Terror para as defesas adversárias, dono de uma habilidade única com a bola nos pés e ídolo de uma nação, um jovem negro de sorriso fácil é o responsável por um movimento que pode sacudir de vez o futebol mundial. Atacante do Real Madrid, o brasileiro Vinicius Junior carrega consigo uma alegria e uma capacidade esportiva tão intensas que lhe alçaram ao patamar dos grandes craques do esporte atual. Apesar de suas inúmeras conquistas em campo e na vida, uma ira preconceituosamente racista tem se levantado contra ele toda vez que entra em campo para atuar em estádios espanhóis.
Lançado para o futebol profissional aos 16 anos, Vini Junior teve uma ascensão meteórica: estreou pelo Flamengo em 2017 e dois jogos depois teve sua contratação acertada com o Real Madrid por 45 milhões de euros (cerca de R$ 164 milhões, na cotação da época). Como era menor de idade, precisou esperar até julho de 2019, quando completou 18 anos, para trocar o futebol brasileiro pelo europeu. Nesse período, ganhou idolatria no Rubro-Negro, mas também tornou-se alvo de criminosos travestidos de torcedores, que o xingavam nas arquibancadas e nas redes sociais simplesmente por causa da cor de sua pele.
No curto espaço de tempo em que atuou no Brasil, pelo menos quatro casos de insultos raciais foram registrados pela imprensa contra o jogador. E infelizmente essa matemática não parou por aí. Pelo contrário, a escalada de ódio contra Vini só aumentou, principalmente após ele deixar o País rumo ao continente europeu. Tanto é que em pouco mais de quatro anos jogando pelo Real, o atleta foi alvo de, no mínimo, 11 episódios racistas protagonizados em estádios e em seus arredores, bem como na televisão espanhola.
pouco ou nenhum apoio público e incisivo de seus companheiros, bem como de jogadores de outras equipes e até do próprio time deu indicativos de que aquele era um problema único e exclusivo do atleta brasileiro. Apesar de estar aparentemente sozinho nessa batalha, ele não se calou e nem se abateu diante dos preconceituosos. Fã de astros como Lewis Hamilton, da Fórmula 1, e LeBron James, do Basquete, que se levantaram na luta contra a desigualdade racial em seus respectivos esportes, Vini Junior também reagiu.
Mesmo creditado como resiliente e calmo por aqueles que acompanham o futebol internacional mais de perto, Vini teve sua paciência esgotada em 21 de maio de 2023. Durante a partida entre Valencia x Real Madrid, pela 35ª rodada do Campeonato Espanhol, um coro vexatório foi puxado na arquibancada. Vindo de torcedores dos donos da casa, Vinicius Junior foi xingado de “mono” (macaco, em espanhol) ao longo de todo o confronto. O jogo chegou a ser interrompido por causa disso, mas a onda de preconceitos não cessou.
Aos 24 minutos do segundo tempo, o brasileiro reclamou com a arbitragem quanto às ofensas sofridas. Ele chegou a mostrar ao árbitro que havia identificado um torcedor que o hostilizava, mas o apitador não lhe deu muita moral. Antes do encerramento do jogo, porém, Vini se envolveu em mais uma confusão: em meio a um empurra-empurra, um adversário aplicou um mata-leão no brasileiro, segurando-o pelo pescoço. Mas ao sair daquela situação, Vinicius acertou o rosto do rival. O movimento rendeu sua expulsão com auxílio VAR.
Após a maré de racismo contra Vinícius Junior ganhar mais um capítulo, uma possível solução foi levantada pela imprensa, por torcedores e até mesmo pela própria equipe do jogador: deixar o Real Madrid, clube com o qual tem contrato até 2027. Considerando o contexto, a ideia de virar as costas para o futebol espanhol e buscar outro país com liga igualmente competitiva pode até parecer boa. Na prática, porém, ela se mostra extremamente difícil.
Para se ter ideia da relevância do craque brasileiro, a eventual rescisão com o time merengue precisaria movimentar valores verdadeiramente astronômicos e impraticáveis para a maioria dos times. Peça-chave para o esquema do técnico Carlo Ancelotti, Vini tem uma multa contratual estimada em 1 bilhão de euros (o equivalente a R$ 5,3 bilhões). Esse valor é uma prática recorrente do Real para blindar seus principais jogadores, uma vez que é praticamente impagável.
Por outro lado, digamos que o clube esteja aberto para negociação. Os valores de mercado iniciais para uma transação de Vini apareceriam como uma das maiores do futebol atual. Conforme dados do Observatório de Futebol do Centro Internacional de Estudos de Esporte (CIES Football Observatory, em inglês), o atacante é avaliado em 190,5 milhões de euros (cerca de R$ 1,1 bilhão), sendo assim o brasileiro melhor posicionado no ranking e o quarto do mundo. Abaixo, confira o top 10 dos jogadores mais valiosos do mundo.
Em pouco mais de seis anos de carreira, Vinicius Junior se tornou um dos maiores vencedores do futebol mundial. Em seu currículo, por exemplo, já estão contabilizados títulos como o de campeão da Champions League e da Supercopa da Uefa. Sempre como protagonista, tem ao todo nove troféus pelo Real Madrid, além de outros dois conquistados defendendo as cores da Seleção Brasileira nas categorias de base. Veja abaixo os principais títulos do jogador.
Assim como acumula títulos, Vinícius Junior tem apresentado uma evolução esportiva considerável conforme tem amadurecido profissionalmente. Nesses mais de seis anos, divididos entre Flamengo, Real Madrid Castilla, Real Madrid e Seleção Brasileira, o atleta já contabiliza 80 gols em 319 partidas oficiais. Somente na atual temporada (2022-2023), são 24 gols, seu melhor desempenho até agora.
Confira quatro análises diferentes de jornalistas que tentam explicar as situações vivenciadas por Vinicius Junior na Espanha. Clique nas fotos abaixo para conferir suas análises.
Por Cláudio Ribeiro
Vinícius Júnior irrita os jogadores e as torcidas adversárias no reinado de Filipe VI porque é muito melhor do que eles. Mas principalmente porque é preto.
O menino veloz, habilidoso, de sorriso largo, está triste, mas não cabisbaixo. Peito erguido, dedo em riste, prefere não se acomodar ao ser chamado de "mono" (macaco) por uma arquibancada inteira. Vinícius explodiu seus sentimentos acumulados. Preferiu chamar a atenção do resto do mundo do que insistir em avisar apenas à autoridade do gramado ou da justiça espanhola.
O crime flagrante de racismo tem culpados e ele está cobrando pelos talhos que fizeram em sua carne negra. É por dignidade, mas não apenas para si.
Se dez ocorrências foram as registradas em apenas dois anos no Campeonato Espanhol, de entoarem cânticos e urros e gestos simulando um primata na direção do brasileiro, nada ali foi pontual. Fecharam os olhos e ouvidos a quantos casos?
Há um prazer, sádico, de agredir aquele preto que se veste de uniforme branco e é melhor do que os brancos. Não é só rivalidade, é incivilidade. Não são só os dribles, é racial. Não é porque é do Brasil, é sua pele que é retinta. E ao ver várias arenas de futebol, ou desde o entorno dos estádios, gritando impropérios por causa da cor da pele, algo está muito ruim na sociedade.
O triste é saber que o estádio Mestalla não é o único palco desses criminosos racistas. Não é só Espanha. Cruza Itália, Argentina, Europa, América, Brasil, Castelão, ginásio da escola, calçada, filas, mesas, reuniões, urnas, parlamentos. É um território sem linhas imaginárias desenhando fronteiras. É uma mazela no ar, viral, pandêmica.
Vinícius não quer que ele e outros pretos mais sigam sendo insultados impunemente. Ele até já foi enforcado em forma de boneco. Então a ameaça é real, mais do que somente um grito.
A sanha racista não acabará, mas será cobrada pelo que tem feito no futebol. O debate precisa continuar, com adoções de medidas. A cor negra tem dor e só quem é dela sabe.
A raça negra ganhou um novo expoente no esporte mundial. Será lembrado. Como Muhammad Ali e seus socos contra o preconceito. Feito o punho cerrado, no alto do pódio, dos atletas negros na Olimpíada do México de 1968. Ou igual a Lebron James (NBA) e Lewis Hamilton (F1) e seus posicionamentos e atitudes relevantes.
Domingo, 21 de maio de 2023, já é um dia histórico. O mundo tem um novo ídolo preto. Que exige respeito.
Cláudio Ribeiro, repórter especial do O POVO
Por Karoline Tavares
Comecei a torcer pelo Real Madrid há quase 10 anos. Confesso que, enquanto jovem negra, sempre que um jogador também negro é contratado, fico feliz por ver alguém parecido comigo chegando ao maior clube do mundo. Com o Vini Jr não foi diferente: sendo preto e brasileiro, não tinha como não torcer por ele.
Só que uma confusão de sentimentos começou a crescer em mim já no início da trajetória dele no Real. Sempre que ele errava, surgiam comentários racistas. Com o passar dos anos, as coisas foram ficando bem piores. E, nos últimos meses, a situação se tornou insustentável. Como vibrar com e por ele em meio aos gritos, cânticos e atitudes racistas, em quase todos os jogos?
São quase palpáveis a raiva e a tristeza que Vinicius experimentou contra o Valencia, no último domingo, e em tantas outras partidas em que ouviu arquibancadas inteiras chamarem-no de macaco. Senti como se fosse comigo. O que representa nossa existência e a resistência de ocupar um espaço no mundo que dizem não ser nosso?
Nossos corpos são constantemente desumanizados, humilhados e expostos a todo tipo de violência há mais de 500 anos. Vivencio e sei o quanto são cansativas e dolorosas situações como essa. É um misto de impotência, ódio e revolta que não cabe no peito.
Mais difícil ainda é lidar com a impunidade dos racistas e a negligência de quem pode, mas não faz algo concreto. As notas de repúdio e hashtags superficiais para ajudar no marketing do antirracismo quase sempre acabam vencendo.
Os posicionamentos e as providências tomadas por liga e governo da Espanha nesta semana (prisão e banimento de alguns dos racistas de eventos esportivos para sempre, punição a clubes) são importantes, mas ainda mínimas. Em uma sociedade como a espanhola, completamente despreparada no combate ao racismo, o movimento tem que ser maior e mais efetivo. Como disse Angela Davis, "não basta não ser racista, é necessário ser antirracista". De verdade.
Vinícius José Paixão de Oliveira Júnior, o melhor jogador do mundo na atualidade e inspiração para milhões de jovens pretos, é gigante dentro e fora dos gramados. Ele tem o direito de atuar 90 minutos em uma partida com dignidade. Como todos nós, ele só reivindica o direito de viver e sonhar em paz.
Karoline Tavares, jornalista cearense e autora do livro Passa a Bola pra Elas
Por Patrícia Karam
Vinícius Jr. não começou a ser atacado pela cor da sua pele somente na Espanha. Por duas vezes e ainda adolescente jogando pelo Flamengo, sofreu ofensas raciais de torcedores do Botafogo, por exemplo. Na época, o argumento usado pelos seus agressores foi o mesmo de agora: “ele provocou”. A estratégia de culpabilizar a vítima não é nova, portanto.
Vinícius Jr. também já foi motivo de piadas de muitos jornalistas esportivos brasileiros que hoje prestam solidariedade ao jogador do Real Madrid. Para citar um dos casos, durante uma mesa redonda do SporTV, apresentada por André Rizek, Vinícius Jr. foi tratado pejorativamente de “Neguebinha”. Sempre que o assunto volta à tona, como agora após os incidente em Valência, Rizek faz tabelinha com Fábio Porchat e coloca na conta do humor, para citar outra polêmica recente.
Isso foi em 2017. Ou seja, quase seis anos depois, na Espanha assim como no Brasil, a história se repete. As agressões das torcidas adversárias, a omissão da arbitragem, a cumplicidade dos dirigentes de clubes e federações e o despreparo de boa parte da imprensa esportiva para tratar do racismo, colocando, muitas vezes, interesses clubistas acima de tudo. E não é muito diferente na Inglaterra ou na Itália, para citar outros dois países que somam centenas de casos de racismo contra jogadores.
Quem mudou foi Vinícius Jr. Como tantos atletas antes dele, passou a responder cada vez com mais firmeza, mostrando uma resiliência que seus detratores não esperavam. Em 2014, o ex-goleiro Aranha, então no Santos, também foi xingado de “macaco” por parte dos torcedores do Grêmio em um jogo Porto Alegre pela Copa do Brasil. Aranha não se calou diante da agressão e denunciou. Como resultado, o time gaúcho foi excluído do torneio. Na época, muitos acharam que seria um marco na luta antirracista no futebol.
Infelizmente, isso não se concretizou. Por isso não dá para se ter grandes ilusões que algo radical irá acontecer a partir de agora. Até porque o racismo no futebol é o reflexo do que acontece na sociedade. E, portanto, não deve ser tratado isoladamente. Aliás, outro erro dos dirigentes e da imprensa esportiva que insiste em tratar o futebol (e outros esportes) como algo fora de um contexto histórico, econômico, político e sociológico.
Para os defensores dessa visão, atletas devem apenas “shut up and dribble (calar a boca e driblar)” como a jornalista de extrema-direita Laura Igraham, da Fox News, disse certa vez para LeBron James por conta das críticas dele ao infame ex-presidente Donald Trump. James, é claro, não se calou. Assim como Vinícius Jr. também não vai se calar.
Patrícia Karam, editora do portal de notícias da Prefeitura de Fortaleza
Por Ana Mary C. Cavalcante
O grito violento dos incontáveis torcedores racistas da liga espanhola não calou o jogador brasileiro Vini Jr. Sozinho no alvo do ódio, pela segunda, terceira, por todas as vezes, Vini se fez palavra, verbo, história.
E a violência costuma calar. A violência cala a própria dor, até, que segue dizendo por dentro, a doer todo tempo. A cura possível é a não-violência, nunca mais, e só começa quando a vítima fala. Mas falar também dói tudo outra vez, todas as vezes, até se transformar cicatriz.
No Instagram, eu respondi em um comentário a uma artista que admiro por lá: o racismo é uma violência, não é menos que isso. Agride, fere, humilha. É preciso reconhecer, educar, punir, nunca tolerar; e repetir: o racismo é uma violência. E mata; se não mata de uma vez só, mata aos poucos. Mata as chances, os sonhos, o ser. É cruel e desumano, não tem meio termo. Um horror.
E nenhuma violência é tolerável, nunca foi e nem pode ser. Toda violência mata; se não mata a vida, completamente, mata as chances de ser vida inteira.
De tudo o que eu li sobre o racismo contra Vini Jr., ou melhor, de tudo o que eu senti (tantas vezes, só é preciso sentir com o outro), ficou em mim a coragem dele em ser palavra, verbo, história; sozinho, como no exato instante de precisar nascer. "Mas eu sou forte e vou até o fim contra os racistas", ele se escreveu, contra a violência.
E porque ele não se calou, outros também falaram. E porque outros também falaram, todos ouviram.
Agora, e depois, é preciso juntar as forças. e as palavras, e os verbos, e as histórias. Vamos.
Ana Mary C. Cavalcante, jornalista cearense