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Órfãos da Covid: Ceará enfrenta mais um desafio deixado pela pandemia
Reportagem Seriada

Órfãos da Covid: Ceará enfrenta mais um desafio deixado pela pandemia

Há dois anos, desde o início da pandemia, um fenômeno social tem deixado crianças e adolescentes na situação de desamparo institucional, emocional e afetivo - as estimativas para o Ceará seriam de 8 a 10 mil pessoas nessa situação. Veja o que pode ser feito para ajudar a tratar com uma das sequelas mais cruéis da Covid-19
Episódio 1

Órfãos da Covid: Ceará enfrenta mais um desafio deixado pela pandemia

Há dois anos, desde o início da pandemia, um fenômeno social tem deixado crianças e adolescentes na situação de desamparo institucional, emocional e afetivo - as estimativas para o Ceará seriam de 8 a 10 mil pessoas nessa situação. Veja o que pode ser feito para ajudar a tratar com uma das sequelas mais cruéis da Covid-19
Episódio 1
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Julho de 2021: as mortes por Covid superaram as do mesmo período do ano de 2020, até então o pior mês da pandemia. Enquanto isso, a CPI da Covid estava acontecendo em Brasília e ganhava as manchetes dos noticiários todos os dias. Também foi neste mês que pesquisadores do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisa sobre a Criança (Nucepec), projeto de extensão da Universidade Federal do Ceará (UFC), tomaram conhecimento de um estudo do Imperial College e publicado na revista científica Lancet que dizia que cerca de 5 milhões de crianças e adolescentes entre 0 e 18 anos em todo o mundo ficaram órfãos ou perderam seus cuidadores desde o início da pandemia da Covid-19.

 

 

As estatísticas apontaram que, no Brasil, cerca de 194 mil crianças e adolescentes se encontravam nessa condição entre março de 2020 e abril de 2021. “Isso nos assustou muito. De imediato, começamos a buscar mais informações e contatar entidades próximas no âmbito de movimento da infância, assim como alguns parlamentares sensíveis à questão e a promotoria da infância e juventude”, lembra Ângela Pinheiro, professora do departamento de Psicologia, sobre a criação da Articulação em Apoio à Orfandade de Crianças e Adolescentes por Covid-19 (AOCA), que atualmente reúne 167 instituições em diversas áreas de atuações.

Ângela Pinheiro é professora do departamento de Psicologia da UFC e integrante do Nucepec (Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Ângela Pinheiro é professora do departamento de Psicologia da UFC e integrante do Nucepec

Também no mesmo mês, o Consórcio Nordeste aprovou uma resolução que institui o Nordeste Acolhe, programa idealizado e implantado primeiramente pelo governo do Maranhão e que deveria ser implementado nos nove estados do Nordeste.

O objetivo era desenvolver uma série de ações para a proteção de crianças e adolescentes que ficaram órfãos em decorrência da pandemia, incluindo auxílio financeiro. O papel dos governadores seria então mandar para as assembleias legislativas os projetos de lei que pudessem regulamentar essas ações, principalmente porque elas envolviam o pagamento de auxílios não só de curto prazo mas a depender da situação, médio e longo (por exemplo, até que a criança completasse os 18 anos).

Passados nove meses, o governo do Ceará ainda não fez esse encaminhamento, o que significa que com exceção das iniciativas pontuais de secretarias e instituições, milhares de crianças e adolescentes que perderam os pais podem estar em situação de desamparo no estado, com o agravo daquelas que passaram a viver em condição de rua. Conforme dados da Coordenação do Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude (Caopij) do Ministério Público do Ceará (MPCE), o número de crianças abrigadas no Estado quintuplicou nos últimos dois anos, exatamente no período da pandemia.

“Há uma estimativa de oito a 10 mil crianças e adolescentes estejam nessa situação. No entanto, não há dados precisos porque não foi feito nenhum tipo de levantamento. É preciso fazer uma busca ativa porque nenhuma área sozinha dá conta de localizar essas crianças. A pasta da educação é a que mais chega perto mas precisamos levar em conta o nível de evasão escolar que foi enorme no período. Esse levantamento não pode ser por amostragem e sim, completo, além de ser simultâneo a outras ações porque não dá mais para perder mais tempo”, ressalta. “A pauta é técnica, política e humanitária”, resume Angela.

O Nucepec tem feito articulações com o Tribunal de Justiça e a Corregedoria Geral de Justiça para demandar a localização das crianças e adolescentes por meio dos cartórios de registros de pessoas, mas um dos gargalos é o fato de que muitas localidades não disponibilizam dados online.

Renato Roseno (PSol), em sessão plenária na Assembleia Legislativa do Ceará(Foto: Deísa Garcêz / Especial para O Povo)
Foto: Deísa Garcêz / Especial para O Povo Renato Roseno (PSol), em sessão plenária na Assembleia Legislativa do Ceará

À frente da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa, o deputado Renato Roseno (Psol) explica o passo a passo do trabalho que o Ceará ainda precisa cumprir: “O primeiro passo é saber quantos são, onde estão e como estão os órfãos. Nessa primeira frente, seria necessária uma estratégia de coleta sistematizada e triagem de dados de múltiplas fontes, como SUS, educação, cartórios, Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e Conselhos Tutelares. Precisamos saber qual a situação socioeconômica, psicossocial e jurídica dessas crianças, assim como com quem e como estão vivendo e como estão vivendo. Estão na escola? Estão em saúde? Estão protegidas? Tem família substituta? A guarda está regular?”, enumera.

“Segundo: precisamos ampliar e fortalecer a rede de proteção social. Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) e os Centros de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), assim como os Conselhos Tutelares. Essas crianças precisam e precisarão de apoio. Para isso, seria necessário um esforço comum de busca ativa e ação. Aqui seria super importante ter agendas locais e estaduais de mobilização de gestores e da sociedade. Afinal, estamos falando de um contingente enorme de crianças afetadas. Por outro lado, há de se rejeitar o apelo à institucionalização. A institucionalização (viver em acolhimento institucional como em abrigos) deve ser exceção. Deveria ser breve e excepcional, como diz a lei”, pondera.

Como 3ª passo, o deputado fala de orçamento: “cuidar dos órfãos vai nos demandar quanto em 20 anos? O Governo Federal está destruindo o pouco que havia de SUAS. Hoje, o SUAS está com quase 40% menos que deveria em repasses federais. Isso sobrecarrega os estados e municípios. Na prática, o Governo Federal se desobriga da tarefa de cofinanciamento da proteção social”, critica. Por fim, seria a transferência de renda aos órfãos da Covid e suas famílias, o que necessitaria de legislação, aspecto que foi colocado em destaque nas recomendações da CPI da Covid em relação aos órfãos. “Mas não adianta somente transferir renda. Estamos falando de cuidado, afeto e proteção”, completa.

 

 

Rede de apoio para crianças e adolescentes

 

Juliana Andrade é supervisora do Núcleo de Atendimento da Infância e Juventude (NADIJ) da Defensoria Pública do Ceará(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Juliana Andrade é supervisora do Núcleo de Atendimento da Infância e Juventude (NADIJ) da Defensoria Pública do Ceará

Juliana Andrade, supervisora do Núcleo de Atendimento da Infância e Juventude (NADIJ) da Defensoria Pública do Ceará, lembra de quando a pandemia era tratada como algo que não afetaria diretamente crianças e adolescentes. “Depois pudemos ver como eles foram impactados em diversos aspectos, como na educação, na socialização, no lazer e, sobretudo, na questão familiar com a perda de familiares diretos. A situação de crianças e adolescentes que ficaram órfãos em decorrência da pandemia do Covid 19 é algo que o poder público não pode deixar de olhar, seja dando suporte financeiro, psicológico, técnico e jurídico. Além de perderem familiares próximos, com quem mantinham relação de cuidado, ficaram sem responsável legal, ou seja, aquela pessoa que era seu representante nos atos civis. E é nessa questão que a Defensoria Pública poderá e deverá atuar diante dessa situação, ingressando com a ação devida para que possam ter algum outro familiar responsável por ela”, indica.

“Em todas as vezes que podemos discutir esse assunto com a rede de apoio de crianças e adolescentes e com o poder público nós, a Defensoria Pública do Estado, colocamo-nos como uma espécie de porta de entrada para essas demandas. E nos casos de crianças que não possuem mais nenhum familiar que possam exercer a função de responsável legal ou de cuidado, elas deverão ser encaminhadas para acolhimento, seja na modalidade familiar ou institucional, a depender de cada situação. O Conselho Tutelar também poderá ser acionado para tomar as providências necessárias”, orienta.

A conselheira tutelar Gilvanda Barreto, à época no conselho tutelar I, lembra de um caso que considera marcante em relação aos órfãos da Covid. “Fizemos uma visita a uma casa com três crianças, com 2, 4 e 7 anos. A mãe havia morrido de Covid e a avó estava extremamente abalada pela perda da filha. O pai morava em outro estado. Encaminhamos o caso para a Defensoria e sugerimos acompanhamento psicológico para a avó, e a Defensoria iria pleitear algum tipo de benefício ao INSS devido ao falecimento da mãe, que havia trabalhado com carteira assinada em alguns períodos. Mas foi muito tocante e o que foi marcante nessa visita foi o fato das crianças fazerem questão de mostrar a foto da mãe e dizer que ela iria voltar. Nunca vou esquecer disso”, relata.

Atualmente a avó, que havia parado de trabalhar como costureira de facção para cuidar dos netos, conseguiu retomar o trabalho mesmo em casa. “A empresa se condoeu e levou as máquinas para a casa dela, e assim ela pôde manter o emprego dela. É o que está sustentando a família. Infelizmente, o benefício que a Lei Orgânica Da Assistência Social (LOAS) diz que é pra ter nos CRAS não existe. O que ainda tem é o auxílio funeral”, lamenta.

A conselheira tutelar Gilvanda Barreto já teve que lidar com a situação de desamparo de três crianças órfãs da Covid(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal A conselheira tutelar Gilvanda Barreto já teve que lidar com a situação de desamparo de três crianças órfãs da Covid

O autônomo Francisco Andrade entrega cestas básicas e itens de higiene todas as semanas no Grande Bom Jardim junto aos demais integrantes do grupo Espírita Chico Xavier, localizado na Granja Portugal. “Sei que a situação está ruim para todos, mas e para os adolescentes, quem vai zelar por eles? Porque as crianças mobilizam mais gente se elas ficam órfãs, todo mundo vai atrás de ajudar. Mas os adolescentes, que são aquelas pessoas que já não são crianças mas também não são adultos, são colocados de lado porque já podem se virar — pouco e mal, mas podem. A pandemia varreu a vida de muita gente na periferia, e agora o que se vê é a menina de 13 anos sem os pais e indo morar com homem com o dobro da idade, ou o menino de 16 que está sendo ‘criado’ pelas facções criminosas”, relata. “Esse vai ser o futuro do Brasil? Um monte de jovem pobre e sem esperança? Espero, sinceramente, que não”, suspira.

Durante três dias, a reportagem entrou em contato por email e telefone com as assessorias da Casa Civil, primeira-dama, vice-governadora, Secretaria de Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos humanos (SPS) e deputado Júlio César Filho (PPS), líder do Governo na Assembleia Legislativa, mas não obteve informações sobre a previsão de envio para a assembleia do projeto de lei que regulamenta a execução do programa Nordeste Acolhedor até a publicação desta matéria.



 

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Órfãos da Covid

Série de reportagens mostra o drama de uma geração de crianças e adolescentes vítima da Covid e em situação de desamparo institucional, emocional e afetivo