Um grupo de fãs aguarda uma das primeiras apresentações de uma nova banda no palco da Casa de Badalação e Tédio, sala do Teatro Ruth Escobar, em São Paulo. Os três integrantes sobem ao palco revestidos por glitter e o vocalista, com o peito desnudo, usa apenas uma tanga nos quadris e um lenço na cabeça. Os acordes anunciam o início da canção, intitulada "Mulher Barriguda", interpretada com timbre único e movimentos provocativos.
O cenário ambientado em dezembro de 1972 e descrito no livro "Primavera nos Dentes" (2023) leva o público ao delírio. Este é o começo do fenômeno vivido pelo Secos & Molhados, grupo que obteve sucesso meteórico durante o curto tempo de atuação na formação composta por João Ricardo, Ney Matogrosso e Gérson Conrad. Em meio à repressão da ditadura militar, o coletivo surge com viés transgressor com performances inspiradas em grupos teatrais, letras baseadas em poemas e melodias desenvolvidas a partir de múltiplos referenciais.
"O grupo tem a característica de unir universos e, ao mesmo tempo, conduzir uma revolução cultural. O grande legado é uma ruptura de gêneros e padrões", analisa o pesquisador Flávio Queiroz, professor universitário com doutorado em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). A nova dinâmica do grupo ganha força no início da década de 1970, período da ditadura militar no Brasil então comandado por Médici (1905 - 1985). É neste contexto que o estudante de Jornalismo João Ricardo, filho do poeta e jornalista exilado João Apolinário, decide tentar mais uma vez no mundo da música.
Ele decidiu convidar o estudante de arquitetura Gérson Conrad, então músico iniciante com influência dos Beatles e Crosby, para participar da nova iniciativa. Por fim, a cantora e compositora Luhli apresentou Ney de Souza Pereira aos demais componentes. Diferente dos outros, Ney não foi criado em uma realidade típica da classe média. O futuro astro da cultura brasileira tinha resquícios de uma infância conturbada e de uma juventude marcada pelas vivências de uma vida nômade, dividida entre empreitadas artísticas em Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. A fusão de experiências dos três resulta em uma amálgama cultural que emerge a partir de álbum homônimo que completa 50 anos em agosto de 2023.
Gravado entre maio e junho de 1973, o LP "Secos & Molhados" foi lançado sob o selo da gravadora Continental, com produção de Moracy do Val e direção artística de Júlio Nagib. O fator surpreendente do trabalho já é disposto na capa, composta a partir de arte fotográfica de Antonio Carlos Rodrigues e layout de Décio Duarte Ambrósio. A imagem mostra a cabeça de quatro músicos - o baterista Marcelo Frias deixou a agrupação antes do lançamento do disco - em bandejas, ao lado de alimentos e bebidas, como se fossem parte do banquete antropofágico. Já as 13 faixas combinam influências do rock com blues e uma alcançam uma certa proximidade do pop com melodias simples.
O primeiro sucesso popular do álbum pode ser considerado a canção "O Vira", com acordes apoiados na guitarra elétrica e título em alusão ao gênero musical e coreográfico de Portugal. A letra, com elementos folclóricos, ecoava certa dubiedade: "Vira, vira, vira homem/ Vira, vira/ Vira, vira, lobisomem". Também conquistou os ouvintes a música "Rosa de Hiroshima", oriunda de um poema de Vinícius de Moraes: "Pensem nas feridas como rosas cálidas/ Mas não se esqueçam da roda/ Da rosa de Hiroshima". Outros hits, como "Sangue Latino", alavancaram a carreira dos artistas e consagraram o LP na quinta posição da lista dos 100 maiores discos da história da música, ranking realizado pela revista Rolling Stone.
Após a divulgação do disco que alcançaria 1 milhão de cópias, Secos & Molhados tomou conta das rádios, dos programas de televisão e dos palcos. A obra de caráter singular alçou o grupo para um patamar que, até agora, permanece único. "O primeiro EP tem um marco atemporal pela sonoridade do grupo, os arranjos e as composições. É um primor artístico que teve em 1973 e 1974, uma rápida passagem de consistência muito forte", opina o pesquisador.
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