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Moda com propósito: André Carvalhal reflete sobre consumo consciente
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Moda com propósito: André Carvalhal reflete sobre consumo consciente

Com cinco livros publicados, André Carvalhal foi de gerente de marketing de uma grande marca de moda nacional para orientador de projetos de impacto positivo
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André Carvalhal é escritor, consultor e orientador de projetos em marketing, diversidade e inclusão e sustentabilidade (Foto: Chico Cerchiaro/Divulgação)
Foto: Chico Cerchiaro/Divulgação André Carvalhal é escritor, consultor e orientador de projetos em marketing, diversidade e inclusão e sustentabilidade

Nas últimas semanas, não foi difícil se deparar nas redes sociais com vídeos e fotos de um lixão com toneladas de roupas usadas depositadas no Deserto do Atacama, no Chile. A quantidade de itens é tão grande que as imagens foram captadas por satélite.

Em paralelo, a sigla ESG (com significado traduzido para Meio Ambiente, Social e Governança) está em alta. No Google Trends, as pesquisas por ela subiram de 3 pontos em 31 a de março a 6 de abril de 2019 para 93 no mesmo período de 2024.

Para o escritor, consultor e orientador de projetos André Carvalhal, as transformações de lixões como o do Chile estão diretamente ligadas com os princípios da ESG. E tudo começa com um olhar duplo, voltado ao mesmo tempo para si e para o mundo.

André Carvalhal participa da primeira edição do Ceará está na Moda, em Fortaleza.(Foto: Jr. Panela/Divulgação)
Foto: Jr. Panela/Divulgação André Carvalhal participa da primeira edição do Ceará está na Moda, em Fortaleza.

O próprio Carvalhal passou por algumas mudanças. Estando por quase 10 anos à frente do marketing da marca Farm, ele afirma que foram necessárias algumas transições pessoais para haver também readequação profissional.

Hoje, seu trabalho é ajudar pessoas e empresas a terem um impacto positivo - seja ele no meio ambiente, na sociedade, na economia ou na cultura.

O POVO entrevistou o escritor em Fortaleza, durante a sua participação na primeira edição do Ceará Está na Moda, realizado entre os dias 23 e 25 de abril.

Para André Carvalhal, as marcas precisam se preocupar com preocupadas com o impacto que causam na economia, na sociedade, no meio ambiente e na cultura.(Foto: Jr. Panela/Divulgação)
Foto: Jr. Panela/Divulgação Para André Carvalhal, as marcas precisam se preocupar com preocupadas com o impacto que causam na economia, na sociedade, no meio ambiente e na cultura.


O POVO - O que, como e quando foi a sua “virada de chave” em relação ao mercado da moda?

André Carvalhal - Eu comecei minha carreira na publicidade. E aí, depois disso, num ciclo de sete anos, migrei pra moda. Tive uma experiência muito positiva de trabalhar em uma das maiores marcas do Brasil. Mas, depois de um tempo, comecei a pessoalmente sentir transformações na pele. Então, meu jeito de consumir começou a ficar diferente. A minha relação com as coisas à minha volta começaram a ficar diferentes. E aí fui buscar novas alternativas, novos caminhos. Nessa época comecei a fazer uma especialização em design para sustentabilidade. Foi quando, de fato, comecei a entender o impacto da nossa existência no mundo e de tudo aquilo que a gente consome, do que a gente produz. Isso foi o que fez com que eu, dentro da moda, quisesse buscar um caminho de trabalhar com menos impacto negativo e mais impacto positivo para o meio ambiente.

O POVO - É possível falarmos de moda e sustentabilidade na mesma frase?

Carvalhal - Eu particularmente não gosto da palavra sustentabilidade em uma frase. Eu acho que poucas pessoas entendem o significado disso, acho que é uma palavra que está desgastada pela falta de verdade e compromisso por parte de muitas empresas que usam esse termo. A forma como a gente vive hoje, como a gente foi levado a viver, ela é insustentável por si só. E o conceito de sustentabilidade precisaria abarcar uma série de coisas que sinceramente não acredito que a gente consiga praticar em diversas áreas da nossa vida, inclusive na moda. Mas eu acredito na moda com propósito, né? Esse é o tema do meu livro, e é a forma como eu gosto de falar, que é uma moda que tem uma intenção maior por trás das roupas e dos produtos que entrega. É uma moda que tem um compromisso de fato com a vida das pessoas e com a nossa existência como um todo.

O POVO - Como lidamos com o consumismo, principalmente com as novas gerações?

Carvalhal - Eu gosto muito do pensamento do (Zygmunt) Bauman, que diz que a gente nasce ser humano e logo a gente vira consumidor. A gente consome tudo! A gente consome conteúdo, informação, produtos, comida, a todo momento a gente está consumindo alguma coisa. O fato de consumir não necessariamente é ruim, mas a forma como a gente foi levado a entender o consumo como algo essencial para nos significar, para nos representar, um consumo que não questiona aquilo que está sendo consumido… Esse consumo sim, ele é um consumo ruim. As novas gerações nascem num ambiente já altamente degradado, com crises entrelaçadas em diversas áreas da nossa vida, não só crises ambientais, e essa geração nasce aprendendo na escola, às vezes dentro de casa, enfim, tendo acesso a um tipo de informação acerca dos impactos que são causados no mundo pela humanidade que as gerações mais antigas não tiveram. Agora, diante disso, cada pessoa reage de um jeito, de acordo com a sua vivência, com a sua experiência, com a sua bagagem, com os locais que ocupa, mas eu acho que existe uma possibilidade de hoje haver um novo tipo de consumo.

A Tucum é uma plataforma de conteúdo e comercialização de artes indígenas do Brasil(Foto: Reprodução/Instagram)
Foto: Reprodução/Instagram A Tucum é uma plataforma de conteúdo e comercialização de artes indígenas do Brasil

O POVO - Como você vê a relação da nova geração com as questões ESG?

Carvalhal - As gerações nascem já ouvindo falar sobre isso. E elas vão ser inseridas no mercado de trabalho que fala sobre isso, o que é muito importante. E por isso eu acho também que tem uma relação diferente com as pessoas que já vêm de um mercado onde não existia essa consciência. As marcas ainda precisam amadurecer muito nesse sentido. Eu, particularmente, acho que existe o lado bom das marcas se preocuparem cada vez mais e falarem sobre isso. Mas a gente também precisa reconhecer que existe muito oportunismo, muita gente se aproveitando disso.

Segundo André Carvalhal, o ato de consumir não necessariamente é ruim, mas a forma como ele é visto como essencial para nos significar,(Foto: Jr. Panela/Divulgação)
Foto: Jr. Panela/Divulgação Segundo André Carvalhal, o ato de consumir não necessariamente é ruim, mas a forma como ele é visto como essencial para nos significar,

O POVO - Na sua opinião, as empresas de moda têm se preocupado com questões ESG?

Carvalhal - A gente não tem como generalizar. Eu acho que existem marcas que já começaram, mesmo sem falar em ESG, mais preocupadas com o impacto que causam tanto o econômico, o social, o ambiental, o cultural, que também é muito importante, e que a sigla ESG, ela não abarca tanto. Tem marcas que entendem isso como um movimento de mercado e fazem para buscar um nicho, para buscar investimento, para ficar bem nesse mundo. Enfim, eu acho que tem de todos os tipos.

O POVO - Quais soluções você vê para a moda brasileira ser mais sustentável?

Carvalhal - Existem diversas alternativas. Algumas estão relacionadas à tecnologia, que tem a ver com democratizar formas de fazer pesquisas de materiais, pesquisas acerca de reciclagem, de como transformar, reaproveitar roupas, minimizar o resíduo.

Flavia Aranha produz roupas com tecidos orgânicos e tingimentos a partir de técnicas naturais(Foto: Reprodução/Instagram)
Foto: Reprodução/Instagram Flavia Aranha produz roupas com tecidos orgânicos e tingimentos a partir de técnicas naturais

Esses caminhos são importantes, mas precisam ser descentralizados e precisam ser acessíveis para que cada vez mais marcas usufruam. Existe uma parte de produção, que são máquinas mais eficientes, que economizam energia, economizam água, que tratam a água, que tem toda uma parte a ver com planta de fábrica e que também precisa se atualizar, precisa se modernizar. Existe uma forma também que é mais manual, e que tem a ver mais com como antigamente as coisas eram feitas, uma forma às vezes mais simples, mas mais respeitosa, que usam tecnologias e sabedorias ancestrais e que são capazes de causar impacto positivo, tanto ambientalmente, como socialmente e culturalmente.

O POVO - Para muitas empresas, ainda parece existir um abismo entre a realidade e o que realmente o ESG prega. Como aproximar expectativa e realidade?

Carvalhal - Não é fácil mudar, não é fácil transformar. A gente precisa ser realista em relação a isso. Existe uma urgência para que o mercado como um todo se transforme, não só o mercado de moda, mas diversas indústrias e áreas, mas a gente precisa levar em consideração que são indústrias e mercados que funcionam há muito tempo, que estão estruturados, enraizados de uma outra forma, com outro pensamento. Por outro lado, a gente já tem bastante conhecimento, experimentação, alternativas, caminhos. O primeiro passo é mudar a consciência, mudar de fato a forma de pensar de quem está à frente das marcas, de quem toma decisão, de quem faz as leis, de quem aprova as leis, de quem aprova os incentivos, de quem aprova as punições. Eu acho que isso precisa acontecer para que a gente consiga disseminar, verdadeiramente, democratizar, dar acesso a essas novas formas de fazer, de comunicar, de produzir e de consumir também.

A "moda com propósito", proposta por André Carvalhal, "tem uma intenção maior por trás das roupas e dos produtos que entrega"(Foto: Jr. Panela/Divulgação)
Foto: Jr. Panela/Divulgação A "moda com propósito", proposta por André Carvalhal, "tem uma intenção maior por trás das roupas e dos produtos que entrega"

O POVO - Você pode citar estratégias de ESG que você acredita serem as mais viáveis e reais para a moda brasileira?

Carvalhal - Gosto de pensar em movimentos, arranjos. O upcycling é um movimento interessante, que é você reaproveitar, sejam roupas, seja matéria-prima, sobras, estoques, excedentes. É reinserir no ciclo de produção coisas que já causaram o impacto para serem feitas e não estão mais no 'jogo'. É uma forma interessante, inteligente de ser sustentável, porque existe uma economia financeira e minimiza a necessidade de extrair novos recursos. Existem diversos modelos de negócio muito interessantes também baseados em economia circular, como brechó, aluguel de roupas, assinatura, porque também faz com que peças que foram produzidas já possam ser aproveitadas e utilizadas ao máximo.

O POVO - A moda foi banalizada?

Carvalhal - Eu sinto que a gente foi levado a pensar resolveria as crises do mundo e da moda através da quantidade e isso encaminhou para uma produção cada ver maior, ao buscar cada vez mais volumes. E aí não tem como a gente fazer volume, com a mesma quantidade de pessoas, com o mesmo tempo, com as mesmas horas de trabalho, sem que a gente se perca no processo. E aí eu sinto que muitas marcas começaram a olhar muito para fora, para muitas referências, para as tendências, e reproduzir o que já existe. Com isso a gente foi criando um mar de coisas, de roupas que as pessoas, muitas vezes, não estão nem precisando, o que acabou tirando o desejo de muitas pessoas que faziam moda, que consumiam moda. Mas acima de tudo, eu acho que isso criou uma mentalidade errada nas pessoas e de como é criar moda. Para não acumular de novo, toda vez que eu ganho alguma coisa, se eu não vou usar aquilo, eu passo já para uma outra pessoa e eu sempre procuro ver se eu tenho algo que eu não quero mais, que não tem mais sentido para mim, para substituir por aquela nova coisa. Então é um jeito de eu não ficar acumulando e de fazer aquilo circular em outras pessoas também.

A Pantys é uma marca de calcinhas absorventes que trabalha com sustentabilidade e empoderamento feminino(Foto: Reprodução/Instagram)
Foto: Reprodução/Instagram A Pantys é uma marca de calcinhas absorventes que trabalha com sustentabilidade e empoderamento feminino

O POVO - Além dessa dica, quais outras você dá para quem quer começar um consumo mais consciente?

Carvalhal - É questionar. E aí eu acho que tem um movimento que é questionar para dentro: 'eu realmente preciso dessa peça? De onde vem esse desejo? Eu vou usar isso? Isso funciona com as coisas que eu tenho? O quanto que eu vou usar isso?'. É perguntar porquê a gente está comprando aquilo e o seu sentido ou a prática. E perguntar para fora, investigar quem é a marca, como é que ela faz, onde aquilo foi feito, como aquilo foi produzido, pra onde que aquilo vai depois, se aquela roupa pode ser reciclada. Realmente é entender. É esse processo: questionar para dentro e questionar para a marca.

O POVO - Você ainda tem uma relação de amor com a moda?

Carvalhal - Eu tenho, é por isso eu continuo. Eu acho que eu sou um ativista da moda. Eu acredito na moda, no propósito da moda, e trabalho hoje por isso. Então todas as minhas consultorias, as minhas palestras, os meus livros, eles têm um propósito de trazer uma consciência diferente sobre a forma de fazer moda.

O POVO - Na palestra você falou que tinha um guarda-roupa de duas portas e que em um determinado momento ele cresceu para um quarto completo. O que ele é hoje?

Carvalhal - Hoje ocupo quatro portas de um guarda-roupa. Eu ganho muita coisa. Eu fui em São Paulo na Dodge, uma marca de alfaiataria. Comprei uma bermuda e eu fiquei pensando há quanto tempo eu não comprava uma coisa. Eu tenho essa facilidade de ganhar  itens das marcas que eu conheço, de amigos. Mas eu compro muito pouco, eu compro só o que de fato eu acredito que eu vá usar muito, que tem muito a ver comigo.

O POVO - Como é sua relação com a escrita? Você está planejando o lançamento de mais algum livro?

Carvalhal - Eu amo escrever e hoje me reconheço como escritor. Acho que a minha escrita vai além dos livros. Ela está presente no conteúdo das minhas redes sociais, em entrevistas, quando dou uma palestra. Eu sinto que eu estou escrevendo em todos esses momentos. Quando se trata de livros físicos, vim de um processo de cinco livros escritos em sequência. E hoje, por mais que sejam best-sellers e tenham sido indicados e finalistas em premiações, como o "Viva o fim", que foi finalista do prêmio Jabuti, eu sinto que são livros que ainda precisam circular, entrar mais na vida, na realidade das pessoas, das empresas. Tem livros que eu escrevi há quase 10 anos que são extremamente atuais. Tenho repensado muito também nessa necessidade de produzir cada vez mais. E de produzir o novo , o novo, o novo a todo momento. Então que eu tenho feito é revisitar os meus livros, atualizar e contextualizar com o que a gente está vivendo e eu fiz isso recentemente com o “A moda imita a vida” e o “Moda com propósito”.

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