Steve Austin era o astronauta do momento nos anos 1970. Nada de Neil Armstrong ou qualquer tripulante das operações Apollo: nenhum deles era o Homem de seis milhões de dólares. Interpretado por Lee Majors na série lançada em 1974, o astronauta Steve Austin conquistou o mundo após receber um olho, um braço direito e duas pernas biônicas, em decorrência de um acidente de avião.
Das várias crianças e adolescentes cativados pelo potencial de Steve, estava o cearense Francisco Oliveira, que viria a ser doutor em Computação e trabalhar na área de Interação Humana e Computador (IHC), focando especificamente em pessoas com deficiência.
Foi inspirado nas infinitas possibilidades apresentadas pela ficção científica que o pesquisador desafiou: e se uma pessoa que usa cadeira de rodas pudesse ficar levantada para trabalhar?
Assim surgiu o exoesqueleto Steve, no Centro de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação da Dell (Lead), localizado na Universidade Estadual do Ceará (Uece) em parceria com a Dell. O objetivo do Lead é estimular a inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho.
Enquanto Steve perdeu os membros testando um avião, no Ceará são as motos que protagonizam boa parte dos acidentes de trânsito: depois dos homicídios, é no trânsito em que mais morrem cearenses, principalmente homens entre 20 e 39 anos. Entre os sobreviventes, sobram casos com amputação ou paraplegia.
Um dos prejuízos é a reinserção no mercado de trabalho, diz o professor Francisco, cientista-chefe do Lead. “No Brasil a gente tem a Lei de Cotas que obriga as empresas a contratar pessoas com deficiência, mas normalmente elas são contratadas para fazer serviços com uma remuneração inferior, como empacotador. Sem nenhum demérito, mas posições melhor remuneradas sempre são mais distantes.”
Em uma visita à linha de produção da Dell, Francisco imaginou alguma maneira de cadeirantes poderem trabalhar naquele ambiente. Para isso, eles precisariam ficar em pé: “Perceba que tudo lá está montado para máxima produtividade, então você não pode entrar num espaço e simplesmente ‘arrumar um cantinho’. Eu tenho que colocar uma pessoa lá de forma que ela não quebre toda a lógica do negócio.”
A solução era construir uma cadeira de rodas que, com o aperto de um botão, ficasse na posição
Ocorre que manter uma pessoa com amputação das pernas ou com paraplegia na posição ereta é complicado. Com a restrição de movimentos, há perda de massa muscular e queda do metabolismo, o que dificulta o retorno de sangue venoso ao topo do corpo. Quem explica é o fisioterapeuta Fleury Junior, líder do time de Saúde do projeto Steve e presidente da Associação Brasileira de Fisioterapia Traumato-Ortopédica no Ceará.
“Quando você tem um paciente paraplégico, ele não consegue se manter numa postura ortostática por muito tempo porque esse sangue não retorna”, descreve o fisioterapeuta. Os principais sintomas são o inchaço nas pernas e quedas de pressão arterial, observados após 30 a 40 minutos na posição ereta.
Para o Steve realmente alcançar o seu objetivo, era necessário desenvolver alguma solução capaz de manter a pessoa em pé por horas. Em cinco anos de pesquisa e seis protótipos, foi possível alcançar resultados nunca antes mensurados: no mínimo, foram 90 minutos de pessoas em pé sem nenhum sintoma. Estudos já aceitos, mas ainda não publicados, demonstram que esse tempo pode ser triplicado.
Para isso, a equipe médica do projeto precisou que a engenharia desenvolvesse algum sistema de suporte circulatório. “Esse é o ponto central do projeto”, destaca Fleury.
O sistema foi encontrado nos pedais das máquinas de costura antigas, acionados pelas costureiras com os pés, subindo e descendo constantemente. “A engenharia desenvolveu uma solução focada nisso, onde a gente calcula o ângulo dessa movimentação, calcula quantos ciclos serão feitos por minuto, quantas repetições em cada ciclo…”
A partir disso, a circulação sanguínea é estimulada de acordo com a demanda de cada usuário. “Longe de dizer que o Steve é perfeito, mas ele coloca a gente em outro patamar dentro do processo de reabilitação porque ele me permite expor aquela pessoa mais tempo na posição ortostática com segurança, com controle do usuário. E se o usuário quiser descer, ele aperta o botão e desce. E se o sistema travar ele aperta o botão que solta lá a trava e ele desce no manual!”, orgulha-se.
Entregue com o “lacinho da Anvisa”, como o professor Francisco refere-se à homologação do exoesqueleto pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o Steve já foi testado no cotidiano das fábricas da Dell. A patente é da empresa de computadores e cabe a ela decidir se quer e/ou irá comercializar o Steve para ser implementado em outros locais.
Mesmo assim, o conhecimento adquirido no desenvolvimento do exoesqueleto é do mundo. “Estamos sendo procurados inclusive por órgãos no exterior. (O Steve) pertence à Dell, mas eles querem entender como construir. Então perceba como o reconhecimento é uma coisa belíssima, né? Quanto mais você compartilha conhecimento, melhor para você”, comenta Francisco.
“A ciência faz parte do Steve”, reforça Fleury. “O processo foi até a última etapa (certificação da Anvisa) porque a gente conduziu com seriedade, com ensaio clínico. Porque a gente conduziu mostrando dados baseado em ciência, não foi uma construção empírica, foi uma construção baseada em ciência, testada com ciência, validada por ciência.”
Dela, o Steve demonstrou ser muito mais do que um suporte para trabalhadores; ele abriu novas possibilidades para a reabilitação de qualquer pessoa que usa cadeira de rodas. Durante os testes, os pesquisadores do Lead constataram a melhoria na saúde dos participantes.
“Eu gosto de pensar assim: o Steve não é a ferramenta perfeita, mas ele é a primeira que mostra que é possível”, diz o fisioterapeuta. “Talvez outras pessoas em outros lugares do mundo tenham condições de construir uma ferramenta a partir da ideia do Steve com capacidades ainda maiores. E o meu desejo pessoal, o meu sonho é que cada unidade de reabilitação pública de grande porte desse País tivesse um Steve para tratar seus pacientes neurológicos”, compartilha.
O Steve, portanto, também é feito de sonhos. E de esperança, comentam os pesquisadores. Ambos lembraram das reações de quem testava o Steve e, pela primeira vez após anos, viam-se eretos, olho no olho com as outras pessoas.
Entre falas emocionadas e choros, assim descreveu-se o exoesqueleto: sonho, futuro e esperança. Isso é ciência.
Em 2021, Steve recebeu o prêmio Power of the Profession Awards, da Gartner, empresa de consultoria em tecnologia, sediada nos Estados Unidos.