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Dez anos de guerra na Síria: as chagas de uma crise humanitária
Reportagem Especial

Dez anos de guerra na Síria: as chagas de uma crise humanitária

Após dez anos de conflito armado, a Síria expulsou 6,6 milhões de habitantes produzindo um dos maiores deslocamentos de refugiados desde a Segunda Guerra Mundial. A guerra civil síria já matou 388,6 mil pessoas

Dez anos de guerra na Síria: as chagas de uma crise humanitária

Após dez anos de conflito armado, a Síria expulsou 6,6 milhões de habitantes produzindo um dos maiores deslocamentos de refugiados desde a Segunda Guerra Mundial. A guerra civil síria já matou 388,6 mil pessoas
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Viver na Síria nos últimos dez anos tornou-se, por si só, um ato de sobrevivência. Há uma década experienciando uma guerra civil, que desencadeou uma crise humanitária sem precedentes, o país hoje é um sombra da revolução. Os ventos que derrubaram regimes autoritários e ditaduras em parte do Oriente Médio e do Norte da África durante a Primavera Árabe não sopraram o suficiente na Síria. Se para a história a revolução nasceu na Tunísia, foi em território sírio que ela foi enterrada.

Em 2011, no início dos levantes na região, países como Egito, Líbia e Tunísia exigiam maior liberdade e o fim de ditaduras continuadas. A Síria havia provado essa herança ditatorial onze anos antes quando o atual governante, Bashar Al-Assad, sucedeu seu pai Hafez. No cargo desde o início do século, Bashar é filho de outro ditador que governou entre 1971 e 2000.

Presidente sírio Bashar al-Assad durante uma entrevista em Damasco, em 2016. Considerado um ditador por parte da população síria, levou o país a uma guerra civil que já dura 10 anos.
Foto: AFP - OSEPH EID
Presidente sírio Bashar al-Assad durante uma entrevista em Damasco, em 2016. Considerado um ditador por parte da população síria, levou o país a uma guerra civil que já dura 10 anos.

Para o sírios, a primavera começou nos muros de um colégio: “Sua hora vai chegar, doutor”, escreveram estudantes pedindo a queda de Al-Assad, oftalmologista de formação, ao verem ditadores da região caindo um a um em nações vizinhas. O governo sírio, vendo a força das revoltas na região, dobrou a aposta no autoritarismo. A resposta à pichação foi prender e torturar os jovens responsáveis por ela; ato que provocou protestos por todo o país.

Com o tempo, militares abandonaram o Exército e formaram centenas de grupos e milícias rebeldes contra o governo que, por sua vez, aliou-se a outros grupos da região para aumentar sua força. Não demorou para que potências estrangeiras entrassem no cálculo da guerra com dinheiro, armamento e soldados. Estavam reunidos os ingredientes para uma guerra civil.

Combatentes sírios ao lado dos turcos que os apoiam na guerra que já completa uma década. Na fotos, eles se reúnem em Raqa, norte da Síria.
Foto: AFP - Bakr ALKASEM
Combatentes sírios ao lado dos turcos que os apoiam na guerra que já completa uma década. Na fotos, eles se reúnem em Raqa, norte da Síria.

Há anos a questão deixou de ser uma disputa entre grupos pró e contra Assad. Com a evolução da guerra, organizações extremistas com objetivos próprios ocuparam vácuos deixados no poder. Dentre elas o grupo autoproclamado Estado Islâmico (EI) e a Al-Qaeda. Em termos de países, a oposição ao regime sírio conta com EUA, Arábia Saudita (inimiga do Irã), Turquia e União Europeia (UE). Assad equilibra-se no poder com o apoio direto e indireto de países como Rússia, China e Irã.

Ainda é impossível determinar quando e como a guerra acabará. Mesmo com o país em ruínas e dividido em diversos grupos, Assad chegou a um ponto onde não pode mais largar o osso. Para especialistas em relações internacionais, não há como os grupos rivais perdoarem o governante, investigado inclusive por crimes de guerra como a utilização de armas químicas. Caso abandone o poder, Assad teria de viver como asilado político em algum país aliado ou encarar a ira dos rebeldes e possivelmente a morte.

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Guerra matou 388,6 mil em em uma década

 

Dez anos depois, o conflito deixou ao menos 388.652 mortos, segundo levantamento divulgado no último domingo, 14, pelo Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH). O OSDH estima que 117,3 mil civis, dentre eles mais de 22 mil crianças, morreram desde o início da guerra vítimas principalmente de ataques do governo e de milícias aliadas; responsáveis pela maioria das mortes.

Segundo a ONU, cerca de 6,6 milhões de refugiados sírios estão espalhados pelo mundo, a maior parte em países vizinhos como Turquia e Líbano. Estima-se ainda que outras 6,7 milhões de pessoas estejam deslocadas dentro da própria Síria.

O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) lançou relatório em fevereiro deste ano no qual aponta em números o impacto do conflito na vida dos jovens sírios. Pesquisa CICV/Ipsos, entrevistou 1,4 mil sírios de 18 a 25 anos na Síria, no Líbano e na Alemanha. Mais de um terço deles disse que um familiar próximo ou amigo foi morto no conflito e 62% disseram que precisaram abandonar suas casas, seja na Síria ou viajando para o exterior.


O ativista Abdul Jarour, disse que não considera ser o mesmo que vivia na Síria. "Sou outra pessoa. Absorvi uma nova cultura, uma nova língua. Hoje sou brasisírio (...) Comecei a ir aos jogos para ver como é o povo brasileiro e me apaixonei. Me tornei corintiano. Quando você está no campo é todo mundo junto, todo mundo gritando. Ninguém sabe sua identificação social, sua riqueza", disse em entrevista à Agência Brasil.

Jovens sírios também contaram parte da experiência de guerra. Ahmad, hoje com 24 anos, disse que estava no nono ano quando os problemas começaram. “Tudo estava bem até o dia 26 de novembro de 2011. Os dias seguintes foram de tensão em nossa vila e as escolas foram fechadas. Aquele foi o último dia em que abri um livro escolar". Aos 14 anos, ele viajou da Síria ao Líbano. "Andei por uma hora, depois subi num caminhão de combustível. Não tinha muito espaço, então fiquei na parte de cima. Estava frio e ventando, podia sentir isso em meus ossos. Não achei que fosse chegar vivo", relatou à Cruz Vermelha.

Com 13 anos de idade, a jovem síria Youssef Ilia viajou por países como Turquia e Grécia durante cerca de um mês, para encontrar o irmão na Alemanha. "Por três dias, éramos 45 ou 47 pessoas em um pequeno barco. Era realmente perigoso. Ficamos no mar por uma hora e meia até a fronteira grega", lembra. O diretor-geral do CICV, Robert Mardini, destacou que a maioria dos jovens perdeu a infância e a adolescência para a guerra e seus desdobramentos. “Essa geração vai carregar nos ombros a maior parte da responsabilidade e do trabalho de reconstrução quando o conflito acabar".

 

"Um ponto fora da curva na primavera Árabe"

 

Estudioso do populismo e de regimes autoritários, o cientista político Fábio Gentile explica que o quadro sírio ainda é trágico. “Não me parece que teremos melhorias a curto prazo. O cenário ainda é de guerra, bombardeios, violações de direitos humanos e migração em massa. A Síria é um quebra-cabeça que não sabemos onde vai dar”, declara.

Professor de relações internacionais e presidente do Instituto Brasil África, Bosco Monte explica que a Síria foi um “ponto fora da curva” na dinâmica da Primavera Árabe. O país foi o único a não conseguir mudanças significativas ou derrubar o próprio regime. Segundo Monte, a comunidade internaciona falhou ao dar respostas aos sírios. “Os imigrantes estão fugindo aos montes ainda hoje e os campos de refugiados estão lotados. Os países mais ricos não deram uma resposta adequada à população”, defende.

Sírios pintam muro onde existia um edifício destruído pela guerra
Foto: AFP - Rami al SAYED
Sírios pintam muro onde existia um edifício destruído pela guerra

Gentile, por sua vez, analisa que a guerra na Síria tornou-se parte de um conflito de interesses entre potências mundiais, como EUA, Rússia, China e parte da União Europeia (UE). “Não é uma disputa pelos recursos, é mais uma questão de controle geopolítico da área onde a Síria está localizada. Quem controla a região, tem domínio estratégico de uma via direta entre Europa e Ásia. Em partes, isso explica porque a guerra está demorando tanto”, pontua.

O pesquisador considera ainda que a consolidação de Rússia e China como potenciais internacionais contribui para que o conflito se estenda. “Naquela época (da Primavera Árabe) Rússia e China estavam mais preocupadas com suas situações políticas e econômicas internas, mas agora que se consolidaram encaram os EUA e a UE para defender seus próprios interesses internacionais”, explica, acrescentando que com isso a Síria se torna também um “laboratório estratégico para as novas relações internacionais”.

No Conselho de Segurança da ONU, países que são contra o regime de Assad tentaram, em pelo menos três oportunidades, aprovar projetos que aplicariam sanções econômicas e diplomáticas ao governo sírio. Russos e chineses, membros permanentes do conselho, têm optado por vetar os textos, inviabilizando muitas das sanções.

 

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