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Calor, enchentes e ciclones: bem-vindos ao inferno climático
Reportagem Especial

Calor, enchentes e ciclones: bem-vindos ao inferno climático

Altas temperaturas, calor intenso, chuvas e outros fenômenos fora de controle não são meros eventos passageiros. Eles marcam a entrada do planeta num tempo de crise climática

Calor, enchentes e ciclones: bem-vindos ao inferno climático

Altas temperaturas, calor intenso, chuvas e outros fenômenos fora de controle não são meros eventos passageiros. Eles marcam a entrada do planeta num tempo de crise climática
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Quem perambulou pelas ruas de Jaguaribe na última segunda-feira, 25, deve ter se dado conta de que algo não ia bem. Precisamente às 15 horas, no miolo da tarde, o município, a pouco mais de 300 km de Fortaleza, registrou a temperatura máxima de 40,9 graus Celsius.

Foi um dos maiores registros já feitos na série histórica da cidade, de acordo com informações da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme).

Naquele mesmo dia, um pouco mais abaixo no mapa do território, Barro marcava 40,2 graus centígrados por volta das 14 horas, quando a maioria dos cearenses se recolhe para um cochilo depois do almoço.

Mesmo habituadas à quentura, o começo de semana não foi fácil nessas cidades. Com picos de temperatura na esteira de fenômenos climáticos extremos – tempestades, ciclones e ondas de calor no Sul e Sudeste do país —, o sinal amarelo havia sido ligado no Estado. 

Mudanças climáticas provocam inundações(Foto: Arquivo EBC)
Foto: Arquivo EBC Mudanças climáticas provocam inundações

Afinal, com um El Niño fora de controle e um quadro que vem se agravando progressivamente, as altas anotadas em localidades do interior pareciam confirmar a sensação (não apenas térmica): o planeta, de fato, está mais quente.

Em conversa com O POVO, especialistas e pesquisadores explicam por que a crise climática já começou, com seus efeitos se refletindo desigualmente pelo mundo e as nações ricas adiando compromissos para redução na emissão de gases poluentes.

 

 

Altas temperaturas

Doutor em Meteorologia pela USP, o físico Francisco Vasconcelos Júnior assegura que o Ceará, particularmente, “está passando por um evento de altas temperaturas”.

Segundo ele, que é pesquisador da Funceme, esse quadro, embora não se caracterize como uma “onda de calor porque não está tão bem configurada em termos de espaço”, apresenta qualidades distintas, potencializadas por traços da própria sazonalidade da região.

“Temos aqui baixa nebulosidade e não temos chuva nesse período (de setembro a dezembro), salvo em pontos específicos”, aponta Vasconcelos, acrescentando que o cenário que se desenhou localmente também se relaciona com outras variáveis, a exemplo de fenômenos de largo alcance.  

Maior temperatura registrada por estado na semana de 17 a 24 de setembro/2023

Passe o mouse ou clique nos estados para ver qual município foi o mais quente

“Isso também está muito associado ao El Niño”, explica, “que é uma condição de grande escala e tem liberado muita energia para a atmosfera”, ou seja, mostrando-se com chances de reeditar incidências severas com repercussões inesperadas, tais como as verificadas entre 2015 e 2016, anos de um El Niño furioso.

De acordo com o especialista, “não só aqui, mas em vários lugares as pessoas estão sofrendo com essas altas temperaturas” derivadas de combinações diversas.

Pedestre se protege com sombrinha contra a chuva(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Pedestre se protege com sombrinha contra a chuva

 “No Centro-Oeste, Sul e Sudeste”, continua, “estão sofrendo com uma onda de calor porque faz dias que ela está lá, impulsionada por essas condições especiais”.

Um desses casos se dá no Rio Grande do Sul, estado onde chuvas intensas e ciclones vêm causando estragos imensos, com mortes e milhares de desabrigados.

 

 

Onda de calor

Mas o que é essa onda de calor sobre a qual tanto se fala? Ainda conforme Vasconcelos, trata-se de um evento cujas máximas chegam “a um índice extremo, acima de um determinado limiar, e esse limiar depende de cada região e de seu microclima”.

“Essa onda tem que ter entre três e cinco dias para ter um evento contínuo ao longo do tempo, e não apenas aquela alta temperatura que depois baixa, dentro da normalidade. Esse evento está associado a baixa precipitação, baixa na umidade do ar e alta evaporação”, pontua o estudioso.

A esse conjunto de aspectos, parte deles prevista, parte não, soma-se o desarranjo provocado pela sistemática elevação das temperaturas no bojo do aquecimento global.

 

 

A crise climática chegou, diz especialista

Pesquisador da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Alexandre Costa alerta para aquecimento global e diz que consequências estão apenas começando a se revelar. O professor é um dos grandes especialistas no tema da mudança climática e avalia que eventos recentes sinalizam para um agravamento das condições planetárias.

Para ele, “podemos dizer que a crise climática chegou”, resultando em ondas de calor e formações mais intensas de configurações antes apenas sazonais etc.

Em entrevista ao O POVO, o pesquisador – doutor em Ciências Atmosféricas pela Universidade do Colorado (EUA) e pós-doutor por Yale (EUA) – considera que os efeitos do aquecimento global estão se manifestando “em alguns aspectos de forma até mais grave do que os prognósticos da comunidade científica”.

“Enfrentá-la precisa, portanto, estar no topo da agenda da sociedade e do poder público. Trata-se da mais absoluta emergência”, aponta.

Alexandre Costa tem doutorado em Ciências Atmosféricas pela Universidade do Colorado (EUA) e pós-doutorado por Yale (EUA). É professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e um dos grandes especialistas no tema da mudança climática(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Alexandre Costa tem doutorado em Ciências Atmosféricas pela Universidade do Colorado (EUA) e pós-doutorado por Yale (EUA). É professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e um dos grandes especialistas no tema da mudança climática

O POVO – Até que ponto esses fenômenos climáticos mais recentes podem ser atribuídos a um aquecimento do planeta?

Alexandre Costa – Eventos como a onda de calor que se abateu sobre a América do Sul, assim como diversos fenômenos semelhantes em praticamente todos os continentes em 2023, têm relação direta com o aquecimento planetário causado pelas emissões de CO2 e demais gases de efeito estufa pelo uso de combustíveis fósseis, desmatamento, pecuária etc. As estimativas da Ciência do Clima são de que ondas de calor muito raras, originalmente com tempo de recorrência de 50 anos, estão quase cinco vezes mais frequentes, isto é, passaram a ocorrer em média pelo menos uma a cada década. Como 2023 deve se confirmar como o ano mais quente do registro histórico, havendo até mesmo a possibilidade de ser o ano mais quente em 120 mil anos, deve se confirmar a quebra de recordes de temperatura em várias regiões do mundo, acompanhando ondas de calor perigosas.

OP – Quais efeitos, além do aumento de temperatura, resultam da mudança no clima?

Alexandre Costa – O aquecimento do planeta, além de produzir extremos de temperatura, altera o comportamento do ciclo hidrológico. Uma atmosfera mais quente produz taxas de evaporação maiores, o que agrava e prolonga as secas. Por outro lado, contendo mais vapor d'água, a atmosfera passa a ter mais "matéria-prima" para produzir eventos severos de precipitação. Então o resultado são chuvas mais concentradas e mais intensas e tempestades como ciclones tropicais (furacões e tufões) e ciclones extratropicais mais perigosas. O risco de incêndios florestais também aumenta, aparecem desequilíbrios em ecossistemas nos continentes e oceanos e há impactos nas regiões costeiras associadas à elevação do nível do mar.

Tentativa de se proteger do sol em dias de calor extra na Praça do Ferreira, em Fortaleza(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Tentativa de se proteger do sol em dias de calor extra na Praça do Ferreira, em Fortaleza

OP – Que faixas da sociedade acabam sofrendo mais com a alteração drástica do clima?

Alexandre Costa – Os impactos do caos climático se distribuem de maneira inteiramente desigual. Países do Sul global, as populações periféricas do campo e da cidade e os mais pobres, setores nos quais se sobrepõem as diferenças de gênero e etnia, sofrem mais, sentem mais as consequências. Estamos nos referindo aqui a trabalhadores e trabalhadoras que realizam suas tarefas expostos/as ao calor extremo, a populações que foram forçadas a ocupar áreas de risco e segmentos ligados à agricultura de pequeno porte aos quais não são oferecidas alternativas de adaptação.

Ao lembrarmos que o 1% mais rico do mundo responde pela mesma quantidade de emissões de CO2 que os 50% mais pobres, vemos o tamanho da injustiça. Não esqueçamos também da injustiça geracional, pois são as crianças e jovens de hoje e as gerações futuras que arcarão com a maior parte do ônus deixado pelo desenvolvimento desenfreado e predatório do capitalismo desde a revolução industrial até os dias atuais.

"O Brasil precisa chegar rapidamente ao desmatamento zero e assegurar a recuperação de seus biomas, para além da Amazônia"

 

OP – Como a onda de calor e outros fenômenos do tipo podem alterar o ecossistema no Ceará?

Alexandre Costa – Ondas de calor e outros processos associados à mudança do clima podem deixar marcas irreversíveis em nosso ambiente local. A caatinga é particularmente vulnerável, pois determinadas regiões do estado podem, a depender do cenário futuro, passar de semiáridas a áridas, algo que se agrava também por processos locais como queimadas, desmatamento, erosão associada a atividade mineradora etc. Mas não é só a caatinga. Os refúgios de floresta nas serras também podem ficar comprometidos e o ambiente litorâneo, destacando-se os manguezais, com a tendência de aceleração da elevação do nível do mar nas próximas décadas também pode sofrer dificuldades de adaptação.

Em resumo, podemos dizer que a crise climática chegou, está aí, em alguns aspectos antes e de forma mais grave do que os prognósticos da comunidade científica. Enfrentá-la precisa, portanto, estar no topo da agenda da sociedade e do poder público. Trata-se da mais absoluta emergência.

OP – O senhor integrou a equipe de transição do governo Lula. Como avalia o papel que o Brasil tem no enfrentamento da crise climática?

Alexandre Costa – O Brasil tem um papel central no enfrentamento da emergência climática. Em primeiro lugar, pela responsabilidade de ser um grande emissor histórico, principalmente em função das emissões associadas ao desmatamento. Só a Floresta Amazônica, além da sociobiodiversidade e de suas águas, contém um estoque de carbono na vegetação e solo que, se convertido em CO2, equivaleria a dez anos de emissões globais. Ou seja, a troca de governo foi fundamental para evitarmos um "game over" climático.

O Brasil já corrigiu a "pedalada climática" nas metas de emissões e reativou os mecanismos de monitoramento do desmatamento, dentre várias outras medidas já nos primeiros meses de governo. Deste ponto, o Brasil precisa chegar rapidamente ao desmatamento zero e assegurar a recuperação de seus biomas, para além da Amazônia. Isso requer uma reconfiguração da produção agropecuária orientada para a agroecologia e a agricultura familiar, ao invés da produção de grãos para exportação e pecuária de grande escala.

Além disso, o Brasil, pelo potencial de aproveitamento de energias renováveis, pode dar passos largos e rápidos na descarbonização das fontes de energia, o que vai para além da eletricidade e inclui indústria, transporte e outros setores, apontando claramente para o fim do uso de combustíveis fósseis, ou seja, petróleo, gás e carvão.

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