Cantora, compositora, instrumentista, ilustradora, escritora. Baiana radicada em Pernambuco, Karina Buhr expressa, em diferentes formatos e suportes, ideias traçadas em palavras e desenhos. Reconhecida pela carreira musical solo — que começou em 2010 com "Eu Menti Pra Você", seguido de outros três discos — a artista está em Fortaleza para participar de quatro eventos. Na quinta, 20, lança o livro "Mainá" — que segue "Desperdiçando Rima" (2015), de poesias, e marca a estreia dela como romancista — na Livraria Coração Selvagem. Na sexta, 21, leva o show "Voz e Tambor", com Régis Damasceno, ao Centro Cultural Banco do Nordeste e à abertura da 8ª Bienal de Par em Par, e, no sábado, ao Cantinho do Frango. Abordando de inspirações a mercado, Karina destaca em entrevista ao V&A processos do romance, avaliação da arte independente e multiplicidades de atuação.
O POVO - Você escreve música, poesia, crônicas. "Mainá" começou como peça e foi concretizado como romance. São formas diversas de lidar com a palavra, com o dizer. De onde parte esse interesse?
Karina Buhr - Acho que parte da caneta, tudo que sai dela me interessa. Me identifico com cada um desses formatos, tanto como espectadora como criadora. Gosto de poesia, contos, crônicas, teatro, música, desenhos e vario os formatos a partir de meus próprios projetos, ou instigada por convites pra participar de trabalhos de outras pessoas. Acho que um formato alimenta o outro.
OP - Como e quando “Mainá” foi pensado? Como foi o processo de, digamos, “adaptação” de formato?
Karina - A personagem tenho desde 1995, dentro da peça “O Chapéu de Mainá”, que não cheguei a encenar. O processo de virar romance foi a partir da oficina de escrita de Andrea del Fuego. Em algum momento da oficina fiz um texto com Mainá e isso foi se desenvolvendo pra além dos limites da peça. Um dia Andrea perguntou "por que você não faz um livro de Mainá?" e aí foi o pontapé pra eu pensar no formato de romance e mergulhar nisso até terminar. A personagem principal já era minha velha conhecida e também outras figuras que costuram tudo, então foi muito natural criar caminhos novos caminhos pra eles e desenrolar o romance.
OP - Ao mesmo tempo que “Mainá” é apresentado como um romance e, de fato, conta uma história maior, com características desse gênero, há uma aproximação do texto com aspectos poéticos e, ainda, com um formato de crônica/conto. Essa foi uma escolha consciente ou aconteceu naturalmente?
Karina - Foi uma escolha consciente, a partir de um processo que aconteceu naturalmente. Eu tinha muito forte a divisão de cenas, de entradas e saídas de personagens, cenários, por conta de pensar em Mainá sempre como teatro. Mesmo agora que é romance, é daí que acho que vem isso de os capítulos às vezes parecerem contos e funcionarem também separados do contexto completo. Também alguns personagens tem uma fala mais poética e foi muito natural intercalar essas linguagens.
Ver essa foto no Instagram
OP - O livro parte do protagonismo da personagem-título, mas varia entre primeira e terceira pessoa — há momentos em que Mainá fala de si, há momentos em que falam dela. Como se deu esse fluxo de construção do texto?
Karina - Mainá observa e é observada o tempo todo e essas transferências de narração uso pra reforçar isso, a mudança de peso, de importância. Ela narra a história tentando muitas vezes transferir o próprio peso no enredo pra o que acontece em volta e às vezes esse entorno se impõe. A partir disso acontecem descobertas fundamentais pra ela nas reflexões sobre a importância ou desimportância dela mesma no que ela está tentando entender como vida e como morte. É uma história que pensa muito a morte e achei interessante tirar o poder de protagonismo de Mainá na narração de vez em quando.
OP - Sendo uma artista independente que viveu no Brasil dos últimos dois anos — no qual o contexto da pandemia acentuou problemas estruturais e institucionais anteriores vividos no setor da cultura —, qual sua avaliação sobre os movimentos mais recentes das políticas públicas e da busca pela manutenção delas?
Karina - Aconteceram mobilizações muito fortes pra essas políticas públicas serem efetivadas apesar do presidente ser contra todas elas. Nesse caminho muita coisa fluiu muito lentamente, de forma muito burocrática, com muitos defeitos na execução, mas não deixou de ser fundamental. A manutenção delas é de uma importância imensa e depende do compromisso de todas as instâncias envolvidas nesse processo. Uma maneira decente de o poder público pensar a cultura no país é pra ontem. Nisso tudo imperam as mesmas regras de sempre, onde o racismo opera forte, deixando desassistidas justamente as pessoas que deveriam ser contempladas de forma mais efetiva e rápida, são vidas em jogo, das pessoas e de sistemas inteiros de produção cultural. A gente tinha avançado nisso e de repente tudo desmoronou de um jeito que vai dar bastante trabalho reconstruir.
OP - Você faz graça com o imperativo de “entrar no gráfico, no mercado fonográfico” em “Ciranda do Incentivo” (sexta faixa de “Eu Menti Pra Você”). Recentemente, em ligação com isso, vem sendo uma voz muito franca e aberta ao falar das dificuldades de se manter financeiramente e conseguir custear shows, da imposição do uso das redes sociais de certa forma para “manutenção” da carreira, da derrubada de vídeos seus cantando músicas suas por questões de “direitos autorais”… Na sua avaliação, esse contexto todo, marcado por certa “neoliberalização” da arte, é fruto de quê?
Karina - Esse é um conflito que sempre existiu pra quem trabalha com arte. Do que tanta gente produz todos os dias, o que vai "entrar no gráfico" é definido por fatores que não dependem apenas desse fazer diário e muitas vezes, na maioria das vezes, é totalmente alheio a ele. Quem cria acaba sendo levado e usado pelos mecanismos do funcionamento de uma máquina que lucra muito. O que cabe à maioria são as raspas, a sobra de alguma coisa. Sem falar da quantidade imensa de artistas que não podem viver da sua arte, porque nunca puderam se dedicar totalmente a ela, por questões estruturais da sociedade brasileira, o racismo aqui, de novo, falando muito alto.
Quando falo sobre a dificuldade de se manter financeiramente, é de uma quantidade imensa de pessoas que vive disso, é pra além do meu umbigo, é sobre um governo que agravou problemas sérios que já tínhamos e que tentávamos driblar. Temos muitas maneiras diferentes de fazer arte e universos diferentes de artistas, as demandas são muito distintas. O que tem de maravilhoso nessa diversidade de expressões tem também de escancarar o acesso que uns têm e outros não, o que define que um pode viver disso e outro tem que fazer nas horas vagas do que é considerado seu verdadeiro trabalho. E é aí que entra a importância das políticas públicas pra esse setor, que é funcionar a partir de uma lógica de compreensão do que são as culturas de um país (não existe só uma) e o fomento delas. As regras de mercado vão existir sempre e a dignidade do trabalho com arte passa pela sabedoria e vontade de quem comanda as políticas culturais.
OP - Como você lida, ou busca se organizar, frente a esse contexto e às imposições do “mercado”?
Karina - É um aprendizado diário, é cansativo, não tem uma fórmula. Tem também uma questão relativamente nova, que é os termos "alternativo" e "independente" serem usados pra artistas que tem uma estrutura imensa e muito dinheiro circulando no trabalho e isso dá uma visão errada da realidade pra quem vê de fora. Enquanto um consegue lançar disco, clipe e produtos mil ao mesmo tempo, bancar uma assessoria de imprensa e chegar rapidamente num público grande, o outro num tempo muito maior não consegue nem gravar o próprio trabalho, isso falando de música. É errada a ideia de que hoje em dia é muito fácil gravar, todo mundo tem acesso. Não tem. É uma questão que muitas vezes só quem vive isso de dentro percebe. A ideia de que você tendo um trabalho inventivo e bem executado vai te alçar a um lugar confortável de viver da sua arte é a velha meritocracia de sempre. A verdade é que a grande maioria não vai passar no gargalo e quando não existem políticas públicas pros diferentes segmentos e necessidades, seguimos na base do cada um por si. Pra mim as possibilidades de melhoria desses cenários são sempre coletivas, apesar dos desejos e objetivos da carreira de cada um serem individuais.
OP - Hoje, para além da “indústria”, como está sua relação com a música, com a arte? O que te move para produzir?
Karina - O fazer mesmo e o que acontece quando o que faço chega nas pessoas, é isso que alimenta. O desânimo é imenso pela situação de destruição total que vivemos no Brasil agora e isso às vezes domina tudo e a vontade escapa, mas aí você vê uma pessoa cantando empolgada sua música, dançando, falando do que sentiu quando leu seu livro, achando bonito um desenho emoldurado na parede e aí volta tudo a fazer sentido, por cima de todo o cansaço.
Lançamento de "Mainá"
Sessão de autógrafos com Karina Buhr e bate-papo com a escritora Rita Vânia Gomes
Quando: quinta, 20, a partir de 18 horas
Onde: Livraria Coração Selvagem (rua dos Tabajaras, 450, Praia de Iracema)
Acesso gratuito.
Mais informações: @coracao_selvagem
Mainá
Romance, 136 páginas. De Karina Buhr.
Editora Todavia
Onde comprar: www.todavialivros.com.br/livros/maina e livrarias
Mais programações
Quando: sexta, 21, às 19 horas
Onde: CCBNB (rua Conde d'Eu, 560, Centro)
Gratuito.
Quando: sexta, 21, às 22 horas
Onde: em frente ao Teatro Dragão do Mar (rua Dragão do Mar, 81, Praia de Iracema)
Gratuito, mediante pulseira que será distribuída no espetáculo de abertura do evento. Detalhes da entrada no show em @bienaldedanca ou no site do evento
Quando: sábado, 22, às 18h30 horas
Onde: Cantinho do Frango (Rua Torres Câmara, 71, Aldeota)
Quanto: R$ 40
O podcast Vida&Arte é destinado a falar sobre temas de cultura. O conteúdo está disponível nas plataformas Spotify, Deezer, iTunes, Google Podcasts e Spreaker. Confira o podcast clicando aqui