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Entre bruxas, sacis e outros seres, contos fantásticos de um Nordeste mágico
Reportagem Especial

Entre bruxas, sacis e outros seres, contos fantásticos de um Nordeste mágico

As histórias de terror e horror nordestinas constroem um imaginário fantástico repleto de tradicionalidade. E para quem presta bem atenção nelas, é possível até desvendar os modos e os medos da sociedade

Entre bruxas, sacis e outros seres, contos fantásticos de um Nordeste mágico

As histórias de terror e horror nordestinas constroem um imaginário fantástico repleto de tradicionalidade. E para quem presta bem atenção nelas, é possível até desvendar os modos e os medos da sociedade
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Se você está lendo de algum lugar do Nordeste, atenção! É um solo mágico, cheio de monstros, aparições e antiguidades. Foi onde o Brasil começou e, entre atrocidades e resistências, a região construiu um imaginário fantástico digno de antologias e exposições artísticas.

“O fantástico é tudo aquilo que o racional não resolve”, define o escritor Pedro Salgueiro. Escritor cearense e organizador do livro “O Cravo Roxo do Diabo”: o conto fantástico no Ceará, Salgueiro é apaixonado pelo potencial das histórias de terror e fantásticas. Durante três anos e pelo Edital de Literatura da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará (Secult), pesquisou contos e poesias cearenses dentro do gênero; nisso, convenceu-se das diversas maneiras que o assustador entra na vida humana.

De acordo com Anne Quiangala, doutoranda em Teoria Literária e Literaturas pela Universidade de Brasília (UnB) e colunista do O POVO+, esse fantástico por vezes assustador, unido à ficção científica e ao horror, é um dos subgêneros da ficção especulativa. "O ponto da ficção especulativa é o e se. E se o mundo tiver uma física, uma química, uma organização política diferente do que a gente conhece?", instiga.

E todos conhecemos boas histórias de terror envolvento bruxas, sacis e outros seres, principalmente em outubro, conhecido como o mês do halloween. Mas enquanto alguns contos fantasmagóricos são importados do hemisfério norte, o Nordeste constrói um imaginário rico e tão assustador quanto. Seja com assombrações, seja com monstros ou então com histórias demasiadamente reais, o terror nordestino vira uma maneira de se refletir sobre o que há de mais comum e interessante na vivência humana: o desconhecido.

 

 

Ceará assombrado

Leia três poemas e o trecho de um conto retirados do livro "O Cravo Roxo do Diabo": o conto fantástico no Ceará.

 

 

 

Os monstros da minha terra

Desde pequena, a estudante de Jornalismo Cindy Damasceno, 26 anos, ouvia as histórias de terror contadas pelo avô, quando morava em Caucaia. Uma das figuras mais presentes nas narrativas era o lobisomem; segundo ele, um dos vizinhos era verdadeiramente meio homem, meio lobo.

Homem Rato (Juazeiro do Norte - CE)(Foto: Nilo / Reprodução Bestiário Nordestino)
Foto: Nilo / Reprodução Bestiário Nordestino Homem Rato (Juazeiro do Norte - CE)

G. G. Diniz, escritora de horror e ficção especulativa, também lembra das noites de lua cheia em Fortaleza, quando ouvia os uivos do que supunha ser o vizinho da rua. Mas por mais que elas, assim como muitos outros cearenses, conheçam esses lobisomens, a descrição nem sempre é a mesma.

“O meu lobisomem é aquele que não aparece, é apenas uma sugestão. Mas eu não posso dizer que não existe, porque ele deixa rastros”, pontua Diniz. Afinal, depois dos uivos noturnos, sempre apareciam pegadas do lado de fora das casas.

De acordo com Rafael Limaverde, artista visual e curador do projeto Bestiário Nordestino, é difícil dar apenas uma origem para o imaginário nordestino. O lobisomem, por exemplo, é um daqueles monstros trazidos pelos portugueses durante a colonização; mas além da influência europeia e medieval (como os dragões e palácios vistos em cordéis), está também o imaginário indígena e africano.

Além disso, cada contador de histórias — seja um artista, sejam nossos familiares — constrói a própria imagem do bicho que viu ou escutou falar. “Cada um tem sua característica e elas meio que se misturam. E aí a cultura trata de embaralhar tudo”, explica.

Bichos 1 (Fortaleza - CE)(Foto: Sebastião de Paula / Reprodução Bestiário Nordestino)
Foto: Sebastião de Paula / Reprodução Bestiário Nordestino Bichos 1 (Fortaleza - CE)

Na exposição Bestiário Nordestino – Um olhar sobre a gravura fantástica, Rafael e o curador Marquinhos Abu fizeram um panorama imagético “de monstros e mitos originários do imaginário popular nordestino, produzidas no século XX e XXI por 21 gravadores do Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco”.

Outra característica interessante é a influência da religião. Demônios, o próprio diabo e outras figuras tendem a aparecer nas gravuras, marcando a força do imaginário religioso.

Para Rafael, o universo fantástico do Nordeste e também do Norte conseguem se diferenciar do resto do País, em algum grau, pela tradicionalidade e até pela pobreza econômica. “Quando você vai ao sertão nordestino, muitas vezes é uma viagem no tempo, até pela questão da pobreza econômica. É muito forte que, tendo diversos problemas, o sertanejo tenha uma questão muito clara às manifestações culturais”, analisa.

 

 

É claro, o Brasil é um país extremamente diverso. “Não dá pra ficar com esse bairrismo”, ressalta. Ao mesmo tempo, as regiões nordestinas e nortistas tendem a ter uma “conexão muito forte com o chão, a terra, a natureza”. “A massificação ainda não conseguiu apagar esses seres fantásticos. A maioria dos nossos avós veio do interior, para quem vive em Fortaleza, então culturalmente ainda é muito interiorano. E essa carga memorial traz muito isso também”, diz.

Os monstros nordestinos surgem de uma mistura entre bestas europeias medievais e daquelas oriundas da cultura indígena e africana.(Foto: ISAC BERNARDO)
Foto: ISAC BERNARDO Os monstros nordestinos surgem de uma mistura entre bestas europeias medievais e daquelas oriundas da cultura indígena e africana.

Por outro lado, o fantástico não está restrito ao interior. A escritora pernambucana Tatiana Faraújo destaca que Recife é uma cidade construída em mitos e fantasmas. “Conviver com os mitos é parte da cidade”, orgulha-se, explicando que o centro histórico da capital pernambucana é especialmente assombrado. Inclusive, existe um tour chamado Recife Assombrado, que faz guias noturnos entre os prédios e locais com fantasmas e outros contos curiosos no centro.

 

>> Assista ao filme Memórias do Palco: A Bailarina Fantasma, do O POVO+

 

 

Claro, os fantasmas vão para além dos turistas. Em Recife também existe uma ponte metálica, pela qual nenhum morador que se preze passa depois de um determinado horário. Segundo Tatiana, a crença é que o transeunte fica preso dentro da ponte assombrada — se algo ou alguém perseguí-lo por trás, a única fuga é pela frente; se vier pela frente, só foge quem vai para trás, mas sem nunca sair da ponte…

Mas se os demônios, lobisomens e fantasmas dão tanto medo, por quê não expulsá-los? Por que não realizar logo um exorcismo generalizado? “As assombrações têm tanto direito à cidade como quem está vivo”, justifica Tatiana. “A gente também é meio que amigo delas, tem um carinho, venera esses lugares.”

 

 

Terror da vida real

Todos conhecem alguém que o olho nem treme quando ouve falar de assombração. O coração bate tranquilo independente das histórias de fantasmas, abdução ou monstros… Enfim. Gente de couro duro mesmo. O problema mesmo é a realidade; ou melhor, o que pode ser real.

O horror encontra nas vivências reais e nas desigualdades sociais terreno fértil para aflorar o que há de mais aterrorizante na experiência humana.(Foto: ISAC BERNARDO)
Foto: ISAC BERNARDO O horror encontra nas vivências reais e nas desigualdades sociais terreno fértil para aflorar o que há de mais aterrorizante na experiência humana.

Na história de G. G. Diniz, O sertão não virou mar e Morte Matada, Fortaleza foi inundada. Quem é rico fugiu rápido para Juazeiro do Norte, nova capital do Ceará, e quem é pobre teve de aguentar até o último momento para, enfim, tomar a decisão de seguir, a pé, a estrada estado adentro. O problema é a falta de dinheiro pra comprar água, o tráfico humano e as coleiras que dão choque em quem se recusa a ser trabalhador dos coronéis. Eu não sei você, mas a espinha arrepia só de pensar em viver em um mundo assim.

“O que nos causa medo diz muito sobre a nossa sociedade”, reflete G. G. Diniz. Escritora de horror e ficção especulativa, a cearense aborda situações como assédio, cerceamento de direitos e racismo como os verdadeiros terrores da sociedade. De repente, o monstro não está mais escondido no escuro ou dá pistas de uma presença misteriosa. Ele está, às vezes sem pudor nenhum, do seu lado.

Ela também é co-criadora do gênero/movimento sertãopunk, caracterizado por ficções futuristas nordestinas. Nem todas precisam ser distópicas, mas é nesse cenário de agrave social e ambiental que Diniz encontra terreno fértil para abordar o terror e horror humanos.

O Boy Mansinho (Crato - CE)(Foto: Adriano Brito / Reprodução Bestiário Nordestino)
Foto: Adriano Brito / Reprodução Bestiário Nordestino O Boy Mansinho (Crato - CE)

"O horror parte de uma premissa social fundamental que é a diferença do eu e do outro. Tudo que difere desse eu, me ameaça. E se me ameaça, eu vou sentir medo e ter vontade de correr", descreve a doutoranda em Teoria Literária e Literaturas pela Universidade de Brasília (UnB), Anne Quiangala.

"O que constantemente causa o horror? São experiências de alguém correr atrás de vocês com uma faca, querendo te eliminar; algo que você sente nojo, repugnância. São formas fáceis de criar a dicotomia entre o eu e o outro. É o grande território do terror", descreve. 

Nesse sentido, a pesquisadora destaca que as desigualdades sociais sempre foram o forte do terror, mas só recentemente a discussão social amadureceu a ponto de identificá-las como tal. Você já parou para pensar por qual razão as mulheres e as pessoas não-brancas são as primeiras a morrerem em filmes de assassinos em série? 

 

 

O terro como gênero de autoconhecimento

“O medo, o terror, está em vários aspectos da nossa vida. O terror está em qualquer história”, reflete Karen Alvares, escritora paulista de terror e suspense. Ela, G. G. Diniz e Tatiana identificam nas histórias de horror um espaço de autoconhecimento.

As histórias de terror podem ser um espaço seguro para descobrir o limite do indivíduo por si só e dentro da sociedade.(Foto: ISAC BERNARDO)
Foto: ISAC BERNARDO As histórias de terror podem ser um espaço seguro para descobrir o limite do indivíduo por si só e dentro da sociedade.

“Nos dá a possibilidade de experimentar coisas que na vida real seriam perigosas, mas com a literatura é um espaço controlado. É muito bom para lidar com traumas”, afirma Tatiana. Ela continua: “Eu vejo o terror como um lugar seguro. A gente sempre se depara com a questão de pulsão de vida e pulsão de morte. Quanto mais se vai longe na ficção, mais seguro estamos na vida real.”

Além disso, diz G. G. Diniz, o horror é uma maneira de “colocar o dedo na ferida” e explorar a nossa sociedade e a nossa própria cultura. Assim, é importante que grupos considerados minorias (como mulheres, pessoas negras, povos indígenas e a comunidade LGBTQI+) ocupem os espaços na contação das histórias de terror, muito dominadas por homens brancos: “Quando se lê horror escrito por mulheres negras, lhe passa logo uma rasteira.”

Já quando o assunto é cultura, a proposta é tentar importar menos os modelos de terror do hemisfério norte e apostar em narrativas brasileiras, sem medo de ir fundo na regionalidade. Rafael Limaverde, por exemplo, relembra os efeitos da chegada da televisão no interior: “Quando a televisão chegou, não tinha mais pai do mato.”

“Mas esses seres ainda são muito fortes. Faz parte da gente enquanto humanidade pensar nesses seres que não existem”, defende. E de monstros bestiais a monstros humanos, o imaginário nordestino vai se construindo… Basta prestar atenção.

 

 

Para quem prefere as telonas

Se você não é muito de ler, aqui vão oito indicações de filmes de terror e horror para assistir no Dia das Bruxas. As sugestões envolvem produções nacionais e internacionais. Clique nos cartazes para ler a crítica completa (ela aparecerá no centro da visualização, por isso talvez seja necessário deslizar a tela para baixo).

 

  • TEXTOS E RECURSOS DIGITAIS
  • Catalina Leite
  • EDIÇÃO
  • Fátima Sudário
  • CAPA
  • Isac Bernardo
  • ILUSTRAÇÕES
  • Isac Bernardo e reproduções do Bestiário Nordestino (Nilo, Sebastião de Paula, Adriano Brito, José Costa Leite, Walderêdo Gonçalves)
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