Um Fanático. Bronco. Louco. Perigoso. Aventureiro. Misterioso lendário do sertão. Pernicioso beato. Anacoreto "Pessoa que vive recolhida, afastada do convívio social; monge. No caso de Conselheiro era usado pejorativamente" sombrio. Matricida. Figura curiosíssima. Um fakir.
“Quem é esse homem que arrasta de lugarejo em lugarejo milhares de pessoas submissas, homens, mulheres, crianças e velhos prostrados anto à sua superioridade de divino?”. O texto publicado com destaque no jornal carioca O Paiz, em 1897 não resta dúvidas: Antônio Conselheiro despertava o interesse nacional.
Nessa mesma edição, O Paiz traz uma novidade para os leitores: uma litogravura do homem que causava estranheza. “É uma bela novidade, pois atendendo à popularidade de Bom Jesus no interior da Bahia, a exposição de um nítido retrato de um Antônio Conselheiro: cabeleira longa sobre os ombros, sobre os cabelos, um solidéu, longa barba espessa, olhos para o chão, pensativos, túnica azul, alpercatas, corpo inclinado para frente apoiado a um bordão grosso e comprido”.
Em 1897, a imprensa brasileira voltava os olhos para o sertão do Brasil, mais precisamente para Canudos, o arraial onde foram contados – uma a uma, segundo relato de Euclides da Cunha – 5.200 casas, algumas construídas de alvenaria, boa parte, de barro.
Durante todo aquele ano, Canudos, então chamado de Belo Monte pelo seu fundador, Antônio Conselheiro, travara um conflito armado como a força oficial republicana, que envolveu o Brasil inteiro.
A guerra só terminou após quatro investidas das campanhas militares do governo. Belo Monte resistiu a três ataques. Na terceira investida contra o arraial, a Nação inteira, de olho no sertão baiano, acompanhou entre incrédula e amedrontada, o contra-ataque dos “jagunços” que terminou com a morte de Antônio Moreira César, comandante da campanha, que tinha fama de cruel, apelidado pelos sertanejos de “Corta-Cabeças”.
Moreira César recebera a missão de acabar com Canudos, o que para ele parecia tarefa simples até ser atingido, morrer no campo da batalha e obrigar os militares a retrocederem. Como homens militarmente armados sucumbiam a “jagunços”? A quarta – e definitiva – campanha do Exército mobilizou não apenas os quartéis, mas principalmente a política e a imprensa.
Para o conflito foram destacados soldados de vários estados, suporte médico, jornalistas, fotógrafo. Entre eles Euclides da Cunha, jovem engenheiro, militar e jornalista que cobria a guerra para o jornal Estado de S. Paulo.
Cinco anos mais tarde, em 1902, Euclides da Cunha lança o livro Os Sertões consolidando uma visão da guerra de Canudos que praticamente cristalizou no tempo o massacre ocorrido no sertão da Bahia.
Embora o engenheiro e jornalista, que esteve no Belo Monte nos meses finais da refrega sangrenta, tenha mostrado a injustiça do pleito republicano nas investidas militares, cuja vitória final havia deixado atrás de si uma mortandade marcada pela crueldade e pela barbárie, o arraial ocupado por homens, mulheres, crianças e jovens foram descritos no “livro vingador” de Euclides como uma “jagunçada” bruta, formada por tipos estranhos movidos pela ignorância. Antônio Conselheiro era seu líder, um fanático religioso, um louco capaz se fazer seguido.
O feito de Euclides foi se tornar uma voz dominante sobre Canudos por quase 50 anos. No entanto, outros relatos já haviam posto em questão a ação militar em Belo Monte, dissecando a matança dos canudenses.
O jovem médico Alvim Martins Horcades fora um dos primeiros. Como estudante de medicina durante a Guerra de Canudos, fora incorporado ao grupo de socorro aos feridos – exclusivamente militares – durante os meses do conflito.
Apesar disso, em 1899, publicou o livro “Descrição de uma viagem a Canudos” no qual denuncia os “degolamentos” praticados “contra pobres sertanejos”, principalmente os que, sob o comando de Beatinho, entregaram-se em rendição em 2 de outubro de 1897, nos últimos dias do massacre.
O jornalista carioca Manuel Benício, enviado pelo Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, ao sertão baiano para cobrir a guerra também publicou O Rei dos jagunços, em 1899. Benício, numa linguagem que mistura fatos que presenciou e ouviu contar, além de lançar mão de documentos da época, narra os horrores da guerra de Canudos.
Expõe o massacre de homens, mulheres e crianças diante da ferocidade dos soldados do exército republicano. Sobre Conselheiro afirma que: “ninguém o pode pois chamar de charlatão e ambicioso, quando, com a morte, mostrou ser um verdadeiro crente e mártir da causa que, boa ou má, apostolou”.
Coube, porém a Euclides da Cunha a primazia do discurso sobre Canudos. Discurso este que se arrastou até que outras histórias começassem a ser contadas em vários cantos do Brasil. O historiador sergipano, que morava na Bahia, José Calasans, começou a mergulhar, por volta dos anos de 1950, na história de Belo Monte e de Antônio Conselheiro reunindo o que é considerado um dos mais completos acervos sobre o líder de Canudos, hoje, em posse da Universidade Federal da Bahia, onde Calasans criou o Centro de Estudos Baianos.
As principais fontes de Calasans para recontar a história de Belo Monte foram os próprios sobreviventes da guerra que, pouco a pouco, abandonaram o silêncio quando outra história de Canudos rompe o cerco narrativo euclidiano.
Nessa nova história, o fanatismo e a loucura de Conselheiro e a ignorância cega dos sertanejos dão lugar, de um lado, a ações humanas orquestradas por um contexto social brasileiro no século XIX marcado, principalmente, pelo desamparo das populações negras após a lei da Libertação dos Escravos e pela escassez e pobreza que margeavam os sertões. Em desalento também estavam os pobres em geral e as populações indígenas.
Por outro lado, a experiência de Canudos está no centro de uma disputa por mão de obra para as fazendas da região que vê trabalhadores seguirem para Belo Monte onde teriam sua própria terra e casa. A pressão da Igreja, cujos líderes entram em atrito com Antônio Conselheiro que se recusa, na maioria das vezes, se submeter a autoridades eclesiais completam a trindade de conflitos que cercam o arraial.
Artigos de jornais da Bahia e de Sergipe da época, pesquisados por Calasans, trazem o mote econômico para o centro da refrega. Ou seja, a verdade sobre a “jagunçada” e seu líder “fanático” tinha outras faces. O impulso para redescobri-las se espalha pelo Brasil e ganha ainda mais força quando são publicados os manuscritos de Antônio Conselheiro. É quando o “bronco” dá lugar ao “culto”.
“Evidentemente Antônio Conselheiro foi tomado como um louco, como uma ameaça à República, um fanático e isso era decorrência de uma ética que assumia perante o outro, perante essa alteridade. Então, essa foi a primeira resposta do discurso dominante no Brasil”, afirma o psicanalista Osvaldo Costa Martins, membro fundador, em 1997, do Movimento Antônio Conselheiro, em Quixeramobim, pesquisador da obra de Antônio Conselheiro, autor da pesquisa Os manuscritos de Antônio Conselheiro: Culpa e identificação na religião do filho. (Uma resposta à igreja e ao Estado).
Para Oswaldo Costa, “foi preciso de fato fazer uma desconstrução do discurso oficial para que outra figura conselheirista emergisse dos escombros que o Estado brasileiro deixou em Canudos”, afirma o psicanalista, acrescentando que a figura que emerge das releituras que começam a ser feitas sobre Antônio Mendes, o Conselheiro é a de “um heroico homem comum”.
“Faço um contraste do herói como uma exceção, algo sobre-humano, com o homem comum. Da vida comum dele, do sofrimento ordinário da existência, ele se transformou e transformou a realidade com o grande ato dele, que é transformar o laço social”, explica Costa, que se debruçou sobre os manuscritos de Antônio Conselheiro.
Os manuscritos deixados por Antônio Vicente Mendes Maciel foram encontrados após o fim da guerra pelos militares que invadiram o arraial de Belo Monte. Durante quase meio século, os textos permaneceram longe do alcance dos leitores até ganharem edições e os pesquisadores encontrarem ali um Antônio Conselheiro muito diferente do personagem louco narrado por Euclides da Cunha, ou o fanático bronco descrito pela imprensa da época.
Em primeiro lugar, cai por terra o louco ou paranoico. Em segundo, surge na caligrafia de Antônio um grande líder, cuja fé convoca a ação. “O que eu extraí dos manuscritos foi um Conselheiro que não tem nada de paranoico, desse louco que Euclides da Cunha pintou e outros tantos pintaram e não tem nada de uma ameaça a Republica”, analisa Martins.
Para ele, a monarquia defendida por Conselheiro tem um papel muito mais ligado às suas convicções teológicas de considerar o rei um representante de Deus na terra do que questões ligadas, de forma ferrenha, à política.
“Pra mim ele é uma espécie de rapsodo, intérprete de um texto bíblico que se esforça para que o texto sagrado chegue a seus irmãos. Pelas fontes da história oral e pelos textos, ele não se apresentava como Deus, ele não estava num delírio de achar que ele era Deus, como é comum em algumas situações na psicose. Ele se dizia irmão, claro que numa posição destacada porque fazia essa mediação com os textos e não como uma divindade”, propõe o psicanalista.
Estar em pé de igualdade com todos os que faziam Belo Monte também é realçado por Neto Camorim, historiador, professor e membro da ONG Instituto do Patrimônio Histórico, Cultural e Natural de Quixeramobim. Há pelo menos 15 anos Camorim faz o percurso entre Canudos e Quixeramobim reconstruindo a história de Antônio Conselheiro e de Belo Monte.
O historiador narra a frase de Antônio quando alguém se ajoelhava diante dele: “Levante-se, que Deus é outra pessoa”. Camorim afirma que até mesmo o manarquismo do personagem precisa ser revisto. “É necessário pensar que esse monarquismo de Conselheiro é muito mais uma reação contra a república que não traduz os anseios do povo pobre do sertão”, considera.
Oswaldo Martin retoma o fio da conversa para reiterar que o heroísmo de Antônio Conselheiro se faz a partir da sua própria vida comum. “Quando eu falo de um heroico homem comum, falo daquele sujeito sofrendo com seu sintoma, mas ao mesmo tempo não sucumbindo a ele e fazendo laço a partir disso”. O pesquisador dos textos do Conselheiro complementa que os manuscritos de Antônio deixam claro sua liderança seja como construção, seja como intérprete do texto bíblico.
“O que se extrai dos manuscritos é um grande líder, um grande leitor da Bíblia e dos textos da época, um intérprete e que tomou isso como uma missão dele. Tornou-se um trabalhador de uma ética religiosa que pressupunha ação. A fé é o ato, acho isso bonito porque é o que vai guiar a vida dele como construtor de igrejas, dos açudes, e liderar o povo em mutirão coletivo”.
A humanidade de Conselheiro e a ausência de feitos sobre-humanos em torno dele, segundo Osvaldo, são um lugar de marco e beleza.” É esse o homem herói que enfrenta tragédias e se reinventa e supera, e ao mesmo tempo é um homem marcado pelo seu tempo e pela sua época e questões pessoais. Não tem nada de 'super' e é isso que é bonito”.
Neto Camorim destaca “a preocupação com o outro” que move o homem nascido em Quixeramobim, que se autoproclama “andarilho”, faz-se beato e, por quase 25 anos, andou pelo sertão de Sergipe e Bahia fundando igrejas e cemitérios, reformando capelas e abrindo aguadas – tipos de cisterna – para facilitar o consumo da água para os sertanejos. Além de aconselhar e ouvir os sertanejos. “Era um verdadeiro líder, tinha visão, sabia o que as pessoas precisavam, amparava. Isso não foi compreendido pela elite da sua época”, reforça o historiador.
Para a professora, poetisa e conselheirista Gorete Pimentel, uma das primeiras pesquisadoras sobre Antônio Conselheiro em Quixeramobim, ainda nos anos de 1990, sua maior inquietação era descobrir quem era esse personagem tão desconhecido e ridicularizado na cidade.
“Eu via pessoas de fora virem a Quixeramobim saber quem era esse Antônio Conselheiro, enquanto as pessoas daqui só falarem que ele levou chifre, que teve uma desilusão amorosa e que partiu”, afirma Gorete. “Nos nossos livros didáticos havia meia página com a versão deturpada da história, pela beatice, com o fim de ridicularizar a figura do Conselheiro”, conta.
Após a pesquisa, múltiplos Antônios surgiram nos relatos das cerca de 60 pessoas ouviu: moradores da rua Antônio Conselheiro, na cidade, membros da igreja progressista e conservadora, policiais, idosos. “Foi um impacto muito grande para mim perceber o silêncio em torno de Antônio Conselheiro e, principalmente, reconhecer que houve uma deturpação histórica que o retratava apenas como um louco que partiu do Ceará e fez uma guerra na Bahia”, aponta Gorete que está ajudando a reconstruir a história de Conselheiro em Quixeramobim.
O trabalho realizado em 1996 gerou frutos, inspirou jovens a seguirem o rastro de Conselheiro em Canudos e conhecerem melhor a história de Antônio Vicente Mendes Maciel, e contribuiu para que o fato histórico de Belo Monte fosse parar no currículo das escolas do município como conhecimento eletivo para os alunos.
Segundo Gorete, sua missão é incentivar as crianças e os jovens de Quixeramobim se apropriarem de sua própria história e ela passa por Antônio Conselheiro e Canudos. “O Antônio que fica para mim é o que precisa saber viver. Trago comigo aquele Antônio que luta por justiça social, aquele que prova que é possível, sim, construir um mundo mais humano”.
Além da história, a arte contribuiu para as releituras de Canudos, não apenas no Brasil. O cineasta baiano Glauber Rocha tem duas produções clássicas que ficcionam a Guerra de Canudos. Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, ambos de 1964 mudaram o jeito de se fazer cinema no Brasil.
Em 1981, o escritor peruano Mario Vargas Llosa, prêmio Nobel de Literatura em 2010, lançou o livro A Guerra do fim do mundo, romance que se tornou um clássico ao narrar do ponto de vista da ficção, a tragédia de Belo Monte. A escritora e professora aposentada do Departamento de Letras da UFC, Angela Gutièrrez, publicou em 2006, o romance Luzes de Paris e o fogo de Canudos. No primeiro centenário da queda de Belo Monte, o cineasta Sergio Rezende lança o filme Guerra de Canudos.
Os Sertões, com montagem do Teatro Oficina, do dramaturgo José Celso Martinez, fez história em 2007, nos sertões do Ceará e da Bahia. A montagem ousada transformou Quixeramobim num verdadeiro campo de batalha simbólica. De um lado os que apoiavam a peça e do outro aqueles que a taxavam por uma “imoralidade” que não deveria ser exibida em Quixeramobim.
A peleja foi parar na Igreja e mobilizou a Câmara Municipal, onde grupos religiosos chegaram a protestar contra a peça devido, principalmente, as cenas de nudez. Em 2015, acontece a estreia do documentário Paixão e Guerra no Sertão de Canudos”. A temática ligada à tragédia de Belo Monte é discutida anualmente, durante o evento Conselheiro Vivo, na Casa de Antônio Conselheiro, em Quixeramobim, em março, em comemoração ao nascimento de Antônio Vicente Mendes Maciel.
O evento que atualiza pesquisas em torno de Conselheiro e Canudos já rendeu a publicação do De Quixeramobim a Belo Monte: Olhares sobre Antônio Conselheiro, organizado pelo historiador Danilo Patrício e Osvaldo Costa. Conselheiro Vivo também é responsável pela travessia anual de pesquisadores entre Ceará e Bahia.
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Confira especial completo "Múltiplos Antônios após 125 anos da queda de Canudos"