Uma visão aérea sobre a cidade de Pacatuba, na Região Metropolitana de Fortaleza, revela movimentação tranquila em uma estrada que percorre o município. Aos poucos, o ângulo da câmera se eleva e o espectador consegue observar com mais detalhes montanhas que preenchem a região. Ali se encontra a Serra da Aratanha. Acompanhadas de áudio de uma conversa, as imagens ambientam o início do primeiro longa-metragem original do O POVO+.
Intitulado “Voo 168 - A Tragédia da Aratanha”, o filme apresenta o que ocorreu há quatro décadas na pacata cidade: a colisão do Boeing 727, da empresa aérea Vasp, contra a Serra da Aratanha. A aeronave trazia 137 pessoas - entre elas empresários cearenses do setor têxtil - e tinha Fortaleza como destino final. Ninguém que estava no avião sobreviveu.
O documentário é dirigido por Arthur Gadelha, Cinthia Medeiros e Demitri Túlio e apresenta detalhes do acidente a partir de depoimentos inéditos de pessoas envolvidas com o desastre. Além do filme, O POVO lançou um podcast com bastidores da produção que estreou no final de fevereiro. Quase um mês depois, a obra segue repercutindo e atua como importante movimento para a conservação da história do acidente e de quem, infelizmente, perdeu suas vidas. Ao O POVO, espectadores e um dos personagens do longa relatam suas impressões sobre a obra.
A produção do filme envolveu diversas frentes e contatos com várias pessoas, em uma logística que requisitou da equipe grande preparação para sintonizar as linguagens propostas pela obra. Diretor do filme, o jornalista Demitri Túlio alega o desejo de não transformar o filme em um “telejornal” ou “especial” para TV.
Assim, em diálogo com Arthur Gadelha e Cinthia Medeiros, foi preciso “mirar no cinema com tudo que ele exige": “As duas grandes frentes eram harmonizar o jornalismo (informação da época e 40 anos depois) e o cinema (a linguagem que prevaleceu”. O roteiro foi desenvolvido por meio de decisão coletiva, partindo da primeira subida ao local do desastre.
Inicialmente, porém, a ideia era elaborar uma mistura de documentário e ficção, em que um personagem refaria o trajeto até o local dos mortos, sendo retratado em uma “câmera subjetiva” e em uma narrativa na qual apenas nos últimos instantes da obra seria revelado que o personagem era um dos mortos da tragédia. Nesse caso, ele faria seu caminho do túmulo no cemitério Parque da Paz e percorreria “a jornada particular 40 anos” depois.
Entretanto, esse modelo de roteiro não foi adiante e a equipe decidiu montar a narrativa a partir de um personagem real: um dos profissionais que atuaram no resgate dos corpos. Algo nunca deixou de ser prioridade para os produtores do longa: tratar a história com delicadeza e respeito aos familiares e às vítimas do acidente.
Como resultado, a reverberação até o momento entre pessoas que assistiram ao filme tem demonstrado a relevância da obra, despertando diferentes reações no imaginário que marca os brasileiros: “Mesmo quem não acompanhou os desdobramentos do maior acidente aéreo do País, na época, ouviu falar ou tinha algum parente, amigo, vizinho ou conhecido que estava naquele voo. Isso foi uma teia de relações e experiências”, comenta Demitri.
O jornalista acrescenta: “Os perfis no Instagram do O POVO, do meu e do de quem trabalhou no filme receberam mensagens surpreendentes, relatos curiosos de envolvimento pessoal ou por aproximação de alguém desaparecido na Aratanha”.
Em um balanço sobre a repercussão do documentário quase um mês após sua estreia, Demitri analisa que a obra se destaca “por ter resgatado a história”, por ter sido o primeiro longa-metragem do O POVO+ e por conseguir “audiência acima do esperado”, com muitas pessoas entrando na plataforma para conferirem o filme.
Existem diferentes versões que povoam o imaginário dos cearenses quando se fala a respeito da tragédia. Para alguns, esse foi “o acidente que matou o Edson Queiroz” - e, ainda nesse campo, há pessoas que imaginavam que a morte do empresário havia sido em um avião particular, e não comercial. Outros não sabiam da dimensão do desastre - que, até 2006, foi o maior acidente da aviação brasileira.
Para o designer Gomes Avilla, integrante do Conselho de Leitores do O POVO, assistir ao filme foi a oportunidade de saber mais detalhes sobre um fato tão marcante e triste. Hoje com 25 anos, Gomes não era nem nascido quando o acidente ocorreu. Assim, o documentário se consolida como um importante meio de conservar a história.
Das narrativas apresentadas no documentário, um dos trechos que Gomes destaca é a participação de uma moradora de Pacatuba em que conta o que ocorreu na cidade nos primeiros momentos após a colisão do avião. Um dos pontos que chamaram a sua atenção foi o saque de pertences das vítimas por pessoas que subiram a Serra da Aratanha.
Ele comenta a experiência com o filme: “Eu sabia pouquíssimo sobre o acidente. Foi um aprendizado e também uma forma de conhecer parte da história do nosso Estado”. Em sua visão, a obra traz “sensibilidade” ao tratar do episódio. ”São muitas histórias que se cruzam. É muito importante ter registros como esse como forma de elucidar e deixar a história ainda mais concreta, compreensível e fácil de entender”, acrescenta.
A advogada Márcia Dias, 56, também assistiu ao filme e foi ao lançamento da obra em fevereiro. Atualmente integrante do Conselho Consultivo de Leitores do O POVO, Márcia ainda estava na adolescência quando o avião da Vasp colidiu com a Serra da Aratanha. Os detalhes, porém, não eram tão claros para ela, e a profissional costumava associar o desastre “ao fato do Edson Queiroz ter sido vítima do acidente”.
Com o documentário desenvolvido pelo O POVO, ela descobriu mais informações sobre o que ocorreu na época - incluindo fatos que foram destacados pela obra, como a explicação de que, inicialmente, a jornalista Lêda Maria estaria no avião da tragédia, mas escapou por ter alterado seu voo de retorno a Fortaleza.
Outro momento que despertou ainda mais a sua atenção foi a história apresentada sobre o empresário Luciano Acioly - um dos passageiros do voo. Na época do desastre, a sua casa havia se tornado ponto de encontro para familiares de vítimas, que moveram ação contra a Vasp. Além disso, a família guardou pedaços de uma das asas do avião.
Para Márcia, o documentário serviu como um importante “compilado” sobre o que ocorreu ao longo do desastre com a aeronave da Vasp. Além disso, é capaz de consolidar a memória sobre o acidente: “Você assiste ao filme e fica sabendo do acidente, das vítimas e de detalhes que talvez estivessem ‘perdidos’. Eu achei importante a obra, principalmente nesse marco de 40 anos. É, sobretudo, um resgate da memória desse acidente que marcou tanto o nosso Estado”.
O assessor financeiro Alexandre Souza é uma das pessoas que foram envolvidas de alguma forma na tragédia e que concederam entrevistas para o documentário. Filho do empresário Luciano Acioly (um dos passageiros do voo da Vasp), ele relata ter recebido o convite para participar do filme em uma de suas idas ao Cemitério Parque da Paz, em Fortaleza. É lá onde está o túmulo coletivo feito para guardar a memória das vítimas do acidente.
Alexandre costuma visitar o espaço para “deixar uma homenagem” ao seu pai e a todos os outros ocupantes do avião. Para ele, participar do projeto do filme foi uma forma de “resgatar memórias”: “O que mais chamou a minha atenção foi voltar ao passado para tentar recuperar algumas lembranças. Foi emocionante e triste, mas foi bom para lembrar de algumas coisas que ainda estão em aberto na minha memória e creio que na dos outros (familiares das vítimas) também”.
Na época da fatalidade, Alexandre tinha apenas 10 anos. Ao longo de quatro décadas, muitos detalhes sobre a tragédia foram sendo “apagados” de suas memórias. Assim, na visão do assessor financeiro, o filme pôde contribuir para trazer “clareza” ao desastre. Além disso, ele aponta para uma “libertação” diante de uma história que o acompanha há 40 anos.
“É como se fosse uma libertação, uma aproximação ao estar dentro daquela realidade e tentar voltar ao passado. É um resgate da tragédia. Até hoje tento buscar e entender o que aconteceu, porque muitas coisas foram apagadas das minhas lembranças”.
Um dos diretores do filme, o jornalista Demitri Túlio apresenta visão semelhante à de Alexandre, e comenta a relevância de se falar sobre o caso: “A tragédia da Aratanha será contada e recontada sempre. É uma história posta no passado, mas cheia de nuances que merecem ser contadas para curar algum trauma ou, simplesmente, ser narrada. Precisamos ouvir, ver e sentir as narrativas que o mundo inscreve”
Ele finaliza: “Considero que as histórias estão no mundo para serem contadas. Pelo jornalismo, pelo cinema ou outra linguagem. Nós somos feitos de memórias, sejam elas agradáveis ou não. E precisamos acolhê-la, sem nostalgia e melancolia, para superarmos o que nos incomoda. No momento, penso assim. Posso mudar e ainda bem que mudamos”.
Especial vai trazer memórias de um dos maiores acidentes aéreos do Brasil, que completa 40 anos e é tema de longa documental do OP+