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Mulheres na ciência: competência, baixa remuneração e assédio
Reportagem Seriada

Mulheres na ciência: competência, baixa remuneração e assédio

Maternidade, baixa remuneração, assédios e ausência de políticas públicas impedem as mulheres de avançarem nas carreiras científicas e ocuparem cargos hierárquicos mais relevantes e visíveis pela sociedade
Episódio 1

Mulheres na ciência: competência, baixa remuneração e assédio

Maternidade, baixa remuneração, assédios e ausência de políticas públicas impedem as mulheres de avançarem nas carreiras científicas e ocuparem cargos hierárquicos mais relevantes e visíveis pela sociedade
Episódio 1
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"Esta série de reportagens é vencedora do 5ª do Prêmio Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES) de Jornalismo na categoria Nacional - Texto."

 

  

Todos utilizamos e nos beneficiamos, rotineiramente, de inovações científicas oriundas de pesquisadoras mulheres. O primeiro algoritmo a ser processado por uma máquina, por exemplo, foi criado pela matemática e escritora inglesa Ada Lovelace, no século XIX. Já a física e química polonesa Marie Curie descobriu os elementos químicos rádio e polônio, posteriormente, desenvolveu o raio-x em plena Primeira Guerra Mundial.

Marie Curie em um veículo móvel de raios X c. 1915 (Foto: Desconhecido - Eve Curie: Madame Curie. S. 329)
Foto: Desconhecido - Eve Curie: Madame Curie. S. 329 Marie Curie em um veículo móvel de raios X c. 1915

Elas são apenas dois exemplos da contribuição feminina para o desenvolvimento da humanidade. Também são exemplos de nomes de pesquisadoras mais costumeiramente lembrados, chegando a ser clichê... Onde estão as outras mulheres? Por quê não lembramos, imediatamente, de outras cientistas?

As respostas envolvem a desigualdade social de funções entre homens e mulheres e a misoginia nos ambientes acadêmicos. Maternidade, baixa remuneração, assédios e ausência de políticas públicas impedem-nas de avançar na carreira científica ― obrigando-as a escolher entre uma carreira e a família, ou forçando-as a desistir por agressões contínuas.

 

 

Elas são muitas, mas pouco reconhecidas

A lógica comum diria: poucas são lembradas porque poucas pesquisam. Isso não é verdade. No Brasil, por exemplo, as mulheres são maioria entre os titulados de mestrado e doutorado em todas as regiões do País, de acordo com o estudo Brasil: Mestres e Doutores 2019. Os dados analisados por eles foram coletados da Plataforma Sucupira, mantida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), em relação aos anos 1996 a 2017.

 

 

Ou seja, mulheres entram nas universidades e resistem na carreira acadêmica. Entretanto, é verdade que avançar na profissão é dificultoso. “No Brasil, a proporção de mulheres entre os doutores é menor do que entre os mestres, com exceção da região Nordeste, onde ocorre o inverso”, aponta a pesquisa. Mas logo mais falaremos sobre a dificuldade de seguir na carreira acadêmica.

Antes, vamos discutir um dos empecilhos de base: as áreas de conhecimento escolhidas pelas mulheres.

Desde 1996, elas têm expandido a participação nas grandes áreas de conhecimento. Naquele ano, por exemplo, apenas 42,2% dos doutorados em Saúde eram femininos. Em 2017, a proporção subiu para 66,7%. Considerando todas as áreas do conhecimento, o crescimento foi de seis a dez pontos percentuais de participação feminina.

 

 

Mas enquanto Engenharias, Ciências Agrárias e Ciências da Saúde viram o contingente feminino crescer, a grande área das Ciências Exatas e da Terra tiveram a participação delas reduzida.

E as razões são sociais. Socialmente, as mulheres têm obtido menos resistência nas Ciências Humanas, o que justifica a pouca variação entre as mestres da área: 60,7% para 61,6% entre 1996 e 2017. Por outro lado, elas também são colocadas no papel de cuidadoras, podendo explicar o crescimento da Saúde.

O que elas nunca foram vistas socialmente é como aptas para áreas de exatas e engenharias. Nesse caso, é positivo ver a adesão à Engenharia entre os anos, mas com proporções ainda muito abaixo da média nacional. Já as Exatas caem de dois a cinco pontos percentuais nas décadas analisadas.

Adriana Rolim, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas na Universidade de Fortaleza (Unifor), comenta como educamos as crianças, desde pequenas, a viverem com estereótipos de “coisas de menino” e “coisas de menina”. Matemática foi paulatinamente considerada como uma disciplina “de menino”.

Adriana Rolim, professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas.(Foto: Ares Soares/Unifor)
Foto: Ares Soares/Unifor Adriana Rolim, professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas.

“Ah, porque é difícil e a menina não vai acompanhar… Então tem muito de como a gente cria as nossas crianças para enfrentar e ver esse mundo”, pontua a também mestre e doutora em Farmacologia. Ela dá um exemplo de mudança durante os anos:

“Tem um estudo que é super interessante feito nos anos 50 e depois nessa última década, no qual pediram para crianças desenharem um cientista. E nos anos 50 a maioria desenhava um homem alto de jaleco. Já na última década, começaram a desenhar mais mulheres”, relembra.

 

 

Com a maternidade, elas são afastadas de cargos mais altos

Seguir carreira científica sendo mulher é difícil por causa da ausência de políticas públicas que garantam a permanência delas. Enquanto a proporção de mestres e doutoras é maior, elas começam a perder espaço em cargos hierárquicos mais altos, como bolsas de produtividade e professoras universitárias. Esses são justamente os cargos com mais visibilidade nas mídias.

As bolsas de produtividade são bolsas concorridas por pesquisadores de altíssimo nível: que publicam muitos artigos/livros, que orientam diversos pós-graduandos, que coordenam várias linhas de pesquisa e cujo trabalho científico tem ampla relevância. Elas representam o mais alto nível hierárquico de um pesquisador.

A professora Adriana Rolim, bolsista de produtividade do CNPq "Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico" , publicou uma pesquisa em 2019 analisando a presença feminina entre as bolsas da agência de fomento. De acordo com os dados levantados, apenas 35,9% (133) dos bolsistas de Produtividade em Pesquisa do CNPq no Ceará são mulheres. Em geral, o Estado possui apenas 379 desses bolsistas, correspondendo apenas a 2,54% do total nacional, que é de 14.872.

Novamente, a pesquisa pontua: “O menor número de bolsistas mulheres ou a sua completa ausência foi predominantemente nas áreas das Ciências Exatas e da Terra (Física, Matemática, Astronomia, Ciência da Computação), Engenharias, além de Medicina, Agronomia, Economia, dentre outras.”

 

"Exigem que a gente trabalhe como se não tivéssemos filhos e que cuidemos de nossos filhos como se não trabalhássemos." Normanda de Morais, professora de Psicologia da Unifor

 

Interessante destacar que esse estágio da carreira chega, em média, quando as pessoas têm por volta dos 30 anos. Claro, essa é uma afirmação difusa, mas consideremos um caso em que a graduação, o mestrado e o doutorado foram cursados um após o outro, sem atrasos. É nessa faixa etária que mulheres brancas "Para mulheres negras, a faixa etária cai para 15 a 19 anos." , casadas e com ensino médio completo e superior incompleto tendem a engravidar pela primeira vez.

Com a maternidade, conciliar os deveres domésticos ― socialmente impostos à figura feminina ― com a alta produtividade científica fica cada vez mais difícil. Elas ficam literalmente para trás, enquanto homens continuam produzindo com a mesma frequência. Assim, elas vão perdendo espaço na hierarquia e, consequentemente, perdem o reconhecimento.

Ester Sabino é uma das pesquisadoras brasileiras que sequenciaram o genoma do novo coronavírus(Foto: USP Imagens)
Foto: USP Imagens Ester Sabino é uma das pesquisadoras brasileiras que sequenciaram o genoma do novo coronavírus

"Exigem que a gente trabalhe como se não tivéssemos filhos e que cuidemos de nossos filhos como se não trabalhássemos. Esta é uma lógica extremamente perversa, que promove adoecimento e fragiliza a satisfação e saúde de muitas de nós mulheres cientistas", critica Normanda de Morais, professora e coordenadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Unifor e membro afiliada da Academia Brasileira de Ciências (ABC).

Também bolsista de produtividade pelo CNPq e mãe de João Gabriel, de 3 anos, Normanda destaca as políticas públicas que deveriam existir para garantir que as mulheres sigam avançando na carreira científica.

 


 

Baixa remuneração e assédio

Por outro lado, a maternidade está longe de ser o único ponto de inflexão da carreira de cientistas. O machismo ainda se reflete, por exemplo, na baixa remuneração de mulheres. E, sem surpresa, o impacto é muito maior nas áreas socialmente tidas como “masculinas”.

Entre os mestres, a remuneração nas Ciências Agrárias é 28% menor para mulheres em comparação aos homens; nas Engenharias, 26% menor; e nas Ciências Sociais Aplicadas, 27%. No doutorado, a diferença cai, mas segue longe da equidade: -19%, -15% e -20%, respectivamente.

 

 

De acordo com a pesquisa do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), essas são as três áreas com as mais elevadas remunerações médias nacionais entre mestres e doutores. Já as duas grandes áreas com menor diferença de “remuneração entre homens e mulheres – Linguística, letras e artes e Ciências humanas – estão entre as grandes áreas que apresentaram as mais baixas remunerações mensais médias” desses titulados.

Além de mal remuneradas, elas ainda lidam com o assédio moral, afetivo e sexual por parte de professores orientadores, coordenadores e chefes de departamento. “Há o assédio de teor sexual, mas há também o assédio que questiona e põe em cheque a real competência dessas mulheres como pesquisadoras”, frisa Normanda.

 

 

Denúncias de abuso sexual dentro das universidades e até mesmo de escolas são constantes. Em junho de 2020, por exemplo, pelo menos 11 professores, coordenadores e estagiários foram demitidos em Fortaleza após denúncias de assédios a adolescentes, vazamento de fotos e vídeos íntimos e até casos de estupro relatados por meio da hashtag #ExposedFortal.

Já nas universidades, diversos casos de professores denunciados por assédio sexual e importunação, assim como comentários de cunho sexual e violentos. Também em 2020, o professor de Medicina Samir Samaan Filho, da Faculdade de Medicina Estácio de Sá de Juazeiro do Norte, disse em aula virtual: “Bora para acabar logo, né? É aquela coisa assim: se o estupro é inevitável, relaxa e goza. Para acabar logo e ficar livre logo disso daí.

Esses são apenas dois casos amplamente veiculados, mas é certo que muitos outros ocorreram sem denúncias das vítimas, ou sem denúncias levadas em consideração pelas instituições. “Quantas meninas e mulheres talentosas e dedicadas já não ficaram para trás e até tiveram que desistir de seus sonhos, porque não encontraram o apoio necessário para seguir?”, questiona a pesquisadora Normanda.

E quantas das cientistas conhecidas por você têm histórias parecidas com essas?


  • Edição Fátima Sudário
  • Texto e recursos digitais Catalina Leite
  • Identidade visual Isac Bernardo
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Mulheres na Ciência

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