Sangue, disputa de poder, torturas, extorsões e estupros era o que se via, principalmente nas décadas de 1980 e 1990, nos pavilhões dos presídios brasileiros. Às 13 horas do dia 31 de agosto de 1993, no anexo da Casa de Custódia de Taubaté, no Estado de São Paulo, oito presos do andar de cima e oito presos do andar debaixo saíram para tomar banho de sol. Garcia e Severo xingaram o grupo do andar superior. Garcia disse algo como “vou beber o sangue de vocês na canequinha”. José Márcio Felício, o “Geleião”, mandou o detento conhecido como “Da Fé” ficar no portão. Foi “para cima” do Garcia. O restante do seu grupo ficou encarregado de pôr um fim em Severo. Os dois morreram na hora. Naquele complexo apelidado de “Piranhão”, o grupo “vencedor” decretou: estava fundado o Primeiro Comando da Capital, o PCC. Com estatuto próprio (que segue até hoje), o grupo veio a se tornar a maior facção criminosa da América Latina.
Contada pelo próprio Geleião em depoimento ao promotor Márcio Christino (um dos principais investigadores do PCC no País), essa história está documentada na série “PCC: poder secreto” (2022). Com direção do cineasta Joel Zito Araújo e produção de Gustavo Mello, a obra aborda a origem e os desdobramentos da facção, além dos bastidores do sistema prisional brasileiro. Baseado no livro “Irmãos: uma história do PCC” (2018), do cientista social Gabriel Feltran, o documentário seriado em quatro episódios pode ser assistido no serviço de streaming HBO Max.
“PCC: poder secreto” apresenta depoimentos de integrantes e ex-membros da organização, além de ex-agentes carcerários e de investigadores. Com cerca de 45 minutos cada, os episódios traçam um panorama sobre um grupo cuja hegemonia prevalece com seus mais de 30 mil membros. A produção Max Original também destaca como a música reflete essa complexidade, com a trilha sonora de Racionais MC’s, 509-E, Evandro Babá e MC Orelha.
Diretor de fillmes como “Raça” (2013) e “A Negação do Brasil” (2000), Joel Zito é considerado um dos grandes nomes do cinema negro brasileiro. Em entrevista ao O POVO, o diretor comenta as questões sociopolíticas interligadas à série. “Sempre soube que tem uma dimensão racial, porque as periferias urbanas são mais negras e indígenas no Brasil. Nosso sistema prisional não é um sistema justo do ponto de vista racial. Tinha essa consciência, mas também tinha consciência que o documentário não era uma questão sobre o racismo no sistema prisional, mas, de fato, sobre a história do PCC. Não precisei de tanto esforço assim, mas tive de não forçar a mão. Porque, inclusive, achava que naturalmente essa coisa estaria aparecendo como uma segunda ou terceira camada do trabalho”.
Segundo o diretor, a construção da série esteve ligada ao processo de escuta ativa, algo característico de sua obra. “Minha forma de abordar é aquilo que eu tenho, a capacidade de ouvir. Sou um bom escutador. As pessoas vão ficando à vontade para falar questões profundas, íntimas”. Joel pontua: “Como tenho origem afro-brasileira e como trabalho com esse tema, acho que também isso foi um facilitador, diante da maioria das pessoas que estão nas periferias urbanas, atravessadas pelo PCC ou que têm a ideologia do PCC”.
Joel estava envolvido em outro trabalho com a Boutique Filmes, co-produtora da série junto a Warner Bros e Discovery, quando Gustavo Mello o convidou para dirigir um novo projeto. A ideia surgiu do produtor, que apresentou o cineasta ao livro de Gabriel Feltran. “Fiquei impressionado com a abordagem equilibrada, de compreender por dentro o porquê do PCC ter adquirido essa força, porque ele se expandiu, e aceitei”.
Com o pesquisador Gabriel Feltran como consultor, Joel destaca o amparo científico da produção. Além de “Irmãos: uma história do PCC”, a obra também contou com a pesquisa de Daniel Veloso Hirata, William Alves Neves e Thais Nunes. Segundo Joel, o processo entre pesquisa, captação e montagem foi rápido, “de muito fôlego”, com "dois anos e meio entre início e fim". Mais perto da finalização do projeto, o diretor diz que chegou a trabalhar imerso no material 14 horas por dia. O cineasta afirma que as autoridades ouvidas eram “lúcidas” sobre a complexidade da formação do PCC, algo que vai além de uma visão simplista sobre a organização.
Para Joel, a série retrata uma questão de política pública. Na produção, os depoimentos dão conta que uma facção surge quando o Estado peca. O termo “poder secreto” no título remete a essa força hegemônica do PCC quase invisível, beirando ao âmbito do incontrolável. Talvez, a facção possa até diminuir sua força, mas ela não acaba. Isso porque o PCC não está ligado a uma figura específica, mas a um conjunto de ideias delineadas há quase 30 anos.
PCC: poder secreto
Onde: HBO Max
Quanto: assinaturas a partir de R$ 14,16 ao mês (valor aplicável ao plano anual com pagamento antecipado)
Mais info: hbomax.com
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