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Com recentes fechamentos, setor de bares e restaurantes vive ano difícil
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Com recentes fechamentos, setor de bares e restaurantes vive ano difícil

Fechamentos de points da boemia evidenciam desafios para o setor de bares e restaurantes na Capital; especialistas analisam cenário de 2024
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Com fechamentos recentes, setor de bares e restaurantes terá 2024 de desafios (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Com fechamentos recentes, setor de bares e restaurantes terá 2024 de desafios

Na última semana, dois fechamentos surpreenderam aqueles que frequentam a vida boêmia de Fortaleza: o Gandaia Club e o Serpentina Bar anunciaram que vão encerrar suas atividades no mês de maio. Estes dois casos, no entanto, não são isolados e representam uma realidade de muitos estabelecimentos Brasil afora.

O momento para o setor não é animador. No início do ano, o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse) foi encerrado e os impostos federais para bares e restaurantes voltaram a ser cobrados — tanto o de lucro presumido quanto o de lucro real.

O pagamento de dívidas de impostos, que haviam sido congelados durante a pandemia, também voltou a ser requerido, sendo necessário pagar com “multa, juros e correção”. Taiene Righetto, presidente da Associação brasileira de bares e restaurantes (Abrasel), no Ceará, afirma que o setor está em uma “situação caótica”.

“Na verdade, nossas pesquisas vêm mostrando que, desde que passou a pandemia, a gente vem enfrentando grandes problemas para se recuperar, principalmente com dívidas de impostos”, revela.

Uma nova versão do Perse foi votada e aprovada pela Câmara dos Deputados e segue para o Senado. O novo modelo, entretanto, só beneficiará apenas 5% do setor no Ceará, segundo Taiene.

Ele aponta outro dado preocupante: os fechamentos que aconteceram no primeiro trimestre deste ano já superam os do ano passado inteiro. O cenário, porém, não é uma surpresa para a Associação, que vinha sinalizando essa possibilidade, ela só “está começando a acontecer”.

Apesar de não ter um imposto estadual diretamente para o setor como o que ocorre em âmbito federal, a elevação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) afeta diretamente na compra de bebidas e alimentos. “O Estado aumentou o ICMS e quando ele aumenta, seja combustível ou insumos, eles acabam encarecendo todos os insumos dos bares e restaurantes”, explica.

Mas a questão dos impostos, pontuados por Taiene, é apenas uma parcela da soma final. O economista Alex Araújo relembra que um fator importante é a sazonalidade do setor, que acaba entrando na conta como um desafio para a gestão.

“Ele [o estabelecimento] é obrigado a pagar o salário de 8 horas do trabalhador, pagar o aluguel integral, independente do atendimento ser concentrado em determinados horários”, lista.

Com a pandemia, este padrão de rotina sofre uma mudança brusca. Por um tempo, estabelecimentos precisam fechar e isso impacta em seu caixa. O próximo passo é a abertura gradual, o que não minimiza a rachadura que já havia sido aberta e muitos fecham meses depois

Com a volta total pós-emergência global, timidamente as coisas parecem voltar para seu lugar, mas isso não depende apenas dos bares e restaurantes: o público apresenta mudanças em sua forma de consumo. “Houve uma mudança de hábito com relação à alimentação fora do domicílio”, sustenta Alex.

“Muitas pessoas durante a pandemia desenvolveram o hábito de cozinhar em casa, então você teve uma mudança no mercado e que esse setor ainda está se adequando”, continua.

Para além da mudança de consumo, o poder de compra que o público apresenta atualmente é outra interferência, já que houve mudanças no orçamento familiar.

“O endividamento, antes da pandemia, comprometia em média 30% da renda mensal das famílias com o pagamento dessas dívidas. Esse percentual subiu para mais de 40%. Então, o orçamento familiar disponível para o consumo corrente diminuiu”, exemplifica Alex Araújo, e acrescenta que o alto custo do consumo fora de casa tornou as famílias mais seletivas.

Taiene corrobora nos pontos apresentados, afirmando que as pessoas também demonstram um movimento de permanecer mais em casa. “Elas estão segurando um pouco mais, ainda não estão confiantes como antes da pandemia, em sair e gastar em bares e restaurantes”, analisa.

Impostos, mudança de consumo, poder aquisitivo — todos eles não podem ser falados sem citar a inflação. O presidente da Abrasel Ceará relembra que a inflação, apesar das notícias de ela estar caindo ou controlada, ainda é alta. “Os bares e restaurantes foram os que menos repassaram a inflação de alimentos [nos preços], porque se estamos nessa situação e repassarmos preço, isso piora ainda mais”, declara.

As projeções para os próximos meses de 2024, na visão de Taiene, não são positivas. Ele acredita que será um ano com “muitas falências”. “Até porque muitos que abriram recentemente não vão conseguir ficar no mercado, principalmente os menos estruturados”, afirma.

“Vai ser um ano muito difícil, muitas empresas ainda vão quebrar e vamos ter que trabalhar muito esse ano para estruturar elas, para que consigam realmente ter uma gestão”, completa. (Beatriz Teixeira)

FORTALEZA-CE, BRASIL, 05-05-2023: Vladia Soares. Deixa comigo bar, Bar de reggae, fotos para Vida & Arte. (Foto: Aurélio Alves/O Povo)
FORTALEZA-CE, BRASIL, 05-05-2023: Vladia Soares. Deixa comigo bar, Bar de reggae, fotos para Vida & Arte. (Foto: Aurélio Alves/O Povo)

Donos de bares e boates em Fortaleza refletem sobre desafios: "Nós por nós"

“Para manter um espaço hoje em dia tem que ter muita força de vontade. Tem que querer muito. Em um bar independente, temos que nos reinventar todos os dias”. O diagnóstico é feito por Vládia Soares, gestora do Deixe Comigo Bar, localizado na rua Castro Alves, bairro Joaquim Távora.

Ela se junta a outros gestores ouvidos pelo Vida&Arte que elencaram dificuldades enfrentadas por empreendedores para manutenção de estabelecimentos em Fortaleza. Uma delas é a falta de apoio dos órgãos públicos para bares independentes, além da quantidade de impostos cobrados dos comerciantes. O assunto voltou à tona após o anúncio de encerramento de atividades do Gandaia Club e do Bar Serpentina.

“Somos nós por nós. Temos que dar nosso melhor, nos reinventarmos diariamente, porque acredito ser isso que faz o rolê acontecer e gerar fluxo para as portas estarem sempre abertas”, aponta. Ela lembra da atmosfera da noite fortalezense na rua do Deixe Comigo Bar quando o espaço foi aberto, em 2017.

Ela caracteriza a Castro Alves da época como “quase um Fortal” devido ao movimento na rua, com a presença de estabelecimentos como Toca do Plácido, Abaeté e Biroska do Ítalo. A frequência diminuiu, principalmente após a pandemia. Para Vládia, permanecer com o Deixe Comigo Bar foi um ato de resistência.

A gestora cita locais como o bar The Lights, sediado atualmente na avenida da Universidade, no bairro Benfica. Ele foi criado por Thalia Freitas há nove anos. O contexto do surgimento do The Lights era o “final do auge” das boates em 2015 e com muitas calouradas na Universidade Federal do Ceará (UFC).

Houve, assim, uma “movimentação em relação a festas públicas independentes” que aconteciam em pequenos espaços, ruas ou praças. A rua Instituto do Ceará foi a primeira “casa” do The Lights e o bar se tornou referência nesse movimento. Ao longo desses anos, os desafios foram vários, mas os principais se tornaram repetidos: a falta de segurança e falta de parceria entre órgãos públicos.

“Fortaleza é uma cidade cheia de talentos e gente com vontade de fazer seus projetos chegarem nas pessoas. Através do meu bar, fizemos festivais, ocupações/intervenções artísticas, promovíamos aulões no meio da rua aos domingos, jogos de carimba, apresentações teatrais e nunca obtivemos apoio dos nossos gestores. Fortaleza é uma cidade maravilhosa, mas infelizmente não veem a nossa movimentação e parece que não acreditam no potencial que espaços como o meu tem para o estímulo sociocultural”, afirma Vládia.

Há três anos, o The Lights funciona em um ambiente privado, com segurança e limite de público. Essa foi a maneira encontrada por Thalia “para continuar e ter retorno com o investimento ao longo desses anos”.

“Para manter um espaço maior, é necessário mais recurso, mas repassar isso ao consumidor é difícil, pois precisamos agradar. Então, às sextas temos entrada gratuita, promoções de bebidas e DJs variados; sábado, promoções de bebida e, no domingo, a gente promove eventos que acontecem cedo e terminam cedo também”, ressalta.

Daniel Meireles, CEO do Grupo Austin (que abriga empreendimentos como o Austin Pub, no Meireles, e a boate Living, na Aldeota) aponta que Fortaleza “tem um potencial turístico que ajuda os estabelecimentos”. O clima de “cidade festeira”, como caracteriza, já existiu quando o Austin Pub surgiu, em 2014.

Em sua avaliação, um dos motivos possíveis para fechamentos recentes de casas de Fortaleza foram dívidas que, agravadas pela pandemia, não conseguiram ser “equalizadas” mesmo depois de dois anos. Ele percebe que o mercado tem se reinventado e a clientela está mais plural.

“Acho que o público de Fortaleza cresceu e se diversificou ao longo dos anos. O desafio do empresário é entender que público quer, de fato, atingir, e acompanhar essas novas tendências que o público de Fortaleza vem trazendo”, define.

Outro desafio é a insegurança: “Sem dúvida, um dos grandes desafios que a noite de Fortaleza têm hoje — aliás, não só aqui, mas no Brasil — é a falta de segurança. Esse é um obstáculo a mais: convencer as pessoas a saírem de casa”.

Inevitavelmente, o tema da falta de segurança atravessa outros estabelecimentos que trabalham com grande público em Fortaleza, a exemplo da Budega do Raul, na Cidade dos Funcionários. Responsável pelo bar e restaurante, Raul Castro cita a importância de se ter segurança na Cidade para que os clientes se sintam confortáveis em visitar as casas que funcionam majoritariamente à noite.

Além disso, são imperativos fatores como a cobrança “abusiva” de impostos, burocracia para documentação e a “falta de incentivo” por parte do poder público. “Serviços de alimentos e bebidas, ou seja, bares e restaurantes, são responsáveis não apenas por empregos diretos, mas indiretos. Não há incentivos nem do Estado, nem da Prefeitura para que novos negócios se mantenham”, explica.

A Budega do Raul foi criada em 2012, em uma época na qual “os bairros começaram a ser independentes de polos gastronômicos como a Varjota”. De lá para cá, Raul percebeu o enfraquecimento do comércio de rua “com a imensa demanda de shoppings atualmente”, o que levou grandes empresas a migrarem para esses locais — assim, comércios de rua como no Centro ficaram “abandonados”. (Miguel Araújo)

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