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Cem anos após morte, Lima Barreto segue oferecendo retrato vivo do Brasil
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Cem anos após morte, Lima Barreto segue oferecendo retrato vivo do Brasil

Morte do escritor e jornalista brasileiro Lima Barreto completa cem anos nesta terça-feira, 1º; ao Vida&Arte, pesquisador resgata legado do autor
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Escritor e jornalista carioca Lima Barreto publicou romances, sátiras, contos e crônicas ao longo de sua vida, e é considerado um dos principais nomes da literatura brasileira (Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Escritor e jornalista carioca Lima Barreto publicou romances, sátiras, contos e crônicas ao longo de sua vida, e é considerado um dos principais nomes da literatura brasileira

Foi nesta data de 1º de novembro, mas há cem anos, que chegou ao fim, no plano físico, a trajetória de um dos maiores escritores brasileiros. Nascido exatamente sete anos antes da abolição jurídica da escravidão no Brasil, Lima Barreto passeou por meio de sua obra por críticas à Primeira República, por retratos de desigualdades sociais e raciais e, a partir de sátiras e ironias, também apontava as hipocrisias da sociedade de seu tempo.

Autor de livros como “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, “Os Bruzundangas” e “Clara dos Anjos”, o escritor, jornalista e cronista pré-modernista foi capaz de apresentar retratos críticos sobre sua época. Vítima de um ataque cardíaco, morreu muito jovem, aos 41 anos, depois de enfrentar problemas de saúde, o alcoolismo e de ser internado em hospitais psiquiátricos.

Cem anos depois de seu falecimento, porém, Lima Barreto segue sendo lembrado. É o caso do sociólogo, docente e pesquisador Guilherme Marcondes. O seu contato com a obra do escritor se deu por “interesses de pesquisa sobre as relações étnico-raciais no campo da arte brasileira, sendo Barreto um dos principais autores do pré-modernismo literário do Brasil”.

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“Acessei, portanto, o legado de Lima Barreto por acreditar que, por meio de seus trabalhos, conseguimos reconstituir um período fundamental de construção da identidade nacional. O trabalho de Lima Barreto tem sido, então, incorporado em disciplinas que venho oferecendo nos últimos anos, revela.

“Lima Barreto tem uma obra em que mistura fatos e acontecimentos de sua vida e de sua época. Seu trabalho não é apenas ficcional. Além de cronista, anarquista, romancista relacionado ao movimento pré-modernista e que foi atuante em diversos periódicos no Rio de Janeiro, à época capital federal, Lima, um homem negro em um país em que Abolição jurídica da escravização acabara de acontecer, uma nascente República, foi também interno de instituições manicomiais, em virtude de seu alcoolismo”, discorre o pesquisador.

Guilherme aponta que a partir dessas internações surgiram dois “subprodutos”, sendo eles “Diário do Hospício” e “Cemitério dos Vivos” - esse, por sinal, um romance inacabado. Nele, o escritor apresenta “os dramas pessoais do protagonista envolto em seu vício e internação em um manicômio”. O trabalho é baseado nas anotações de seu diário.

“Cemitério dos Vivos é, deste modo, uma metáfora brilhante do autor para relatar como eram tratados os usuários do sistema de saúde mental da época, caracterizando a violência do processo que, não aleatoriamente, incidia por uma maioria de pessoas negras que eram maioria naquelas instituições”, aponta.

Quanto ao “Diário do Hospício”, Barreto expõe o cotidiano de sua internação ao passo em que “critica o ethos academicista que considerava pouco reflexivo no Rio de Janeiro da Belle Époque”. Na avaliação de Guilherme, a obra contribui, borrando as fronteiras entre o real e o ficcional, para “pensarmos sobre os cuidados com as questões relativas à saúde mental e as relações raciais no País”.

Na visão do docente, o fato de Lima Barreto ter recebido, na parte final de sua vida, um tratamento que associava muito sua figura ao alcoolismo e a um “estado de loucura” reflete “as violências racistas e classistas de seu tempo”. A fala do sociólogo relembra um período em que, mesmo após a "abolição jurídica da escravização no Brasil”, havia a circulação de uma “ciência” que afirmava “a existência de raças biológicas, fundamentando uma hierarquização entre diferentes populações com base em seus fenótipos”.

Assim, na avaliação do pesquisador, Lima Barreto “enfrentou as consequências de ser quem era em um mundo não exatamente aberto a sua existência”. “Ainda hoje há quem negue o racismo na sociedade brasileira, o tratamento diferenciado no acesso à saúde, educação e renda conferido historicamente às populações negra e indígena neste país”, introduz.

Guilherme reforça: “Creio que retomar a obra e a vida de Lima Barreto é nevrálgico para entendermos o passado da sociedade brasileira, trazendo transformações para o presente, mirando o futuro, onde podemos construir outro tipo de sociedade, em que o racismo não seja mais uma regra, pois apesar de negado, ele é presente em nossa sociedade, a negação não faz com ele desapareça”.

Nesse sentido, diante das celebrações marcantes em 2022 do centenário da Semana de Arte Moderna e do bicentenário da independência, Guilherme aponta que Lima Barreto vem sendo lembrado nos últimos anos, mas ressalta a importância de continuar pondo sua obra em destaque, independentemente do tempo vigente e mesmo cem anos após sua morte.

“Lima Barreto narra um período fundamental de construção da identidade nacional, uma recém-República saída de mais de 300 anos de um sistema que sequestrou, escravizou e assassinou negros e indígenas. Trata-se do nascimento do Brasil enquanto país livre e buscando adentrar na modernidade espelhada pelo continente Europeu. Sendo, assim, importante para entendermos ‘o que faz do Brasil, o Brasil’”.

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