Quando o anúncio da ganhadora do Nobel de Literatura de 2022, a francesa Annie Ernaux, chegou ao mundo dos livros e leitores, a justificativa da Academia Sueca para conferir a honraria à 17º escritora mulher, foi certeira. Destacou a “coragem e acuidade clínica com a qual ela descobre as raízes, estranhamentos e limitações coletivas de sua memória pessoal”. Anderson Olsson, presidente do comitê do Nobel de Literatura se referiu a Ernaux como “uma etnóloga de si”.
De forma quase transparente, Ernaux encara fatos da vida pessoal como a pobreza e as limitações da infância, a vergonha que a acompanhou por boa parte da vida a partir do dia em que presenciou seu pai tentando matar sua mãe, o aborto quando tinha 21 anos, a juventude, a vida adulta, a velhice estampada em “Os anos”, enquanto observa as cenas do passado, prestes a desaparecerem para sempre.
Ernaux estava, sim, na bolsa de apostas que se forma em torno do prêmio. A escritora, de 82 anos, figurava ao lado do polêmico escritor francês Michel Houellebecq, do queniano Ngugi Wa Thiong´o; da ensaísta e poeta canadense Anne Carson. Annie, porém, foi a escolhida e tornou-se a primeira escritora francesa a receber o prêmio e a 17ª mulher a ser conferido um Nobel.
O Nobel de Ernaux consolida de uma vez por todas a literatura da escritora que se tornou clássica na contemporaneidade e, por muito tempo, figurou apenas como autobiografia. Ela própria afirmou em entrevistas que o que ela faz é literatura de não ficção. Seu primeiro livro, "O Lugar", surpreendeu leitores e deixou críticos em compasso de espera.
Com uma linguagem simples, que ela mesma afirma ser “neutra”, Ernaux narra a história do pai, um “eterno operário” e seu trabalho para subir pelo menos alguns degraus na escala social francesa ao tornar-se dono de um café-mercearia em Yvetot, que ela identifica apenas como “Y”, e ser praticamente o único da família a ser “dono de alguma coisa”. A França de Ernaux é outra. Muito diferente da retratada por Proust com seus salões de burgueses desocupados, cuja única preocupação parecem ser as noites e as conquistas.
"O Lugar" foi imediatamente reconhecido pelos leitores. Vendeu 950 mil exemplares e foi traduzido para vários países. No Brasil, a tradução da obra da escritora chegou 30 anos mais tarde, em 2019, quando a editora Fósforo começou a lançar seus livros.
Ernaux chamou também a atenção da crítica especializada que de início olhava atravessado para uma literatura que parecia apenas “fincada” nas lembranças. Aos pouco, porém, a memória de Ernaux transfigurada em texto literário alçou novas contribuições às literaturas francesa e contemporâneas, exigindo da crítica uma leitura para além da autobiografia e da autoficção.
A própria autora se encarrega de definir sua literatura. Numa entrevista concedida ao jornal Nexo, em 2019, quando foi lançado no Brasil, o livro "O Lugar", ela disse que o termo “autoficção” não lhe dizia “respeito”: “Comecei a escrever nos anos de 1970, quando não se falava em autoficção. Eu escrevia na primeira pessoa e (minha literatura) era autobiográfica. A autoficção veio 20 anos mais tarde, não corresponde ao que eu faço. Não há nada inventado no que eu escrevo”. A repórter insiste: Nunca? Ernaux responde: “Nunca”.
A convicção de não inventar nada nas memórias ainda é motivo para dúvidas, no entanto, em "O Lugar", ela conta que começou a escrever um romance sobre a história do pai, até chegar à conclusão de que não seria possível: “... tive uma sensação de mal-estar. Só há pouco percebi que escrever um romance é o impossível. Para contar a história de uma vida regida pela necessidade, não posso assumir, de saída, um ponto de vista artístico, nem tentar fazer alguma coisa 'cativante´ ou 'comovente´, escreve Ernaux.
Um dos pontos centrais da literatura da escritora francesa é o diálogo incessante que ela faz com os leitores sobre sua própria escrita e as escolhas de linguagem, mesmo que esses leitores não sejam versados na dissecação do texto literário. O que a banca sueca chamou de “acuidade clínica”.
Em "O lugar", por exemplo, ela expõe, com naturalidade, o método de usar a memória em torno de uma linguagem direta e simples. “Nada de memória poética, nem de ironia grandiloquente. Percebo que começa a vir com naturalidade uma escrita neutra, a mesma escrita que eu usava em outros tempos nas cartas que enviava aos meus pais contando as novidades”.
Primeiro livro publicado de Annie Ernaux na França em 1983. “O Lugar” vendeu 950 mil exemplares, foi traduzido em vários países, tornando Ernaux autora de um “clássico moderno”. Em “O Lugar”, a autora expõe a vida do pais, operário e uma dona de casa que deixam o interior da França.Ernaux cresce nesse ambiente e o revisita de uma forma sincera, expondo todo o desconforto sentido pelo pai e por ela mesma.
O livro de Annie Ernaux começa narrando o dia que seu pai tentou matar sua mãe com golpe de machadinha que usava para cuidar das plantas do jardim. A autora tinha 12 anos quando isso aconteceu. A forma como Ernaux trabalha a memória não deixa dúvidas de que o fato central da trama lhe foi incompreensível por vários anos encerrando-a numa expectativa de tragédia familiar. Mais uma vez, a autora volta-se para seu núcleo familiar para falar de vários aspectos da vida francesa.
Não importa a idade que tenha o leitor ou leitora quando enfrentar o desafio de ler Os Anos, de Annie Ernaux. A obra de uma das principais autoras francesas da atualidade é um convite para se analisar como o tempo se encarrega de deixar suas marcas na vida de forma impessoal e particular. No caso de Ernaux, nascida em 1940, ele encara as mudanças vividas no País e em sua própria trajetória pessoal. O tom autobiográfico da obra traz uma linguagem precisa para dar conta dos principais eventos do século XX.
Um aborto. A decisão da jovem Annie Arnaux após engravidar do namorado aos 21 anos é o ponto central da escritora, que muitos anos depois revira as emoções para narrar um dos fatos mais importantes da sua vida. Em O Acontecimento, o aborto que anos depois foi incorporado à vida das francesas, era uma decisão interditada na juventude de Ernaux.
Em “Os anos”, Ernaux avisa aos leitores que “Todas as imagens vão desaparecer”. Enquanto ela própria desfia fragmentos de lembranças que compõem cenas que recolhe das lembranças de criança, filha de operário, em Yvetot, e das memórias de jovem e adulta “burguesa”.
“As palavras também desaparecerão, todas elas de uma só vez”, vaticina a escritora, enquanto as usa para dar vida às fotos sépia que mostra uma bebê, depois uma garotinha, anos mais tarde uma menina de 12 anos e com elas uma vida captada num mundo em que Ernaux vai aprendendo a viver, empanturrada das cenas que luta para se distanciar até o momento em que retorna a cada uma delas para revivê-las em palavras sem aparas. A pobreza da família, a guerra, as limitações, o pós-guerra, a vontade de viver, a língua culta que se estabelecia substituindo o patoá, como marco para negar as origens.
De acordo com a escritora e ensaísta Natália Timerman, a literatura de Ernaux criou uma nova forma de se analisar fatos biográficos na literatura, distinguindo-os da autobiografia, quando o objetivo é narrar a vida por si só, ou da autoficção, quando autores usam fatos da vida pessoal para um mergulho intimista em si mesmo. Segundo explicou Natália durante o curso “Encontros entre autobiografia e ficção”, o crítico francês Dominique Viart, no livro “La littérature française au présent” define a obra de Ernaux como “narrativas de filiação”.
A nova possibilidade de interpretação defendida por Viart assume a ideia da narrativa do outro como “desvio necessário para chegar a si, para se compreender como herança”. É um tipo de narrativa que dispensa preencher lacunas, cronologia, e opta pelo fragmentário. “A teoria de Viart ilumina a literatura contemporânea e as novas formas da escrita de si”, afirma Natália Timerman, autora de "Copo Vazio".
Ernaux deixa os críticos de lado e segue decifrando sua própria literatura seja na forma seja no conteúdo. “Mais do que autobiográfico, (o que eu faço) são livros de não ficção, em que o material é o real, a realidade. Mas o texto precisa de uma forma, que eu busco por muito tempo, e que o torna literário”.
Encontrar a forma é um dos pilares da obra de Ernaux, cujos episódios da vida pessoal e do mundo em volta não devem ser lidos como uma sequência, mas como textos únicos. “Creio que minha memória individual está sempre conectada com o mundo, com o que se passa nele, com a história, com as canções. Então, para mim. memória íntima e coletiva se cruzam”.
O romancista, ensaísta e crítico literário, Silviano Santiago, 86 anos, ganhou a 34ª edição do Prêmio Camões conferido pela Fundação Biblioteca. É autor de “Uma Literatura nos Trópicos” (ensaios) e do romance “Mil rosas roubadas”, entre outros. Já recebeu vários prêmios literários como o Jabuti e o Oceanos.
A venda para os ingressos da Flip 2022 começa nesta segunda-feira, 31 de outubro. O preço para cada uma das 20 mesas custará R$ 120 e terá uma cota para estudantes e pessoas acima de 60 anos. A Flipe acontece entre os dias 23 a 27 de novembro. A escritora Maria Firmina dos Reis é a escritora homenageada de 2022. Ela é a primeira escritora negra e nordestina a receber homenagem na Flip.
Leituras reunirão reportagens, entrevistas e resenhas sobre o universo dos livros, autores e mercado editorial