Se os alienígenas chegassem hoje ao planeta Terra, eles com certeza concluiriam que as cidades são os habitats humanos. Ao usar essa analogia meramente figurativa, o ecólogo e ornitólogo Ian MacGregor-Fors confessou de imediato que todos os jornalistas a adoravam.
É verdade: a imagem é deliciosamente divertida e prepara bem o terreno para aqueles que ainda torcem o nariz com o fato de que seres humanos são, sim, animais e parte de um ecossistema.
Afinal, mais da metade da população humana vive em cidades. E mesmo que as urbes ocupem apenas 3% a 6% do território terrestre, o impacto delas nos outros noventa e tantos por cento é avassalador — isso sem considerar a fronteira agrícola, ocupando entre 40% e 50% do globo.
Também vivem nas cidades fauna e flora diversa, influenciadas a todo momento pelo que lançamos no mundo. O POVO+ já contou a história do trevo-branco, uma pequenina flor que evoluiu para viver em cidades, um bom exemplo da “panela de pressão” que os centros urbanos podem ser para a vida.
Em uma entrevista de uma hora, comigo arrastando um espanhol empoeirado ao lado do jornalista, ecólogo e colunista do OP+ Fábio Angeoletto, o ecólogo mexicano Ian MacGregor-Fors, professor de Biodiversidades Urbana e Ecossistemas na Universidade de Helsinque (Finlândia), fala sobre ecologia urbana e as perguntas que a humanidade deveria fazer para realmente proteger a natureza.
O POVO - Por que começamos a pensar que era importante estudar as cidades como um ecossistema?
Ian MacGregor-Fors - É preciso contextualizar o que é ecologia porque ela é uma palavra que usamos muito, mas a entendemos muito pouco. Os estudos focados nos seres vivos e nas relações entre eles mesmos com componentes abióticos ecossistêmicos, que é a ecologia propriamente dita, existem nas cidades desde o século XIX. Existe uma série de trabalhos muito interessante sobre, se eu não me engano, líquens e musgos em algumas cidades europeias onde se começava a ver que eles explicavam algumas das formas que vivíamos, ou alguns dos efeitos que a vida urbana têm (nesses organismos).
As cidades começaram a se converter em um foco de atenção depois de várias coisas. A primeira é que depois de algumas guerras vimos que a biodiversidade urbana se recuperava, né? Depois de eventos tão, tão catastróficos. E todas as pessoas começaram a se perguntar: “Ei, mas por que essas plantas estão crescendo tão rápido nas cidades depois de um evento como esse? Por que são diferentes das que estão fora?”
Eu sempre digo, as cidades são como uma panela de pressão ambiental. Tem tantas forças, tanto ruído, contaminação, gente… e todas essas forças começam a agir como uma panela de pressão, fazendo com que seja uma das razões pelas quais a ecologia urbana é tão importante, no sentido de compreender todas as pressões antropogênicas sobre a vida que consegue habitar as cidades.
A ONU teve alguns eventos chamados de
O mais importante é que antes se pensava que a biodiversidade não vivia nas cidades. E logo começamos a perceber que isso não era verdade, ao ponto de que publicamos um trabalho em 2013 no caso das aves, o grupo que tenho mais exemplos porque sou ornitólogo, no qual registramos que um quarto (25%) da avifauna mundial estava em cidades. Foi um abrir de olhos.
Por outro lado, uma série de colegas publicaram um artigo, acho que o primeiro foi em 1997, demonstrando que as maiores causas pelas quais as espécies estão em perigo de extinção ou em alguma lista vermelha é a urbanização. E isso também foi uma das razões pelas quais veio o boom desse estudo das cidades do ponto de vista ecológico.
O POVO - E por serem ambientes com seres humanos, os ecólogos urbanos tiveram que emprestar metodologias da sociologia também, por exemplo?
Ian - Essa pergunta é muito interessante porque a ecologia urbana geralmente se pensa em quatro paradigmas.
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Basicamente é fazer ecologia usando a zona urbana como uma área de estudo. Você pode estudar como a qualidade do ar afeta aves urbanas, mas você poderia fazer o mesmo em um bosque. A diferença é que a zona urbana é seu interesse.
Aqui é entender a ecologia de toda a cidade, então aí vem um componente muito interessante que é: não somente temos que estudar cidades completas, como também precisamos estudar cidades do ponto de vista da biologia, da sociologia e dos ambientes físicos. É o momento em que precisamos incorporar mais conhecimento, certo?
Por exemplo, agora estamos começando a ver qual a relação entre uma estrutura tridimensional da urbanização com a biodiversidade. Porque não é a mesma coisa. O Brasil e o México têm muitas cidades horizontais e muitas cidades verticais, mas as cidades que são verticais tendem a ter mais áreas verdes, porque liberam área. Então, como isso se relaciona? Antes não contemplávamos muito sobre essa parte física, assim como não o fazíamos com a parte social.
Dentro disso entram os estudos urbanos, que não necessariamente são ecologia urbana. Hoje em dia, os ecólogos fazem muito mais sociologia, e os sociólogos muito mais ecologia. Acredito que chegamos à multidisciplinaridade e estamos transicionando para a transdisciplinaridade.
A ecologia para a cidade é utilizar todo o conhecimento para poder fazer com as que cidades sejam mais habitáveis, mais amigáveis, mais saudáveis. Nós dizemos mais biodiversas, mas as pessoas que não se importam com a biologia não falam essa parte (risos).
Esse é trabalhar com a cidade e com os tomadores de decisão humanos, mas também com os atores não humanos, para começar a incluir toda essa biodiversidade que está dentro das cidades. Poder fazer espaços que sejam amigáveis com o meio ambiente, mas sobretudo habitáveis, né?
Porque uma das coisas que geralmente nos perguntamos é: “Bom, mas as cidades estão construídas para as pessoas, não para a biodiversidade”. E é claro, porque elas são nosso habitat.
Eu sempre digo algo que os jornalistas adoram: se os alienígenas chegassem agora e estudassem nossa espécie, eles diriam que nosso habitat são as zonas urbanas, certo? As Nações Unidas publicaram um estudo que pela primeira vez não diferencia zona urbana de zona rural. E eles viram que, em conjunto, as cidades e os povoados são onde 80% da população vive atualmente. É basicamente nosso habitat, né?
Então, se é o habitat que criamos para nós mesmos, a pergunta é: Como queremos que ele seja? Porque hoje em dia nossas cidades seguem dinâmicas econômicas globalizadas, mas é isso que queremos? Eu acredito que essa é uma pergunta que está sendo feita em vários locais.
O POVO - Em um estudo da Universidade Federal de Rondonópolis (UFR), nós encontramos que mais ou menos 30% da Avifauna do Cerrado, cerca de 240 espécies, ocorre em um parque urbano no centro de Rondonópolis, Mato Grosso. Por um lado, isso nos anima, mas ao mesmo tempo existe um conceito de armadilhas ecológicas - animais silvestres são atraídos para as cidades mas encontram habitats de baixa qualidade, poluídos e com outros problemas. E aí acaba que não alcançamos o objetivo de conservação. Como proporcionar bons habitats para a fauna na cidade?
Ian - Acabamos de entrar em um dos temas mais complicados, porque atualmente há muitas escolas de pensamento e não há uma resposta única. A palestra que eu acabei de dar na Colômbia se chamava “Mitos urbanos”. Um deles é se existe biodiversidade em zonas urbanas. Isso não é um mito, sabemos que é verdade. Outro é: estamos fazendo conservação urbana?
Há pouquíssima discussão sobre conservação em zonas urbanas. Por quê? É lógico, se mais da metade das pessoas vivem em áreas urbanas, então é aqui que nós estamos (e a natureza está fora). Mas, para mim, a conservação tem que ser muito mais integralizada.
As zonas urbanas ocupam entre 3% e 6% da superfície terrestre. Mas lembram que eu disse que elas são a causa principal da ameaça das espécies? Como isso é possível? Porque o metabolismo das cidades é o que está transformando absolutamente todo o planeta, incluindo os sistemas aquáticos. A maior parte dos bosques desmatados acabam nas cidades, a maior parte dos recursos plantados e colhidos alimentam as cidades. Um trabalho publicado na revista científica Science, em 2016, estimou que a área de influência de uma cidade é 200 vezes o seu tamanho.
"E de repente o tamanho do efeito das cidades não é mais tão pequeno, né?"
Nos perguntamos como espécie, para que serve um parque urbano? Para que queremos uma área verde em uma cidade? Ah, queremos que as pessoas se divirtam, façam exercícios, a queremos para captação de água pluviais… Acho que é muito importante que tenhamos isso claro, e nós não temos. Se um espaço está aí para que a gente se divirta, então dificilmente será uma área de conservação.
Agora, se temos uma área externa, então quem sabe podemos setorizá-la e decidir onde as pessoas podem se exercitar e dançar e onde vai ser área de conservação.
Suponhamos que temos um tucano em uma área verde e todos estão felizes porque é muito bonito. A pergunta é: em que condições está esse tucano?
Ele está fisiologicamente bem, se alimentando corretamente… O parque está o ajudando ou ele só vem porque não encontrou habitats adequados e então usou o parque como uma zona de refúgio?
Pode ser uma área na qual o animal pensa que vai ficar bem e na verdade não vai, certo? E mesmo que esteja bem, qual é o estado de sua população? Então podem existir muitos cenários. Isso não quer dizer que as áreas verdes sejam ruins, simplesmente quer dizer que precisamos pensar mais sobre o que queremos, para que queremos, se queremos ter áreas verdes pelo desfrute humano e fazemos conservação apenas fora das cidades.
O POVO - Então é possível falar de ecossistema urbano?
Ian - Quando falamos de ecossistemas geralmente usamos essa palavra, novamente, de uma maneira muito desleixada. Um ecossistema é uma área onde há um fluxo de energia. A pergunta é onde colocamos limite no fluxo de energia para determinar um ecossistema. Há um acordo entre os biólogos ecólogos de que as bacias hidrográficas são a unidade administrável de um ecossistema.
Quando pensamos no ecossistema urbano, a questão é que estamos aqui gerando energia e essa energia não para na divisa da cidade. Então há pessoas, como eu, que acreditam que o ecossistema urbano, ou o ecossistema no qual a cidade está inserida, é a área de influência direta da cidade.
Então, o ecossistema urbano certamente pode ter componentes urbanos e não urbanos, tanto dentro, quanto fora da cidade. Eu acredito que cidades são sistemas ecológicos naturais. A questão é colocar o limite entre o natural e o artificial.
Acredito que podemos considerar cidades como sistemas ecológicos, mas se são ecossistemas, aí é uma questão de terminologia técnica.