 25 de junho do ano seguinte. Onze anos antes da inauguração da UFC, se criava em Fortaleza a Sociedade Cearense de Artes Plásticas (SCAP), a partir do ainda anterior Centro Cultural de Belas Artes (CCBA). Tanto o Centro quanto a Sociedade foram celeiros dos talentos de Antônio Bandeira (1922-1967), Mário Baratta (1915-1983), Aldemir Martins (1922-2006), Heloísa Juaçaba (1926-2013), Barrica (1913-1993), Zenon Barreto (1918-2002), Nice Firmeza (1921-2013), Estrigas (1918-2014) e Jean-Pierre Chabloz (1910-1984), para citar alguns.
Apesar de ter encerrado as atividades em 1958, a SCAP e seu desenvolvimento foram cruciais para a concretização do Mauc, bem como a relação dos artistas "scapianos" com o primeiro reitor da UFC, Antônio Martins Filho (1904-2002). "O Museu de Arte da UFC nasce de uma paixão pelo universo das manifestações artísticas. Nasce também do encantamento com os museus europeus, notadamente da Espanha e da França, e pela sensação que (o reitor) passou a sentir aqui de ausência de espaços culturais daquela natureza”, aponta o professor Pedro Eymar, diretor do Mauc entre 1987 e 2018.
Foi a partir daí que, na definição de Martins Filho, se iniciou um "movimento pró-fundação" do museu com atuação direta dele próprio em colaboração com artistas importantes do Estado. No livro “O Outro Lado da História” (1983), Martins Filho descreve o processo de inspirações e transpirações que resultou no Mauc em capítulo intitulado "A ideia da criação do Museu de Arte". São citados no texto, por exemplo, Heloísa Juaçaba, Zenon Barreto e Antônio Bandeira.
“Martins Filho aposta nessa demanda, que é dos artistas e anterior à Universidade. Ele era ligado a esse circuito cultural, aos literários, e vai ser um grande articulador do modelo colaborativo”, desenvolve Carolina Ruoso, historiadora de arte e professora da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
A pesquisadora - autora da tese “Casa de Marimbondos. Nove tempos para nove atlas. História de um museu de arte brasileiro (1961 -2011)”, que traça um histórico de 50 anos do Mauc e foi defendida como conclusão do Doutorado em História da Arte pela Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne - atenta, ainda, para o significado, “nos anos 1960, da Universidade Federal do Ceará criar um museu de arte”.
A existência da própria Universidade era um gesto pela descentralização de pensamento e das políticas públicas à época, algo reforçado pela criação da instituição artística. É como aponta o professor Pedro Eymar: “(O Mauc) nasce da necessidade do gestor de uma recém criada universidade implantar, junto ao universo acadêmico, um projeto cultural e artístico, de natureza extensionista”.
"Na medida em que o reitor Martins Filho defende e agrega uma série de atores para criar o museu num processo colaborativo, ele está dizendo também que é possível e importante criar espaços de cultura na Universidade." Carolina Ruoso, autora de tese de doutorado sobre Mauc
A professora Carolina avança: “O museu nasce no contexto de pensar que o desenvolvimento também passa por investimento nas áreas da cultura. Na medida em que o reitor Martins Filho defende e agrega uma série de atores para criar o museu num processo colaborativo, ele está dizendo também que é possível e importante criar espaços de cultura na Universidade”, elabora.
Uma testemunha ocular do período é o artista cearense José Tarcísio. Aos recém-completos 80 anos de vida e 60 de carreira, o pintor e gravador lembra que no início de sua jornada artística “acontecia um boom cultural em Fortaleza”. “Até então a Cidade não tinha um movimento grande em torno das artes visuais. Com o advento da Universidade, que foi a pioneira, ela colocou dentro do seu aparelho um museu de arte. Foi na mesma época da inauguração da Concha Acústica”, remonta o artista ao O POVO.
Apesar da riqueza cultural que surgia no período, a cidade de Fortaleza e o próprio Ceará eram marcados por faltas. As contradições do projeto eram sabidas por Martins Filho, como demonstra uma fala que ele proferiu na Assembleia Universitária de 3 de março de 1960. Na ocasião, o reitor afirmou que criar um museu de arte no Ceará “seria como que instalar Rembrandt em uma palhoça de habitantes famintos”. “(A questão era:) como a gente vai criar um museu de arte numa cidade que precisa, antes de tudo, resolver o problema da seca? Mas ele vai lá e faz, convoca os artistas, não deixa de criar o museu - e no final das contas tem Rembrandt na coleção do Mauc”, ressalta Carolina.
Duas exposições marcaram os primeiros passos do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará. A primeira, “Exposição Comemorativa da Instalação do Mauc”, foi aberta em 25 de junho de 1961. A segunda, por sua vez, marcou de fato o começo oficial das atividades do museu a partir de julho: “Bandeira” trazia recorte da produção de pinturas do artista cearense.
O catálogo da última, em texto escrito pelo advogado, jurista e escritor Fran Martins - irmão do reitor Martins Filho -, professava a intenção da criação daquele espaço: "Nada melhor, para o Museu de Arte da Universidade do Ceará, do que iniciar suas atividades com uma exposição de Antônio Bandeira. Digo iniciar suas atividades porque acredito que o MAUC está convencido de que um museu não é um órgão estático, parado, depósito de quadros sem vida e sem calor. (...) o mais jovem museu do Brasil já começa a procurar agitar a pacata cidade de Fortaleza. (...) Nada melhor do que uma exposição de Bandeira para mostrar que o Museu de Arte da Universidade do Ceará nasceu vivo e promete endiabrar-se”.
O pintor e gravador cearense José Tarcísio lembra-se bem do tal agito. “Sacudiu mesmo a Cidade. Antônio Bandeira era a grande estrela esperada, um artista cearense que tinha carreira na Europa e veio para a inauguração. Foi um acontecimento muito forte”, divide, ressaltando com orgulho ter experimentado in loco a “histórica exposição”. Fascinado pelo que viu, conseguiu se aproximar de Bandeira e o então ídolo virou mentor e amigo.
As obras expostas nas mostras iniciais variavam entre as que já pertenciam ao acervo do Mauc e as cedidas ao museu. “Os custeios das aquisições provinham de verbas federais e a aquisição seguia a orientação do Reitor”, explica o professor e ex-diretor do Mauc Pedro Eymar. No “período pré-museu”, houve a aquisição de duas pinturas paradigmáticas na formação do acervo do Mauc: uma cena de pesca, pintada por Raimundo Cela (1890-1954), e um retrato de Martins Filho, pintado por Oswaldo Teixeira (1905-1974).
Entre as obras agregadas no mesmo período, estão guaches do artista acreano Chico da Silva, descendente de indígenas e um nome importante do contexto das artes visuais do período. Conforme pesquisa da historiadora da arte Carolina Ruoso, a Universidade recebeu uma espécie de “residência” de Chico, que criou uma série de obras que foram posteriormente adquiridas pela instituição.
Outras obras de Cela, incluindo uma coleção composta por mais de 250 peças entre desenhos, pinturas e gravuras, também foram adquiridas na época - ainda que tenham passado, “por exigência do Ministério da Educação”, como ressalta Pedro Eymar, por uma “avaliação do valor artística e financeiro” feita pelo Museu Nacional de Belas Artes antes da aquisição. Trabalhos de Bandeira se somaram ao acervo do Mauc no período.
Os processos de aquisição da época foram se tornando cada vez mais diversos e depõem sobre o que a historiadora da arte Carolina Ruoso chama de “modelo colaborativo”, instituído pelo museu antes mesmo de sua criação. “É importante a gente pensar que o Mauc, diferente de outras instituições museológicas de arte brasileira, não nasce da doação de uma coleção de um grande colecionador. No processo de formação, ele se institui enquanto museu público a partir de um modelo ainda inexistente. É a criação desse modelo de museu que é colaborativo”, desfia.
A ideia é bem ilustrada na fala de Pedro Eymar, que destaca, além do próprio reitor, dois “agentes coletores” de “papel significativo” para a construção do acervo do Museu. “Heloísa Juaçaba, além de incentivadora da ideia de criação, passa a viajar por todo o Nordeste brasileiro colhendo principalmente os objetos das feiras livres, destacando-se entre eles as coleções de esculturas de Chico Santeiro e Agnaldo dos Santos, em madeira, e as esculturas em barro de Mestre Vitalino”, ensina o professor.
O segundo “agente” é o pintor maranhense Floriano Teixeira (1923-2000), que foi o primeiro diretor do Mauc. Vinculado à UFC a partir de 1956, o artista foi “convocado para servir no Gabinete do Reitor na condição de assessor para assuntos de arte” e atuou na coleta de estampas de xilogravuras. Outros importantes “agentes coletores” citados são o artista Sérvulo Esmeraldo (1929-2017) e o jornalista e escritor Lívio Xavier (1900-1988) - diretor do Mauc a partir de 1963 -, que coletaram obras na Europa no início dos anos 1960 e também ajudaram no desenvolvimento das coleções de xilogravuras e arte popular.
Estas últimas foram reforçadas ao longo das décadas de Mauc com a contribuição forte do professor Gilmar de Carvalho. O espaço dedicado pelo museu à xilogravura desde o início de sua história deu à tradição “o estatuto de obra de arte”. Os diálogos entre as chamadas cultura “popular” e “erudita” no acervo da instituição, inclusive, também são dignos de nota.
De acordo com a professora Carolina Ruoso, eles foram um exemplo vivo do lema que a UFC leva consigo até hoje. “O projeto do museu vai estar todo atravessado pela ideia do ‘universal pelo regional’”, aponta. “Há uma dimensão de diálogo entre a arte do Antônio Bandeira e as xilogravuras, há exposições onde elas estão lado a lado em um momento em que a xilogravura era considerada uma ‘arte menor’”, contextualiza a historiadora da arte.
Basta olhar a lista dos primeiros anos de atividades do Mauc para ver exemplos dessas relações de diversidade na instituição: sucedem-se exposições de arte sacra brasileira e europeia, de nomes como Dürer (1471-1528) e Descartes Gadelha (1943), de rendas de bilro e de gravuras japonesas.
Em junho de 1963, o museu acolhe “Oito Artistas do MAUC”, um recorte de obras de nomes da geração SCAP. Sobre ela, é publicado no O POVO um texto de Antônio Bandeira que meditava sobre a multiplicidade de expressões que encontravam vazão no museu da UFC, seja em exposições ou no acervo. No texto, o artista elabora a ideia e demonstra a presença deste olhar desde o início no museu.
"A Reitoria da Universidade do Ceará nos deu um Museu - o M.A.U.C., que deve ser uma instituição viva e dinâmica, com bases eruditas e populares - e aí o 'popular' também é erudito e autêntico, pois o Ceará é um dos maiores celeiros de arte popular, base essa que pode ser a pedra fundamental da nossa arte moderna”, sentenciou Bandeira.
Fontes de pesquisa: Site do Mauc (www.mauc.ufc.br); Tese de Doutorado “Casa de Marimbondos. Nove tempos para nove atlas. História de um museu de arte brasileiro (1961 -2011)”, de Carolina Ruoso, defendida na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne; O POVO.doc
Reportagem em série passeia pela história do Museu de Arte Contemporânea da UFC, mostra suas transformações e aponta para o futuro da instituição