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Como será que estão os órfãos da Covid-19?
Reportagem Seriada

Como será que estão os órfãos da Covid-19?

Enquanto o governo não apresenta um mapeamento das crianças e adolescentes órfãos de um ou dois pais por causa da pandemia, sobram questionamentos sobre as condições de vida e vulnerabilidades delas
Episódio 3

Como será que estão os órfãos da Covid-19?

Enquanto o governo não apresenta um mapeamento das crianças e adolescentes órfãos de um ou dois pais por causa da pandemia, sobram questionamentos sobre as condições de vida e vulnerabilidades delas
Episódio 3
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Nós não sabemos quem eles são, quantos são, nem onde estão. A sequela social da Covid-19 segue invisível como o vento, dando pistas sobre o tamanho da crise humanitária que o Brasil e o Ceará enfrentam desde que a pandemia começou e continuarão enfrentando mesmo quando ela “for embora”. São os órfãos da Covid.

Pandemia de Covid-19 deixou até 10 mil crianças e adolescentes órfãs. Número exato dos órfãos da Covid no Ceará ainda é desconhecido(Foto: Freepik/Reprodução)
Foto: Freepik/Reprodução Pandemia de Covid-19 deixou até 10 mil crianças e adolescentes órfãs. Número exato dos órfãos da Covid no Ceará ainda é desconhecido

Provavelmente 8 mil a 10 mil crianças e adolescentes estão em condição de orfandade por Covid-19 no Ceará. O número, no entanto, é apenas uma estimativa com base em um estudo publicado no The Lancet, em julho de 2021. Se mais ou menos, apenas um levantamento oficial pode responder.

Desde então, entidades como a Articulação em apoio à orfandade de crianças e adolescentes por Covid-19 (Aoca) têm tentado mobilizar os governos estadual e municipal para mapear essas crianças e ampliar a estrutura de acolhimento a elas. O POVO+ abordou as tratativas nas últimas duas matérias sobre os órfãos da Covid.

O assunto da vez é um convite à reflexão: como devem estar vivendo essas crianças? Quem cuida delas? Como elas são tratadas? Quem as matricula, quem as leva a tomar vacina, quem as alimenta?

 

 

Crianças em duplo desamparo

Quando crianças perdem um ou os dois pais para a Covid-19, uma das possibilidades é ficar sob os cuidados de outros familiares ou de terceiros. E é importante identificá-las para que a guarda da criança e do adolescente seja regulamentada.

Ou seja, os novos responsáveis devem ser legalmente reconhecidos como tal, garantindo que elas tenham acesso aos serviços de educação, saúde e outros, além de reforçar os deveres do adulto para com a preservação da vida dessas crianças.

 

A promotora de Justiça Antônia Lima, titular da 78ª Promotoria de Justiça de Fortaleza, explica que todos os casos de pedido para oficialização da representação legal são atendidos pelo Núcleo de Atendimento dos Direitos da Infância e Juventude (Nadij), da Defensoria Pública. É preferencial que a representação tenha vínculos familiares sanguíneos com a criança e adolescente, mas caso a pessoa comprove que tem vínculo afetivo (o real determinante de famílias, perante a Lei) com a criança, também pode candidatar-se à guarda.

Família tem prioridade na representação legal da crianças nos casos de orfandade pela Covid-19(Foto: O POVO)
Foto: O POVO Família tem prioridade na representação legal da crianças nos casos de orfandade pela Covid-19

O pedido de guarda ocorre quando os dois pais foram vítimas da Covid-19. Se ninguém da família quiser a responsabilidade, a criança é encaminhada para um abrigo. “O abrigo é a última das opções, porque é um lugar coletivo. E apesar da dedicação com cuidado dos profissionais, ele segue como um espaço que não facilita a individualidade da criança”, destaca a promotora.

Exigir a oficialização de um responsável legal é importante para a proteção jurídica das crianças e adolescentes. Apesar de os familiares poderem matricular as crianças nas escolas e acompanhá-las em serviços de saúde e similares sem a guarda oficial, eles também “podem” se isentar da responsabilidade quando a corda apertar.

 

 

O perigo de guardas não oficializadas, no estilo “adoção à brasileira” "Quando uma família cria uma criança por "favor", sem passar pelo processo legal de adoção." , é sentido principalmente pelos adolescentes, explica Antônia. Como a adolescência é uma fase mais intensa, na qual o controle que os adultos têm sobre os jovens é mais comumente desafiado, qualquer ato visto como “mal criação” pode virar um motivo para expulsão de casa.

A integrante da Aoca e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) Ângela Pinheiro comenta como algumas dessas crianças podem ser vistas como “um estorvo” para os familiares. E esse é um dos motivos para a insistência na criação e execução de auxílios financeiros para os órgãos da Covid-19: “É claro que um auxílio financeiro estimula o cuidado.”

Afinal, destaca, a dinâmica familiar precisa ser sustentada. Ajudaria muito mais se houvesse berçários públicos e se os serviços de creche fossem ampliados. “Os serviços públicos precisam ser acionados, é um duplo desamparo para essa criança. A demanda se soma e não é dizer que a criança órfã vai ter prioridade: todos devem ter prioridade, se for assim alguém vai sair perdendo.”

 

 

Em situação de vulnerabilidade

Estar em casa não significa segurança total, e o governo precisa compreender as minúcias de tratamento que os órfãos da Covid-19 também podem estar vivendo.

Levantamento em 2021 soma 1,3 mil casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes, sendo que a maior parte deles aconteceu durante a pandemia do coronavírus(Foto: )
Foto: Levantamento em 2021 soma 1,3 mil casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes, sendo que a maior parte deles aconteceu durante a pandemia do coronavírus

Em 2021, 1.344 crianças e adolescentes de até 14 anos foram vítimas de abuso sexual. O dado da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) representa 69% do total (1.947) de casos de violência sexual registrados no Ceará no ano. O levantamento soma as vítimas de casos de estupro, estupro de vulnerável e exploração sexual de menor, dos quais as mulheres são as principais vítimas (88%). Dos 229 casos em que a vítima era do sexo masculino, 172 eram meninos até 14 anos.

Será que entre essas crianças e adolescentes há órfãos da Covid-19? Isso seria mais um agravante, considerando que a maioria dos casos de violência sexual infantil ocorre dentro de casa e é cometido por pais, tios ou amigos próximos da família.

 

 

Será que os órfãos da Covid-19 também refletem nos dados de trabalho infantil?, questiona Adriana. O Ceará registrou 90 autuações por exploração do trabalho da criança e do adolescente entre o início de 2022 e o dia 19 de abril. O balanço é do Ministério Público do Trabalho (MPT) e são, em maioria, com base em relatórios de fiscalização da Superintendência Regional do Trabalho, no Estado (SRT/CE).

Deles, 76 dos procedimentos autuados (84% do total) são casos de adolescentes encontrados trabalhando em locais ou atividades insalubres ou perigosas.

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Órfãos da Covid

Série de reportagens mostra o drama de uma geração de crianças e adolescentes vítima da Covid e em situação de desamparo institucional, emocional e afetivo