Fogueira queimando, figurino matuto e, no alto, balões e bandeirinhas de todas as cores enfeitam as noites de junho. “O céu estava assim em festa, pois era noite de São João...” Pela música, dança e por seus sabores, o São João em 2020 já se transformou em saudade que, para muitos, é difícil de lidar.
A maior festa popular do Nordeste foi cancelada em vários estados diante da pandemia. A festividade, que marca o período de junho e adentram julho, envolve quadrilhas, culinária típica, brincadeiras e muitas outras tradições.
Herança da colonização portuguesa no Brasil, a tradição da quadrilha tem, na verdade, origem francesa e fez bastante sucesso nos salões da corte no começo do século XIX. Anos depois, incorporou novos elementos e logo passou a ser praticada nos bailes comemorativos aos santos do mês de junho: São Pedro, São João e Santo Antônio.
“No Nordeste a tradição dos festejos manteve-se como uma espécie de transbordamento das marcas rurais: de alimentação, congregação familiar, folias, danças e músicas. O São João é um transbordo de ritos, valores e formas simbólicas de cultivar a riqueza em meio às grandes carências”, explica Christian Dennys Monteiro, professor do Departamento de Geografia da UFC.
Com o passar dos anos, a quadrilha junina se profissionalizou. Entre 2017 e 2019, de acordo com a Secretaria da Cultura do Ceará (Secult), 328 grupos do Estado foram contemplados pelo edital Ceará Junino, que seleciona quadrilhas juninas de diferentes categorias para se apresentar em diferentes polos da festa no Ceará.
O título é o maior reconhecimento do Estado para os festejos e movimentou mais de R$ 6 milhões nos últimos três anos. Embalada pelo ritmo próprio do “Anarriê”, “anavantu” e “changê de damas”, as quadrilhas juninas precisaram, no entanto, recuar seus passos em 2020.
Para quem realiza o São João por meio da dança e todo o seu encantamento, atravessar o mês de junho sem a festa faz o coração apertar.
“É uma tristeza enorme, todos ficamos muito abalados com isso. Mas entendemos que a vida das pessoas em primeiro lugar deve ser preservada. Estamos na esperança de que tão logo seja resolvida essa situação de calamidade pública, e possamos nos organizar novamente junto com todos os colaboradores a planejar o São João de 2021”, projeta Alexsandro Nunes, presidente da Federação dos Eventos Juninos e Culturais do Ceará (Fejuc).
Em 2019, 50 Festivais na capital e no interior foram apoiados pela instituição, que atualmente agrega 160 quadrilhas de diversas partes do Estado. Com quadrilhas que variam de pequeno a grande porte, os eventos costumam reunir até 10 mil pessoas por dia.
Fonte: Federação dos Eventos Juninos e Culturais do Ceará (Fejuc)
Por Ana Mary C. Cavalcante
Jornalista, especial para O POVO
Por estes dias, uma companheira de palavras me revelou que não conseguia mais dizer. “Emudeci”, ela me escreveu diante de tantos vazios. Já são mais de 3 mil pessoas mortas pelo novo coronavírus, no Ceará; outras 34 mil, no Brasil; e além de 380 mil no mundo.
A festa acabou,
O povo sumiu,
A noite esfriou.
Quer ir para a praia, praia não há mais.
A vacina ainda não veio.
E tudo fugiu,
E tudo mofou.
Com o coração na mão, quer entregá-lo a alguém.
Já não há mais....
E agora, josés; e agora, marias?
Estranho protocolar as ausências, mensurar os sentimentos. E é preciso dizer de alguma forma, para não implodir por dentro. Se você gritasse... Mas você é canto (de passarim). Então, neste junho sem fogueira, sem Joaquim com Zabé, Luiz com Yaiá, Janjão com Raqué, na distância de tudo, naquele vão da sala de estar, junto com as memórias do caminho, essa minha companheira de palavras colocou um Cariri. Fitas em maneira de arco-íris, parecido quando Barbalha enfeita a Igreja Matriz; o artesanato do Crato em cima dos livros; a fé de Juazeiro pousando na parede. E aconteceu uma multidão, outra vez, carregando o Pau da Bandeira, na fotografia em preto e branco de Zé Rosa.
O espírito junino sempre vai haver, no Nordeste-resistência, porque ainda há o sonho, esse tempo da manufatura. Faça sol, ou faça chuva; por aqui, de pequeno, se aprende a semeadura.
Pois, querida companheira, neste silêncio (necessário, talvez, para encontrarmos as palavras perdidas), ontem eu sonhei que estava no sítio Casarão, da minha infância, dançando com meu benzinho numa sala de reboco. “No resfulego da sanfona, inté que o sol raiar”. As tias e os tios remoçados, os males anulados, ninguém mais no grupo de risco, até quem partiu tinha voltado. “Ai, meu Deus, se eu pudesse acabar a separação”.
Noite de chuva na madrugada, um sonho emendou no outro, e o arrasta-pé se espraiou pelo meio da rua Júlio César, que era feliz se o canal do Jardim América não transbordava, onde meu primeiro amor me coroou “rainha do milho”. Então, havia
“Meninos brincando de roda,
velhos soltando balão,
moços em volta à fogueira,
brincando com o coração
Eita, São João dos meus sonhos”...
Meus amores já vão longe, é verdade, mas não perco o amor de vista. O horizonte é mais à frente e, quem sabe, nós nos encontraremos ali. Sigo, atravessando mares.
Mas, acredita, companheira, de tanto sonhar, eu acordei com o cheiro do bolo de milho da minha mãe: “É pra Santo Antônio”, ela me disse, ofertando o que lhe ofertou minha avó, e a mãe da minha avó, e a avó da minha avó...
Dia 24 de junho, minha mãe já separou a receita, tem o bolo de São João e dia 29, o de São Pedro. Junho é todo perfumado por histórias ancestrais e, de menina, me contaram a maior de todas as histórias: a vida se refaz, sempre que uma vida se oferta a outra.
Sim, “a morte é destino de todo mundo”. Um sertanejo, sobrevivente do assassinato do pai, até disse mais bonito, porque disse com sentimento, que a morte “é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre”.
Sim, destino irremediável, mas se pode remediar a vida até a morte - com cuidado, com respeito, com compaixão, com esperança. Cada chance importa. O que não é destino de ninguém é desviver, senhor cidadão. Sem cuidado, sem respeito, sem compaixão, sem esperança, sem chance. Sem nem despedida; desaparecer.
A pandemia de Covid-19 cruza o planeta, desde dezembro, e atravessa este junho. É mesmo difícil dizer, quando esvaziaram as palavras. Acontece que ainda nos resta o grito e o canto, e a resistência porque há o sonho. Olha pro céu, meu amor, veja: o infinito. Vamos escapar por ali; nós, passarinhos.
Foi numa noite, igual a essa, que quem soube fez a hora. Também agora é proibido cochilar – até amanhecer outro tempo. Sigo o roteiro, mais uma estação. Que falta eu sinto de um bem, contra essa marcha do ódio. Mas olha pro céu, meu amor, que eu também vou olhar. Vamos, juntos, até o dia clarear.
Junho é sempre junho: acende a fogueira do meu coração. Amo. “E o coração, de repente, bota o sangue em alvoroço”. De novo, por dentro tudo se alumia. A alma, porque é liberta, avoa que nem balão proibido. Gosto do baião-de-dois-com-paçoca-e-vatapá, do milho verde, da pamonha, da cocada, do pé-de-moleque, do grude, do aluá. E quando se experimenta o gosto da vida, mesmo quando tem um pouco de cravo e canela, é difícil desgostar.
“Mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.”
Assim e além, sempre haverá dias de juntar amor e quermesse, juntar utopia e fé. Juntar o grito dos cantos do mundo, João Pedro e George Floyd. Refazer uma vida na outra e se recusar a morrer de morte matada. Resistir, (re)encontrar. Olha pro céu, meu amor, que eu também vou olhar. Vejamos o infinito. Há o belo em cada dia.
Neste junho desterrado, eu contraponho: vou anistiar as saudades. Vou colocar um Cariri nos vãos da minha casa, e um sítio Casarão, cheio de gente reinventada, e uma rua que venceu as enchentes. No isolamento ou nas solidões, é urgente revisitar a alegria, abraçar o que nos salva.
E viva Santo Antônio, São João, São Pedro!
Viva, viva, viva! (Até que a morte se faça destino, é direito de todo mundo não desviver
A pandemia cancelou o maior festejo popular do Nordeste