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"O esporte me fez virar gente", diz Ana Moser, estrela da 1ª medalha olímpica do vôlei feminino
Reportagem Seriada

"O esporte me fez virar gente", diz Ana Moser, estrela da 1ª medalha olímpica do vôlei feminino

ESTRELA DO VÔLEI | Medalhista olímpica relembra carreira vencedora, investe em trabalhos sociais e critica retrocesso em políticas específicas para o esporte
Episódio 1

"O esporte me fez virar gente", diz Ana Moser, estrela da 1ª medalha olímpica do vôlei feminino

ESTRELA DO VÔLEI | Medalhista olímpica relembra carreira vencedora, investe em trabalhos sociais e critica retrocesso em políticas específicas para o esporte
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O vôlei transformou a vida de Ana Beatriz Moser, uma das maiores jogadoras da história da modalidade no Brasil. Rodou o mundo atacando bola no pedaço de quadra das adversárias, foi destaque na conquista da primeira medalha olímpica do voleibol feminino tupiniquim, o bronze em Atlanta (1996), colecionou títulos na vitoriosa carreira marcada por dor e superação e fez parte da evolução do esporte.

Quando resolveu se aposentar das quadras ainda jovem, aos 31 anos, resultado das fortes dores causadas pela artrose crônica, ela partiu para outra missão importante. Era hora de fazer com que o esporte, responsável por impactar positivamente a trajetória da garota de Blumenau-SC, chegasse e transformasse a vida de milhares de crianças e adolescentes em vulnerabilidade social.

Com a ideia de esporte para todos, Ana criou o Instituto Esporte & Educação (IEE), que já atendeu 6 milhões de crianças e adolescentes e capacitou quase 50 mil professores e educadores em todo o Brasil.

Em entrevista ao O POVO, a medalhista olímpica relembrou a trajetória vitoriosa como jogadora, falou sobre a mobilização e os posicionamentos dos atletas brasileiros, a Confederação Brasileira de Vôlei (CBV), criticou o retrocesso nas políticas públicas voltadas para o esporte e narrou o trabalho exercido pelo IEE nas regiões periféricas do País. (Com Fernando Graziani)

O POVO - Como foi a sua infância e a sua relação com os pais e irmãos?

Ana Moser - Tive uma infância muito ativa numa época que se tinha infância na rua. Brincava na rua, frequentava clube, na escola tinha muita atividade. Meus tios eram atletas, eu frequentei ginásio desde pequena e brincava muito nesse ambiente esportivo. Comecei a fazer atividade cedo. Tinha acesso. Com 7 anos, comecei a fazer vôlei. Depois, na escola, um pouco mais tarde, fiz atletismo também até os 14 anos, de participar de competição nacional, assim como no vôlei.

O POVO - E foi você que quis ou seus pais já te incentivavam?

Ana Moser - Eu nasci nesse ambiente de cultura esportiva. Na minha família, o esporte era parte da formação da pessoa, todo mundo fazia esporte. Foi bem nesse esquema. Minha irmã tinha 9, eu tinha 7.

"É um grande desafio para o atleta profissional parar. Eu fui levando os últimos cinco anos totalmente fora da curva. Tinha artrose crônica, não conseguia treinar... Tomei anti-inflamatório diariamente durante cinco anos. Fiz três cirurgias nesse período... Em agosto de 1999 ficou muito feio. Tive medo de quebrar"

O POVO - E como era esse ambiente da família?

Ana Moser - Meu pai foi jogador de futebol amador, minha mãe fez vôlei na adolescência. Meu tio jogou basquete, vôlei e fez atletismo. Na minha cidade (Blumenau), tem os jogos abertos como em São Paulo. Tinha esporte na cidade. O técnico de vôlei era amigo da família. Era um ambiente esportivo. Da mesma maneira, a gente teve aula de violão, mas éramos horríveis. Vimos que tínhamos predisposição para o esporte. Então, tive como me desenvolver. Foi de uma maneira muito lúdica, sem pretensão. Comecei a participar de campeonato estadual, brasileiro. O vôlei foi se tornando profissional. Fui para São Paulo com 16 anos para jogar vôlei. Comecei a jogar na TransBrasil, o terceiro time profissional de vôlei feminino.

O POVO - E você foi morar sozinha em São Paulo?

Ana Moser - Eu e minha irmã. Ela chegou até a seleção brasileira juvenil. Antes de sair (de Blumenau), jogamos campeonatos brasileiros de menores, infanto juvenil. As pessoas viram a gente jogar, fomos para a seleção brasileira juvenil ainda morando lá (em Blumenau).

 

Revezamento da Tocha Olímpica - Blumenau SC. Ana Moser levanta a tocha
Foto: Ivo Lima/ME
Revezamento da Tocha Olímpica - Blumenau SC. Ana Moser levanta a tocha

O POVO - Mas foi um ato de coragem ir para São Paulo sozinhas, né?

Ana Moser - Sim. Ela tinha 18, eu, 16. Era um time sendo montado, vinha muita gente de fora. Morava todo mundo no mesmo bairro. Eu morava com minha irmã. Teve essa retaguarda. Passava parte do ano na seleção e treinava o ano inteiro. A temporada de um atleta de vôlei é assim. De abril a novembro, a temporada é na seleção. De novembro a abril, nos clubes. Ficava sempre em algum lugar fazendo parte do time. Foi uma aposta do nada.

O POVO - Como foi a sua formação como atleta nessa época que o vôlei engatinhava profissionalmente, em meio à caminhada até a medalha olímpica?

Ana Moser - Foi realmente uma trajetória de construção. A gente foi a primeira campeã mundial de vôlei (do Brasil), em 1987. Foi antes de o masculino conquistar o primeiro título mundial. Em 1985, eu disputei o mundial juvenil, ainda era novinha. Ficamos em 4º lugar. Vencemos Cuba na época e perdemos na fase final. Depois em 1987, a gente ganhou. Essa geração começou a ter treinamento mais forte. O vôlei começou a ter treinamento físico no masculino, no começo da década de 1980. Era muito ligada à escola de Educação Física da Urca. Era tudo coronel, major, os preparadores físicos. E a gente começou a fazer a mesma preparação e quebrou muita gente. Fomos cobaias de preparação física. Fazia uma preparação intervalada com tiros de 1.500 metros e se acabava até chegar aos 100 metros.

"O esporte brasileiro nunca foi afeito ao debate, apesar de que tem mudado nos últimos anos... O vôlei demorou um pouco mais, é coxinha, um pouco mais chapa branca. Se continuar se mobilizando, e acho que vai pelo que tenho acompanhado. Mais cedo ou mais tarde, vai acontecer a mesma coisa no vôlei"

O POVO - A gente sabe que um atleta profissional e a dor estão sempre ligados, não tem jeito...

Ana Moser - Eu parei nova com 31 anos, já com os últimos cinco anos sofrendo de artrose crônica.

O POVO - Um dos motivos foi isso?

Ana Moser - Foi o motivo.

O POVO - Isso tem a ver com o início da preparação?

Ana Moser - Se tivesse esse tipo de preparação corporal, medicina preventiva, fisioterapia, tudo isso que tem hoje. Se tivesse pilates naquela época, eu estava salva. Eu ainda sigo tendo dor e restrição.

"Nasci nesse ambiente de cultura esportiva. Na minha família, o esporte era parte da formação... Da mesma maneira, a gente teve aula de violão, mas éramos horríveis. Vimos que tínhamos predisposição para o esporte. Então, tive como me desenvolver. Foi de uma maneira muito lúdica, sem pretensão"

O POVO - Qual era o olhar de vocês sobre ter futuro do vôlei na década de 1980?

Ana Moser - Quando vim para São Paulo foi para isso. Em três meses, eu e minha irmão compramos um carro usado. A coisa se tornou muito concreta logo. A gente foi aprendendo a viver. Foi tudo muito rápido, não no sentido de ter se profissionalizado e escalou. Não teve escala. Até hoje não tem escala, o número de times, patrocínios. Começou menor ainda e foi crescendo. Se estabilizou, está bastante tempo estabilizado. São 14, 15 times no Brasil, o que é pouco. Mas foi se estruturando naquela época. A gente foi pro juvenil, começou a ganhar e foi profissionalizando a base. Passamos a lidar com TV, imagem, patrocínio, projeto de marketing, e isso foi evoluindo. Foi uma coisa muito natural.

O POVO - O que representou conquistar a medalha de bronze em 1996 e como foi aquele ciclo olímpico?

Ana Moser - Ali em 1996 era a coroação daquela geração. Tínhamos sido vice-campeã em 1994. Vencemos vários GPs. Em 1996, depois das Olimpíadas, vencemos o GP. Fomos para aquela Olimpíada para buscar o pódio, a final, a medalha de ouro. A gente já vinha tendo resultado, tinha uma disputa com Cuba, com Rússia e com os Estados Unidos. Às vezes com a China. Quando chega a Olimpíada, você constrói a sua história.

Fomos super bem na primeira fase, a classificatória. Ficamos em 1º, Rússia em 2º e Cuba em 3º. A lógica era Brasil e Cuba nas duas primeiras colocações e só se enfrentarem na final. No pareamento, cruzamos com Cuba na semifinal. Era vida ou morte para os dois lados. Cuba vinha com pressão muito grande pela primeira fase ruim.

O jogo foi disputado até o fim, e Cuba acabou ganhando. Fizemos o máximo. Ficamos em 3º depois de vencer a Rússia na disputa pelo bronze. Foi muito marcante e fruto da evolução. Primeiro a gente ganhou a hegemonia na América do Sul. Perdíamos para o Peru. Nossa geração foi a primeira a ganhar o Sul-Americano e não perdeu mais. Foi o primeiro pódio internacional, veio o pódio Mundial e depois o Olímpico. Foi abrindo o caminho, se criou a escola de vôlei do Brasil, o técnico, o estilo de jogo.

O POVO - E qual o significado da conquista?

Ana Moser - Foi a mais importante. Nada se compara a Olimpíada. Fui vice mundial, mas nada se compara. Tenho muito orgulho.

Ana Moser durante visita a Fortaleza em 2008
Foto: Rodrigo Carvalho, em 11/09/2008
Ana Moser durante visita a Fortaleza em 2008

O POVO - Ana, gostaria que você falasse um pouco de como funciona a parte psicológica de um atleta para conseguir motivação, superar uma derrota dura e buscar uma medalha ainda?

Ana Moser - De maneira genérica, você dá a volta por cima da derrota com treino. É resolvendo o que fez de errado. Nós, brasileiros, somos muito latinos, emocionais. É desgaste é maior. O norte-americano é mais pragmático. O europeu, o próprio russo e o asiático são mais frios. A gente leva tudo intensamente. É um desgaste muito grande na derrota. Foi um aprendizado.

Ali nas Olimpíadas mais ainda. E teve briga contra as cubanas, bate-boca, ficou até tarde. Dei um chute no banco de reservas. Na manhã do dia seguinte, estava na clínica da Vila Olímpica fazendo radiografia para ver se tinha quebrado o dedo. Nem treinei. Foi um trabalho mais de conversa com o próprio Bernadinho para sair do emocional e ir para o racional, estudar o time da Rússia. Foi transformar a frustração para a atitude. Teve um trabalho importante de comissão e nossa também. Foi um trabalho da equipe inteira e a comissão técnica, todo mundo se superando. É difícil superar a derrota. No esporte é mais visível.

O POVO - Você sempre cita o Bernadinho com muito respeito. No seu convívio com ele, você entende que está em que patamar do vôlei?

Ana Moser - Eu peguei o começo do Bernadinho, a raiz. Ele estava realmente começando. Tinha começado como técnico da Itália há dois, três anos. Foi assistente do Bebeto de Freitas na Olimpíada de Seul (1988). Foi uma parceria muito grande. Ele precisava da gente para dar resultado e a gente precisava dele para se organizar. Vínhamos de um trabalho em Barcelona muito fraco da comissão. Eu tinha pedido dispensa em 1993, um ano depois da Olimpíada. Pedi porque não era produtivo. Era tanto embate que não tinha mais como. O Bernadinho entrou para virar a página. Teve gente que veio da dispensa, que já estava lá, novas convocadas. Era muito diverso o time, e foi construindo aos poucos. Minha relação direta com ele foi de muita parceria pela construção do time da seleção.

 

Cuba, Ciudad de la Habana, Havana. Agosto de 1991. A atacante brasileira Ana Moser executa uma cortada em jogo da Seleção Brasileira de vôlei feminino nos Jogos Pan-americanos de 1991, realizados em Havana. (Foto: SÉRGIO BEREZOVSKY/AE)
Foto: SÉRGIO BEREZOVSKY/AE
Cuba, Ciudad de la Habana, Havana. Agosto de 1991. A atacante brasileira Ana Moser executa uma cortada em jogo da Seleção Brasileira de vôlei feminino nos Jogos Pan-americanos de 1991, realizados em Havana. (Foto: SÉRGIO BEREZOVSKY/AE)

O POVO - E como foi o processo de se aposentar? Como você lidou com isso?

Ana Moser - É um grande desafio para o atleta profissional parar. Eu fui levando os últimos cinco anos totalmente fora da curva. Tinha artrose crônica, não conseguia treinar. Eu fazia um treino diferente de todo mundo, quase não treinava com bola, era mais a parte física. Diminuí ao máximo o impacto. Tomei anti-inflamatório diariamente durante cinco anos. Fiz três cirurgias nesse período.

Para mim só valeria a pena se jogasse super bem, decidindo na seleção e nos clubes. Em agosto de 1999 ficou muito feio. Eu tive medo de quebrar, não conseguir mais jogar. Resolvi parar naquele ano. Tinha Copa do Mundo em novembro, classificatória para a Olimpíada de Sydney. Joguei, ficamos em 3º. Parei logo depois. Não tinha anunciado. Ninguém sabia, só algumas pessoas próximas. Encerrei o contrato com o clube e falei para o Bernadinho que estava saindo da seleção. Não tinha muita escolha. Eu ainda era nova para começar outras coisas e tinha muita vontade de ir além do treino, do jogo.

O POVO - Você segue acompanhando o vôlei profissional?

Ana Moser - Até alguns anos atrás, eu acompanhava mais, fazia comentários. Hoje quase não faço. Fiz a última Olimpíada do Rio na ESPN Brasil. Comentei a Superliga na RedeTV. Todas as Olimpíadas, quando parei, fiz presencial ou do estúdio. A vida vai levando, meu dia a dia não é mais no vôlei há muito tempo. Hoje estou mais desligada.

"Nós, brasileiros, somos muito latinos, emocionais. É desgaste é maior. O norte-americano é mais pragmático. O europeu, o próprio russo e o asiático são mais frios. A gente leva tudo intensamente. É um desgaste muito grande na derrota. Foi um aprendizado... É difícil superar a derrota. No esporte é mais visível"

O POVO - Em 2021, a Confederação Brasileira de Vôlei (CBV) teve pela primeira vez em 45 anos eleição com oposição e situação. Qual a sua avaliação da gestão da CBV?

Ana Moser - O esporte brasileiro nunca foi afeito ao debate, apesar de que tem mudado nos últimos anos. Sempre foi uma situação de grupos fechados, com mandatos consecutivos de décadas. Não se pode falar. O atleta nunca fala. Desde a Jaqueline, vestindo o uniforme ao avesso para esconder a marca do patrocinador que patrocinava a Confederação, mas as atletas não tinham nada, reivindicando direita de arena.

Foi execrada do esporte brasileiro e teve que construir a vida para os Estados Unidos jogar vôlei de praia. Voltou para ser campeã olímpica pelo Brasil. Eu também passei por isso quando pedi dispensa, fui laranja podre, execrada. A gente foi ficando velho e minha geração foi se metendo, de maneira e de outra no esporte. A família Grael, Raí, Paula, eu, Joaquim Cruz, o Flávio Canto. Na mesma época, começamos a criar nossos projetos no esporte. Há 15 anos, a gente se juntou numa associação Atletas do Brasil.

É toda uma comunidade reunida que luta por políticas de esporte e de esporte para todos. A gente fez um trabalho no Congresso, um movimento para mudar Lei Pelé para incluir essas questões, como limites de mandatos. São só dois mandatos, um mandato e reeleição. Transparência na prestação de contas. Todo recurso público precisa ser transparente, e não era antes. E a participação de atletas nas instâncias decisórias.

Essa lei começou a valer em 2014. Lá pra 2016, 2017, passou a aparecer um monte de comissões de atletas, de todas as federações, do comitê também, primeiro chapa branca. Depois a gente foi aproveitando as brechas para mexer na lei e melhorar, colocar em números, a porcentagem de atleta em cada comissão. Daí foi caindo para os estatutos, as comissões foram participando. Hoje, você tem alguns formatos diferentes dentro das federações. Cada um tem estatuto. O vôlei demorou muito para se organizar, por isso está pagando o preço. Quem se posicionou firme em todos os momentos e não deixou coisas como esse estatuto acontecer...

O vôlei demorou um pouco mais, é coxinha, um pouco mais chapa branca. Se continuar se mobilizando, e acho que vai pelo que tenho acompanhado. Faço parte de grupos de WhatsApp, o pessoal está realmente se mobilizando. Mais cedo ou mais tarde, vai acontecer a mesma coisa no vôlei, quem vai decidir o presidente, as contas, os projetos, será o atleta.

 

O POVO - Você acha que o atleta brasileiro é omisso ou é uma generalização?

Ana Moser - Durante um período era. Antes de ser profissional não era. O pessoal fica muito em cima do muro. Eu acho que isso acontece por alguns motivos, como o medo. Em muitas modalidades, quem convoca é federação. Se quer ter alguma chance na carreira, tem que estar na seleção e não pode incomodar. Você tem também falta de formação política e pessoal para entender as coisas e não ouvir só um lado da versão. Tentar saber mais como funciona as coisas, participar mais. Quem está no esporte profissional vive em uma bolha. Acho que agora tem avançado muito, seja atuando para direita ou esquerda, o posicionamento. Isso pode qualificar cada vez mais.

O POVO - Você citou casos de esportistas sofrendo por ter se posicionado. Teve o caso da Carol Solberg e outros recentemente. Em meio ao embate ideológico, a tendência é o crescimento de atletas que se posicionem?

Ana Moser - Falar que é posicionamento "Fora, Bolsonaro" é demais. O "Fora, Bolsonaro" já virou como "Fora, Dilma", "Fora, Lula", "Fora, Temer", "Fora, FHC". A questão é qualificar. Esse tipo de coisas muitas vezes dá muito barulho, bate-boca, e o fora um, fora o outro não muda nada. O que é importante é você ter a reflexão. Isso que foi julgado (caso Carol Solberg) era se a pessoa tem o direito de se posicionar e aquele contrato de participação no campeonato pode proibir a pessoa de se posicionar. É dar um passo para trás e participar da elaboração desses contratos, dos códigos de ética para ser equilibrado, porque se mostrou desequilibrado. Como a pessoa não pode abrir a boca? Essa é a questão maior. Tem que ver o outro lado também, tudo tem que ser debatido. Se aquele momento virar palanque de protesto pode ficar meio chato. Acho que isso serve para olhar para o contexto, refletir e aprimorar.

Entrevista com a ex-jogadora de vôlei Ana Moser Foto: Marcos Campos, em 02/07/2009
Foto: Marcos Campos, em 02/07/2009
Entrevista com a ex-jogadora de vôlei Ana Moser Foto: Marcos Campos, em 02/07/2009

O POVO - Explica o que faz o Instituto Esporte & Educação e como ele pode inserir pessoas?

Ana Moser - O Instituto começou em 2001. O esporte me fez virar gente, fui uma privilegiada. Pelo vôlei, vi como era em outros lugares. Aqui no Brasil pouca gente tem acesso. Se eu tivesse vivido outra época em outra família, minha possibilidade no esporte poderia ser sido de 0%. Isso sempre me incomodou. Passei a pensar no esporte para formar professor, atender crianças, dar aula, criar metodologia para todos, não só para os habilidosos. Quem não tem sorte e não é habilidoso não tem espaço.

O que fazer para mudar esse quadro? Primeiro foi fazer com que meninos e meninas pudessem participar da metodologia em jogo, em aprendizado motor, com método não diretivo. O professor tendo papel de mediador. Foi brincando com isso e desenvolvendo a metodologia que criei o Instituto. Parei de jogar e continuei levando o esporte.

Apareceu um patrocinador que queria levar para a favela, e fomos. A gente mostrou o quanto o foco era nas quatro linhas e o quanto era importante influenciar em outros momentos das outras horas da semana daquelas crianças. Primeiro tinha que ter um espaço para as pessoas frequentarem. Hoje em dia, estamos em escolas, em quadras, conjuntos habitacionais e outros espaços públicos. É ocupar espaço, colocar atividade de manhã até a noite e contratar e treinar professores.

Fomos construindo metodologia de esporte educacional, que é ensinar o esporte para todos, que as pessoas se desenvolvam, aprendam a jogar e tenham esse hábito para a vida. Temos torneios para jovens de vôlei e futebol que não há árbitros. Queremos ensinar mais do que esporte.

Em comunidades de baixa renda, esses espaços são referência social, de segurança, um lugar para ser bem-tratado. Fomos desenvolvendo a metodologia, indo para outras favelas, passamos a ter entre cinco mil a sete mil alunos. Mas não conseguíamos escala. É muito caro você ter professor. Começamos a sistematizar a metodologia e formar outros professores. A gente sempre pensou em escala. Como mudar esse quadro no país?

Os professores não aprendem a dar aulas para criança. As escolas não valorizam a educação física. Muito também porque o professor não se insere na própria educação, não participa de reunião pedagógica. É preciso trazer a qualidade para a educação física voltada para crianças e jovens e fazer com que seja valorizado na escola, na comunidade e nas políticas públicas.

Essa sempre foi a nossa visão e desenvolve projetos para isso. Já formamos mais de 50 mil professores em centenas de cidades do país, fizemos projetos em praticamente todos os estados. Na pandemia, a gente atendeu direto e indiretamente mais de seis milhões de crianças e jovens. Mudou tudo para o digital nesse período, criamos uma plataforma de ensino à distância (EAD).

"Temos um grande equívoco de como foram feitos os Jogos Olímpicos. A gente carrega legado negativo, elefantes brancos, investimentos sem sustentabilidade. Não temos política nenhuma. Tem um plano nacional de esporte há quatro anos rodando entre Ministério e Congresso. Regrediu, mas é um erro cometido lá atrás que a gente vem carregando"

O POVO - Vocês rodam o Brasil com o Instituto, indo em várias localidades de baixa renda. O que você vê desse Brasil que muitas vezes fica esquecido e o que mais te impactou nesse trabalho?

Ana Moser - Em 2000, foi minha primeira incurso pelo Brasil, através do Raly dos Sertões. Fomos de São Paulo até Fortaleza. Passei por vilas que não tinham dinheiro. Logo depois, o Instituto começou. Eu fiz muitas viagens para falar em universidades até começar com o Instituto. Passamos a viajar o Brasil com os projetos em 2004, 2005, conhecendo todo esse interior. Fui a muitos lugares, vi escolas que têm educação física na grade, mas não têm na prática porque não há professores.

Escola que só trabalha com 20%, 30% dos alunos porque o restante pede dispensa por se sentir excluído pelo método do professor. A gente tenta mudar esse quadro com a formação. Vimos um país que melhorou em uma época. Quando chegamos em Heliópolis, em 2001, fomos buscar estagiários, professores na favela para não trazer gente de fora, mas não encontramos nenhum. Hoje, a gente tem dezenas de ex-alunos desses lugares formados como professores, alguns com a gente ainda e outros voando por aí.

Vimos muitos municípios investindo em educação, melhorando escola, construindo quadra, contratando professor, investindo em estrutura, sonhando com a educação. Há alguns anos, ficou mais tristes, menos recursos também. A gente regrediu, as pessoas regrediram nesse sonho. Vimos várias ondas. Têm lugares muito fechados, outros muito abertos. Lugares onde a cultura permanece vibrante e outros que já não têm mais financiamento para grupos folclóricos.

O POVO - Nos últimos anos com esse governo, houve retrocesso ou as coisas positivas feitas anteriormente se mantiveram?

Ana Moser - Temos um grande equívoco de como foram feitos os Jogos Olímpicos (no Rio de Janeiro). A gente carrega legado negativo, elefantes brancos, investimentos sem sustentabilidade. Não temos política nenhuma, a gente não tem nada. Tem um plano nacional de esporte há quatro anos rodando entre Ministério e Congresso. Regrediu, mas é um erro cometido lá atrás que a gente vem carregando. Há dois ou mais anos que não tem nada.

 

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