Poeta novo (ainda) causa surpresa no mundo das letras. Poeta novo já estabelecido na vida e no mundo provoca quase um susto. No entanto, esse estado de suspense ao se ler "Pássaros de Giz", livro de estreia do publicitário Paulo Fraga-Queiroz, se desfaz ao longo da leitura dos 48 poemas que compõem a obra. Na verdade, a poesia sempre esteve por ali, rondando-o, desde os tempos de garoto enquanto frequentava a Parquelândia ou enquanto cursava Letras ou enquanto mergulhava nos livros e enquanto faz da publicidade uma forma de (também) talhar palavras.
Dia Nacional da Poesia: o que o gênero significa para poetas cearenses?
Talvez, por tudo isso, o livro do estreante já nasça investido de força e leveza poéticas. Entre elas - a força e a leveza - o trabalho do tempo nas mãos do poeta, que calcula com precisão o ritmo e os sons de cada verso no baile poético, tal como um Ettore Scola ao avesso. Dividida em três partes, a obra começa esquadrinhando a Cidade, explorando a paisagem, embaralhando as cores que emanam dos dias e das noites, perscrutando o vento. Segue desafiando a si mesmo num diálogo com a poesia na segunda parte do livro, e o conclui experimentando os sons como quem esboça desenhos que, depois, se transformam em quadros.
Na Cidade, onde tudo começa, o poeta mistura as memórias de menino com as sensações de homem feito para embalar em versos o sol e o mar, a brisa e o vento, a saudades e o amor, as cores e as texturas, os dias e as horas. Enfim, o tempo. No conjunto de poemas que compõe "O mar por perto", a composição de Paulo Fraga-Queiroz revela um artista da palavra com formão seguro na arte de entalhar os contrastes da natureza, criar relevos nos materiais que escolhe para esculpir versos, e trazer à tona imagens gravadas em metáforas. É assim em `Praieira é a cidade que me lava o coração´ quando ele diz: "Aberta em gomos/ a manhã se desnuda e cega desesperadamente todas as coisas e seres/ Ao longe, as cores barulham e paralelepípedos soam com vozes despedaçadas".
Em "Aridez" é possível quase tocar no quadro que salta do poema e revela as agruras da convivência com o sol que, se um lado faz do mar um espelho; de outro, castiga: "nada cresce neste pedaço de chão/ quando a cal do dia estende sua prece/ onde reina a falta/ onde impera o não/ o sol já solta seus dentes de cão". A delicadeza se estende compondo ora poemas curtos que ressoam e iluminam ao longe como em "Flamboyant", ora com poemas longos divididos (quase) em cantos como acontece em "Diáspora", onde o poeta ecoa a alma de uma cidade, no caso, a sua.
Nesta primeira parte do livro, um dos poemas mais tocantes é "Parquelândia". Se o título desnuda um quê de pertencimento do poeta, o poema em si crava no porto da memória uma saudade: "a igreja era redonda naquele tempo em que minha mãe me obrigava a ir à missa aos domingos". Era um tempo de criança sem pecado, continua o poeta: "naquele tempo achava esquisito/ mas ia e ficava dando voltas na praça que tinha em redor da igreja". Do movimento dá-se a poesia do presente: "ainda hoje vou lá/ ainda hoje estou aqui dando voltas".
LEIA TAMBÉM | Paulo Fraga-Queiroz é entrevistado no Memória O POVO
Nos primeiros poemas do livro, o "Pássaros de Giz" canta à janela do leitor. Na segunda parte da obra, porém, ele alça voo e revela o trabalho exigente da poesia. Pode-se dizer que em todo o livro desvendam-se as referências poéticas do autor. Estão ali, sussurrando baixinho, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond, Adélia Prado, Augusto dos Anjos, entre tantos outros. Paulo os escuta ao mesmo tempo que se afasta deles abrindo suas próprias veredas.
Em "Extremista", o poeta deixa escapar a dureza da labuta de transformar palavra em palavra poética: "diariamente na escrivaninha/ entregue à férrea disciplina/ um desses sujeitos meio rudes e quase sem simplicidade para a nulidade se prepara:/ boca, baque, bélicas palavras/ bomba como qualquer outra/ no silêncio elaborada/ ainda espera para explodi-la/ mas dentro de si já lançada/ - quem o bum branco da página escutaria?".
O amor, tema perene dos poetas, surge em "Pássaros de Giz" numa quase simbiose com a natureza, como uma força misteriosa que chega, permanece e, por vezes, parte de uma forma que talvez só os versos consigam explicar, com a ajuda de um "gato que esbarra e quebra um vaso na janela", como diz o poema "O coração por inteiro e o amor aos pedaços".
Por fim, este primeiro livro de poesia, se entrega ao experimento. Coisa que a crítica literária nascida em Viena, naturalizada norte-americana, Marjorie Perloff, em seu "Gênio não original", afirma ser uma das funções da poesia contemporânea. Em "Papagaio de Papel", terceira parte do livro, o autor sustenta a sonoridade e o ritmo poéticos, extrapolando o português ao brincar com o léxico de outros mundos linguísticos. O foco parece recair sobre a poesia e os poetas. A surpresa drummondiana de "Fusca, 1973" é apenas o início, porque o leitor vai se deparar com o irônico "The (face)book is on the table", e a homenagem aos poetas John Keats (inglês) e o William Yeats (irlandês) no poema "Den appetit kennt iwwert dem essen".
Dotado de força literária, "Pássaros de Giz" pensa, sente e se traduz poeticamente, como o autor afirma em "Línguas": "tanto penso e sinto/ entre palavra e silêncio/ esse labirinto". Após a leitura deste livro é possível dizer: bem sei o que um pássaro escreve fora da gaiola.
Lançamento do livro "Pássaros de giz"