"O percurso de vida do Chico conta a história do Nordeste: sair, buscar, voltar, batalhar", resume a pesquisadora e curadora Flávia Muluc. A especialista fala sobre Chico da Silva, nascido no Acre em ano indefinido (entre 1910 e 1922), filho de uma migrante cearense e um indígena peruano.
Um dos principais artistas do Ceará, Chico tem como marco na trajetória a criação de uma experiência coletiva, formativa e afetiva que estremeceu os cânones das artes entre os anos 1960 e 1980: a Escola do Pirambu, na qual crianças e adolescentes da vizinhança, em especial Garcia, Ivan, Babá, Claudionor e Chica, construíram em conjunto uma obra celebrada e reconhecida em "Chico da Silva e a Escola do Pirambu", exposição em cartaz na Pinacoteca do Ceará.
O Pirambu, bairro litorâneo da capital cearense, foi onde a mãe de Chico nasceu e de onde partiu para a Amazônia em um dos fluxos migratórios centrais da história do Ceará, remontando às grandes secas do fim do século XIX e início do século XX, como contextualiza Flávia em visita guiada ao Vida&Arte.
No novo estado, ela conhece o companheiro, se casa e tem um filho, Chico. A família migra para o Ceará e se instala no Pirambu, onde o menino cresce e se inicia na arte tendo carvão e giz como instrumentos e muros e paredes de casebres como suportes.
"A gente tem essa foto do Chico que mostra como ele começou. Ele tinha desejo de se expressar e começou a fazer esses trabalhos nos muros na Praia Formosa, no Pirambu", destaca a curadora. O retrato foi feito pelo artista suíço Jean-Pierre Chabloz que, nos anos 1940, dá os primeiros papéis e guaches ao artista.
Os desenhos iniciais em telas circulam o Brasil e a Europa a partir de Chabloz e fazem do artista ainda mais reconhecido. O ápice dessa trajetória ocorre nos anos 1960. De 1961 a 1963, Chico trabalha no recém-inaugurado Museu de Arte da UFC. Em 1963, institui ateliê na própria casa, no Pirambu, no que é a gênese da Escola.
Já em 1966, tem obras levadas à Bienal de Veneza mesmo sem ser representante oficial do Brasil e consegue o reconhecimento do evento, que cria um prêmio de menção honrosa.
"Chico é uma ecologia de saberes. A obra mostra a luta pela sobrevivência mas, mais do que tudo, a afirmação da vida na beleza, diversidade, dificuldade. Isso é o que todo mundo viveu ali no Pirambu. Com essa obra, ele transforma a vida de um bairro, e de várias pessoas que nunca imaginaram desenvolver a sobrevivência, a partir do ofício da arte", avalia.
Enquanto trabalhou no Museu de Arte da UFC, entre 1961 e 1963, Chico utilizava a estrutura da instituição como ateliê. Ao deixar a trabalho, começou, ainda em 1963, a produzir em casa, o que chamou a atenção, em especial, das crianças e adolescentes da vizinhança. "Ele não falou ‘vamos nos matricular’, é um evento orgânico”, define Flávia Muluc. “De repente, tem (no bairro) uma pessoa andando de linho branco, pintando quadros coloridos, com imprensa na porta. Causa frisson, as pessoas querem entender que ofício era aquele que deu àquela pessoa da comunidade outro status”, explica a pesquisadora.
“A gente chama de Escola do Pirambu esse primeiro núcleo de cinco artistas que pintam junto com o Chico”, define Flávia, referindo-se a Garcia, Ivan, Babá, Claudionor e Chica. Dos cinco, o primeiro é o único ainda vivo. O processo da produção artística nessa configuração se tornou essencialmente coletivo. Chico ensinava técnicas de pintura e desenho aos alunos e eles ajudavam o artista na intensa produção de quadros. “A Escola contribuiu com novos elementos, traços e narrativas para a obra do Chico. Eles deram a ele o acolhimento e a estrutura para que continuasse produzindo e influenciaram a obra”, afirma. À fauna de Chico, os meninos somaram galos, dragões, borboletas. “O Chico é universo coletivo do começo ao fim. Ele fez política cultural há 50 anos. Se a gente tivesse um Chico em cada bairro, ia ter escola de arte na cidade inteira”, sustenta Flávia.
A configuração coletiva foi, no entanto, alvo de questionamentos. “A mídia teve uma perseguição intensa à Escola, porque naquela época não havia condições de compreender um fenômeno de arte coletiva”, avalia Flávia. A imprensa e o circuito da arte questionavam a autoria das obras, o que foi fortalecido por um esquema de falsificações empreendido por marchands e comerciantes. “Eles viram oportunidade de aumentar os ganhos e começaram a abrir oficinas paralelas nas próprias casas, para onde chamavam os meninos para pintar e o Chico para assinar”, explica Flávia. “Vejo essa obra do Chico e dos meninos como um trabalho muito comunitário, solidário. A corrupção do processo não foi feita no Pirambu, mas sim pelos comerciantes e críticos de arte”, defende a curadora. Um gesto marcante de resposta às críticas ocorreu em 1977, época em que o artista era perseguido e o coletivo havia se desarticulado. O grupo de pesquisa do qual o artista Hélio Rôla fazia parte, que buscava valorizar a obra de Chico e da Escola, inscreveu no Salão de Abril a obra-performance “Homens Trabalhando”. Ela consistia em um grande painel pintado ao vivo, ao longo de oito dias, por Garcia, Ivan, Babá, Claudionor e Chica. “A ideia era mostrar e revelar para quem estivesse lá o trabalho harmônico do Chico com os cinco integrantes”, destaca Flávia.
“Se você me perguntar ‘o que é do Chico da Silva e o que é da Escola do Pirambu?’, (a resposta é que) a gente trata como os híbridos. Para entender Chico da Silva, temos que entender esse hibridismo”, explica a curadora. “Eu arriscaria dizer que 90% das obras que a gente tem notícia que existem do Chico da Silva são obras híbridas, que têm a participação da Escola do Pirambu. Pouquíssimas, raríssimas são as que ele fez sozinho do começo ao fim. Hoje, essas obras híbridas são comercializadas mundo afora, então reconhecer a escola é fundamental para que a gente possa fazer justiça”, elabora Flávia. A pesquisadora lembra de uma conversa que teve em 2012 com Garcia, Babá e Claudionor, que falavam “sobre o desejo de continuar sendo artistas, mas o campo artístico de Fortaleza não deixava”. “O medo da grande burguesia artística era que eles, ao assumirem as autorias, levassem a uma desvalorização das obras. O pessoal que possuía os ‘Chicos puros’, como falavam, estava preocupado com o que tinha — sendo que, pelo fato de ser coletivo, não perderia o valor”, argumenta. “Quando a gente assume ‘Chico da Silva e a Escola do Pirambu’, está assumindo esse processo coletivo de fazer arte, assumindo que o Chico da Silva é muito mais do que um pintor; é um movimento, representante de um fenômeno muito singular nas artes visuais do Brasil”, aprofunda.
José Garcia de Santos Gomes nasceu em 15 de março de 1951. Era ainda menino quando Chico da Silva estabeleceu ateliê no Pirambu, em 1963. As casas dos dois se correspondiam pelos fundos e a proximidade era anterior à arte. "Conhecia ele da rua. Sabia que o Chico trabalhava, antes de aparecer como artista, consertando guarda-chuva e fazendo fogareiro", lembra Garcia. "Quando comecei a ir lá não era trabalhando, ia só observar. Vinha do colégio umas cinco da tarde e ia lá porque achava bonito ele pintando aquelas figuras, cobras, pássaros, essas coisas todas", explica. Antes do contato mais profundo com Chico, gostava de desenhar. "Até na capa dos meus cadernos, era navio, jangada… Mas a questão da pintura, da tinta, foi com o Chico", diz.
Garcia arrisca que começou a produzir junto com o artista por volta de 1965. "O incentivo foi do Chico. Um dia ele me perguntou: 'Você quer aprender?'. 'Quero, sim!'. 'Pois vou lhe ensinar'", cita. Os meninos, ele lembra, faziam de tudo, mas um dos ensinamentos mais marcantes foi sobre técnicas de pintura. "Aprendi do modo mais difícil, porque ele trabalhava com cartolina pregada na parede. Para você pegar a tinta de baixo, tendo cuidado pra não escorrer… (risos) É difícil!", atesta. "Às vezes escorria, aí ele dizia 'tem nada não, passa o algodão bem ligeirinho!' ou 'no lugar, desenha um besourinho' (risos). Sempre tinha uma solução", se diverte.
Em meio aos questionamentos à Escola do Pirambu, houve perseguição da mídia ao grupo e ao próprio Chico. "A imprensa queria flagrar a escola trabalhando lá no Chico para acabar com ele. Tinha muita gente que dizia que ele nunca pintou, essas conversas", conta. As obras eram compostas por contribuições de todos, mas com Chico como "maestro". "As figuras quem desenhava ou era ele, ou era o Claudionor, que criava os dragões, cobras, serpentes. O Chico desenhava, cansei de ver ele desenhando cobra, pássaro, peixe, só que não tinha a facilidade de fazer dobra, volta, curva. Era uma habilidade do Claudionor, que era um bom desenhista", destrincha. Sobre a experiência de "Homens Trabalhando", de 1977, Garcia relembra: "Quando decidimos fazer esse painel, era uma homenagem ao Chico. Trabalhamos sempre debaixo da guarda e orientação dele", afirma. "Muita gente já me fez essa pergunta: 'Quais quadros você considera autênticos do Chico?'. Tem dois tipos que eu considero", começa a responder. "O primeiro tipo são os que ele fez, pintou. O segundo são os que nós fizemos debaixo da visão dele. São autênticos, também, porque ele estava lá", atesta.
Remanescente do coletivo, Garcia reconhece nos quadros da exposição as contribuições de cada membro da Escola. "Cada um tinha as próprias características, né? Eu identifico porque cada um tem seu estilo". A exposição traz, também, obras feitas pelos cinco integrantes de maneira independente, ainda que profundamente marcada pela estética e influência de Chico. "É uma diferença (entre elas) que não foge da mesma temática", compreende. "Tem a diferença que um é mais delicado, outro mais colorido. Eu gosto mais colorido, cores vivas", reconhece. Nos primeiros anos de trabalho com Chico, Garcia conseguia se sustentar da arte, mas o casamento e a paternidade o levaram a buscar outra renda. "Não podia ter que pintar e ir atrás de alguém que comprasse pra poder comprar leite pro menino. E se ninguém comprasse?", explica. Foi para São Paulo e teve profissões "que não tem nada a ver com pincel, nem tinta": açougueiro e trabalhador de fábrica de bolsas e cintos. Voltou "devagarzinho" para a arte, já com 50 anos. "Saí do emprego e, nessa idade, você não tem nem profissão, nem se aposenta. Comecei a fazer quadros, levando pro Mercado Central. Foi daí que começou a virar profissão realmente", define. No auge da pandemia, com a ajuda de Hélio Rôla, conseguiu vender cerca de 50 obras. "Hoje, pra mim, tá como profissão. Tenho uma aposentadoria, que é até pecado dizer quanto é (risos), mas dou graças a Deus pelas vendas, pelo reconhecimento, principalmente agora que não tem mais ninguém vivo. Rapaz, vou pedir a Deus pra ficar vivo!", ri-se.
Chico da Silva e a Escola do Pirambu