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"A pátria de chuteiras": Quando a seleção subiu nos palanques
Reportagem Especial

"A pátria de chuteiras": Quando a seleção subiu nos palanques

Muito antes da polêmica entre Bolsonaro e a Copa América, história do Brasil foi sempre repleta de momentos que contestam tese de que "futebol e política não se misturam"

"A pátria de chuteiras": Quando a seleção subiu nos palanques

Muito antes da polêmica entre Bolsonaro e a Copa América, história do Brasil foi sempre repleta de momentos que contestam tese de que "futebol e política não se misturam"
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Quando Getúlio Vargas chegou ao poder, o “pai dos pobres” ainda não possuía a adesão de massas que viria a se tornar uma de suas maiores marcas. “A Revolução de 1930 foi um golpe. Ao contrário do que se imagina, o getulismo não era muito popular de início”, explica o historiador Airton de Farias.

Ao longo dos anos, foram várias as estratégias de Vargas de olho na aproximação com os brasileiros: a criação de leis trabalhistas, o desenvolvimento de grandes indústrias nacionais e, talvez no ponto mais simbólico, a apropriação do futebol. “O getulismo percebeu rápido o potencial que o esporte, em especial o futebol, apresentava para uma política de aproximação com a população”, diz Farias.

À medida que o futebol se popularizava no Brasil e ganhava ídolos como Leônidas da Silva – o Diamante Negro –, passava também a ser utilizado como instrumento de propaganda e de criação de uma “identidade nacional” atrelada ao governo. De lá para cá, é fácil olhar para a história do País e atestar que, ao contrário do que alguns dizem, futebol e política sempre se misturaram.

Leônidas da Silva, o Diamante Negro, maior craque brasileiro dos anos 1930 e 1940(Foto: FIFA/divulgação)
Foto: FIFA/divulgação Leônidas da Silva, o Diamante Negro, maior craque brasileiro dos anos 1930 e 1940


“O futebol é um elemento fundamental para entender a identidade do Brasil no século XX, o ‘ser brasileiro’. Tanto que a gente não fala ‘a seleção de futebol do Brasil’, a gente fala ‘seleção do Brasil’, como se o País ficasse ali restrito a um time de futebol”, explica Farias, estudioso da política e do futebol.

Com isso em vista, não é difícil entender as motivações que levaram o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) a, no fim de maio, interceder pela realização da edição deste ano da Copa América no País – ainda que em plena pandemia de Covid-19. Buscando intervir diretamente no funcionamento da seleção, Bolsonaro não foi de longe o primeiro governante do País a tentar puxar para si o prestígio da equipe com a população.

 

 

“Pátria de chuteiras”: Futebol e Estado Novo

Getúlio Vargas enxergou no futebol uma ferramenta potencial para construção de identidade nacional(Foto: Presidência da República)
Foto: Presidência da República Getúlio Vargas enxergou no futebol uma ferramenta potencial para construção de identidade nacional

O interesse do governo sobre eventos futebolísticos remete a 1939, quando Vargas baixou decreto criando a Comissão Nacional de Desportos (CND). Em toda a década anterior, prevaleceu no País rivalidade entre Rio de Janeiro e São Paulo na organização do futebol.

Com dirigentes batendo cabeça em busca de espaço na comissão-técnica da seleção, a rixa provocou baixas para a equipe nacional, como a quase total ausência de jogadores paulistas na Copa do Uruguai, em 1930, quando foram excluídos da primeira edição do torneio ídolos como Arthur Friedenreich. Com uma canetada, Vargas unificava o esporte em busca do “interesse nacional”.

Além do próprio Getúlio, decreto da CND trazia no texto a assinatura de Gustavo Capanema, ministro forte da Educação e um dos principais ideólogos culturais da Era Vargas, que ajudou a difundir e aproximar do governo movimentos como de Heitor Villa-Lobos e Pixinguinha na música, e de Oscar Niemeyer, Carlos Ramos e Lúcio Costa na arquitetura.

Pixinguinha, um dos maiores gênios da música brasileira que começava a ser símbolo da identidade nacional(Foto: Arquivo)
Foto: Arquivo Pixinguinha, um dos maiores gênios da música brasileira que começava a ser símbolo da identidade nacional

Antes mesmo da criação da comissão, o ditador brasileiro já havia indicado a própria filha, Alzira Vargas, como madrinha da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1938 na França.

Dois anos antes, em 1936, indicou o jornalista Luiz Aranha, irmão do diplomata Oswaldo Aranha – um dos mais poderosos e influentes políticos brasileiros durante a Era Vargas –, para o comando da Confederação Nacional de Desportos, precursora da CBF. Para o getulismo, mais do que uma paixão nacional, o futebol se mostrava ferramenta a ser controlada.

"Nestes 15 anos da Era Vargas, o Brasil passará por uma série de mudanças que irão reestruturar a vida política, econômica, social e cultural do país. No que se refere à cultura, este é o período que marca a ascensão do samba e do futebol como elementos fundamentais para uma nova definição de identidade nacional (...) no novo governo, a construção da nação e da nacionalidade brasileira era a prioridade que estimulava e justificava todas as realizações do Estado", registram Francisco Carlos Teixeira da Silva e Ricardo Pinto dos Santos no livro "Memória social dos esportes".

 

 

Bossa Nova e Maracanã: O período liberal populista

 “Aberta a porteira” pelo getulismo, a conexão entre futebol e política nunca mais se desfez no País. Na Copa a ser realizada no Brasil em 1950, de olho na disputa eleitoral que ocorreria no mesmo ano, a CBD transfere a concentração da seleção do Joá – bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro, afastado do Centro – para o estádio de São Januário, próximo do coração político carioca. Paparicados por políticos, jogadores "fugiam" de treinos e perdiam o foco na competição.

"Estávamos no céu e nos colocaram no inferno. Saímos do Joá, que era uma tranquilidade danada, uma paz, para São Januário", diria, anos depois, o goleiro Barbosa.

O clima de carnaval atinge ápice em 16 de junho daquele ano, com a inauguração do Maracanã, até então maior estádio do mundo. “Cumpri a minha palavra construindo este estádio. Cumpram agora o dever de vocês conquistando a Copa do Mundo”, disse à época o prefeito do Distrito Federal, Mendes de Moraes.

Um mês depois da inauguração, o Maracanã daria no Maracanaço, derrota da seleção brasileira para o Uruguai por 2 a 1 na final da Copa. Em outubro daquele ano, Getúlio Vargas seria eleito presidente com quase 50% dos votos. “Amaldiçoado”, o alojamento de São Januário foi desativado permanentemente logo depois.

Rio de Janeiro. 16/07/1950. O jogador Alcides Ghiggia, do Uruguai, comemora apos marcar gol durante a partida contra o Brasil, na final da Copa do Mundo de 1950, disputada no Estadio do Maracana, no Rio de Janeiro. O Uruguai conquistou o tÌtulo ao vencer o jogo por 2 a 1. (Foto ASSOCIATED PRESS/AE)(Foto: ASSOCIATED PRESS/AE)
Foto: ASSOCIATED PRESS/AE Rio de Janeiro. 16/07/1950. O jogador Alcides Ghiggia, do Uruguai, comemora apos marcar gol durante a partida contra o Brasil, na final da Copa do Mundo de 1950, disputada no Estadio do Maracana, no Rio de Janeiro. O Uruguai conquistou o tÌtulo ao vencer o jogo por 2 a 1. (Foto ASSOCIATED PRESS/AE)

Mesmo com o trauma da derrota, o futebol brasileiro continua em cima dos palanques. Em momento imortalizado em vídeo, o presidente Juscelino Kubitschek acompanha atentamente no rádio, em 29 de junho 1958, a final da Copa do Mundo da Suécia disputada entre Brasil e a seleção anfitriã.

Acompanhado de políticos, da esposa Sarah e das filhas, em determinado momento chega a se aprumar mais perto do aparelho e a pedir silêncio aos presentes. Vitorioso por 5 a 2, a seleção brasileira traria para casa sua primeira taça.

“Não foi a toa que JK passa então a receber a seleção, bater fotos com os atletas, bebe champanhe na taça. Há todo um uso político por parte do JK no que toca a se aproximar da população via futebol”, conta Airton de Farias.

Vitoriosa, a seleção passaria a figurar no centro de um movimento de “modernização” da identidade nacional capitaneado por JK, com popularização de ícones culturais mais “sofisticados” e ligados à classe média emergente da época, como a Bossa Nova.

Ainda em 1958, Juscelino já havia participado da indicação de João Havelange para o comando da CBD. Dirigente habilidoso, Havelange ajudaria o governo JK a colher louros com o esporte, sobreviveria politicamente à Ditadura Militar e chegaria até à Presidência da Fifa em 1974.

Juscelino Kubitschek quis usar a seleção de 1958 como símbolo de um Brasil moderno. Na foto, ele recepciona os campeões mundiais e bebe champagne na Taça Jules Rimet, ladeado de João Havelange (à dir.)(Foto: Reprodução Arquivo Nacional)
Foto: Reprodução Arquivo Nacional Juscelino Kubitschek quis usar a seleção de 1958 como símbolo de um Brasil moderno. Na foto, ele recepciona os campeões mundiais e bebe champagne na Taça Jules Rimet, ladeado de João Havelange (à dir.)

 

 


“Pra frente, Brasil”: Seleção nos anos de chumbo

 

Partida em 10 de junho de 1970 Brasil 3x2 Romênia. Em pé: Carlos Alberto, Brito, Fontana, Wilson Piazza, Felix, Everaldo, Admildo Chirol (preparador físico). Agachados: Jairzinho, Clodoaldo, Tostão, Pelé, Paulo Cesar Caju. (Foto: Acervo CBF)
Foto: Acervo CBF Partida em 10 de junho de 1970 Brasil 3x2 Romênia. Em pé: Carlos Alberto, Brito, Fontana, Wilson Piazza, Felix, Everaldo, Admildo Chirol (preparador físico). Agachados: Jairzinho, Clodoaldo, Tostão, Pelé, Paulo Cesar Caju.

Campanhas de propaganda com a seleção, o “ame-o ou deixe-o”, jingles ufanistas, os “noventa milhões em ação”. O período da Ditadura Militar tem inúmeros e bem documentados casos de uso político da seleção – consequência óbvia da busca permanente do regime pelo controle dos símbolos da cultura nacional. Alguns dos episódios mais “pitorescos” da ingerência pós-golpe de 1964, no entanto, são por vezes esquecidos.

“Chegaram a fazer uma coisa absurda na época, estabelecendo quatro seleções. Era uma verde, uma amarela, uma azul e uma branca, jogando ao mesmo tempo em várias cidades do País para atender a interesses de políticos aliados dos militares. Uma seleção jogava em São Paulo, outra em Recife. Era claro que isso não ia dar certo, gerou uma bagunça, uma desorganização”, relembra Airton de Farias.

O desarranjo nas fileiras da seleção ficou explícito na Copa de 1966, na Inglaterra, provavelmente a mais afetada por disputas políticas na história do Brasil. Na época, dirigentes da maioria dos grandes clubes brasileiros mantinham proximidade com os militares, usando dessa influência para, de olho na exposição, tentar emplacar jogadores na seleção que já era a então bicampeã mundial.

Com as pressões políticas, o clima de descontrole acabava chegando aos vestiários. Às vésperas de definir os 22 titulares que iriam para a Inglaterra, o técnico Vicente Feola era pressionado para trabalhar com quase 50 jogadores. O resultado viria meses depois, com participação pífia da seleção na competição, eliminada na 1ª fase após derrotas para Hungria e Portugal, esta última na época comandada pelo ídolo Eusébio, artilheiro da Copa.

O fiasco obriga os militares a reorganizarem todo o futebol nacional, culminando com a indicação de João Saldanha – um comunista convicto – para o comando de uma desacreditada seleção de olho nas eliminatórias da Copa de 1970.

João Saldanha(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução João Saldanha

Vitorioso nas eliminatórias, Saldanha seria demitido logo depois, com poucos meses antes do início da competição no México. As razões da demissão de Saldanha são objeto de debates até hoje entre historiadores e pessoas que participaram do processo.

Uma das teses aponta pressão direta do ditador Emílio Garrastazu Médici, que teria ordenado a convocação do jogador Dario (o Dadá Maravilha) para a seleção. Já outra, que tem ganhado popularidade nos últimos anos, aponta a existência de um movimento de jogadores pela demissão de Saldanha. O grupo teria sido liderado pela estrela do time, Pelé, que tinha relação conturbada com o técnico.

Lenda ou não, o fato é que a polêmica envolvendo Saldanha e a Ditadura acabaria gerando o que é considerado o estopim para a demissão do gaúcho. Em entrevista à imprensa da época, “João Sem Medo” rejeitou tese de possível intervenção de Médici na seleção.

"Nem eu escalo ministério e nem o presidente escala time" João Saldanha, treinador da seleção, contrário à interferência do presidente Médici

Menos de duas semanas após a fala, Saldanha foi demitido e substituído por Mário Jorge Lobo Zagallo.

A busca da Ditadura por controle do futebol permanece durante todo o período militar, que vai até 1985. Na Copa de 1970, um dos maiores aliados do regime militar, o então prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, compra 25 fuscas de “presente” para os jogadores responsáveis pelo bicampeonato mundial da seleção, como Pelé e Tostão.

Tostão e Pelé na Seleção Brasileira de 1970 (Foto: Acervo CBF)
Foto: Acervo CBF Tostão e Pelé na Seleção Brasileira de 1970

No resto dos anos 1970, o esporte é utilizado sobretudo para controle político local, com o surgimento de diversos estádios gigantescos financiados pelos militares. No Ceará, o Castelão é um desses exemplos.

Na época, se populariza inclusive o ditado popular “onde a Arena vai mal, mais um time no Nacional”, em referência ao desempenho do partido de apoio da Ditadura nas eleições parlamentares.

Na época, se cria a lenda de que bastava um prefeito apertar meia dúzia de mãos em Brasília, que já voltaria para sua cidade com uma vaga garantida em competições nacionais. A política de apadrinhamento e inchaço de torneios chega ao ápice no Campeonato Brasileiro de 1979, que é disputado por 94 equipes.

Vista aérea do Castelão no dia de sua inauguração em 1973(Foto: Centro Cultural do Castelão/Divulgação)
Foto: Centro Cultural do Castelão/Divulgação Vista aérea do Castelão no dia de sua inauguração em 1973

 

 

“Democracia corinthiana” e redemocratização

 

Com a redemocratização do País em 1985, episódios de ingerência direta de governos sobre a CBF e a seleção foram se tornando cada vez mais episódicos e raros. Anos antes do fim da Ditadura, no entanto, ocorre em São Paulo o maior movimento ideológico da história do futebol brasileiro.

Na época, jogadores do Corinthians mais politizados, como Sócrates, Wladimir, Casagrande e Zenon, iniciam uma espécie de movimento de “autogestão” no clube, algo totalmente distante da realidade nacional do momento.

Sócrates, Casagrande e Wladimir eram alguns dos principais nomes da Democracia Corinthiana(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Sócrates, Casagrande e Wladimir eram alguns dos principais nomes da Democracia Corinthiana

Decisões importantes para o clube, como contratações e regras de concentração, passam a ser decididas em votações internas, com votos igualitários entre técnicos, funcionários e jogadores. Os resultados geram debates até hoje, existindo críticas que vão desde a falta de organização do movimento a acusações de ex-jogadores, como o goleiro Rafael Cammarota, de que os grandes ídolos do clube concentravam em si todas as decisões.

O movimento logo é ampliado para questões externas ao futebol, votando, por exemplo, liberdade de jogadores para expressarem opiniões políticas. Nessa época, o Corinthians passa a estampar em suas camisas frases de contestação à Ditadura, como "Diretas Já" e "eu quero votar para presidente".

 

 

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