"Esta série de reportagens é vencedora do 5ª do Prêmio Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES) de Jornalismo na categoria Nacional - Texto."
Todos utilizamos e nos beneficiamos, rotineiramente, de inovações científicas oriundas de pesquisadoras mulheres. O primeiro algoritmo a ser processado por uma máquina, por exemplo, foi criado pela matemática e escritora inglesa Ada Lovelace, no século XIX. Já a física e química polonesa Marie Curie descobriu os elementos químicos rádio e polônio, posteriormente, desenvolveu o raio-x em plena Primeira Guerra Mundial.
Elas são apenas dois exemplos da contribuição feminina para o desenvolvimento da humanidade. Também são exemplos de nomes de pesquisadoras mais costumeiramente lembrados, chegando a ser clichê... Onde estão as outras mulheres? Por quê não lembramos, imediatamente, de outras cientistas?
As respostas envolvem a desigualdade social de funções entre homens e mulheres e a misoginia nos ambientes acadêmicos. Maternidade, baixa remuneração, assédios e ausência de políticas públicas impedem-nas de avançar na carreira científica ― obrigando-as a escolher entre uma carreira e a família, ou forçando-as a desistir por agressões contínuas.
A lógica comum diria: poucas são lembradas porque poucas pesquisam. Isso não é verdade. No Brasil, por exemplo, as mulheres são maioria entre os titulados de mestrado e doutorado em todas as regiões do País, de acordo com o estudo Brasil: Mestres e Doutores 2019. Os dados analisados por eles foram coletados da Plataforma Sucupira, mantida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), em relação aos anos 1996 a 2017.
Ou seja, mulheres entram nas universidades e resistem na carreira acadêmica. Entretanto, é verdade que avançar na profissão é dificultoso. “No Brasil, a proporção de mulheres entre os doutores é menor do que entre os mestres, com exceção da região Nordeste, onde ocorre o inverso”, aponta a pesquisa. Mas logo mais falaremos sobre a dificuldade de seguir na carreira acadêmica.
Antes, vamos discutir um dos empecilhos de base: as áreas de conhecimento escolhidas pelas mulheres.
Desde 1996, elas têm expandido a participação nas grandes áreas de conhecimento. Naquele ano, por exemplo, apenas 42,2% dos doutorados em Saúde eram femininos. Em 2017, a proporção subiu para 66,7%. Considerando todas as áreas do conhecimento, o crescimento foi de seis a dez pontos percentuais de participação feminina.
Mas enquanto Engenharias, Ciências Agrárias e Ciências da Saúde viram o contingente feminino crescer, a grande área das Ciências Exatas e da Terra tiveram a participação delas reduzida.
E as razões são sociais. Socialmente, as mulheres têm obtido menos resistência nas Ciências Humanas, o que justifica a pouca variação entre as mestres da área: 60,7% para 61,6% entre 1996 e 2017. Por outro lado, elas também são colocadas no papel de cuidadoras, podendo explicar o crescimento da Saúde.
O que elas nunca foram vistas socialmente é como aptas para áreas de exatas e engenharias. Nesse caso, é positivo ver a adesão à Engenharia entre os anos, mas com proporções ainda muito abaixo da média nacional. Já as Exatas caem de dois a cinco pontos percentuais nas décadas analisadas.
Adriana Rolim, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas na Universidade de Fortaleza (Unifor), comenta como educamos as crianças, desde pequenas, a viverem com estereótipos de “coisas de menino” e “coisas de menina”. Matemática foi paulatinamente considerada como uma disciplina “de menino”.
“Ah, porque é difícil e a menina não vai acompanhar… Então tem muito de como a gente cria as nossas crianças para enfrentar e ver esse mundo”, pontua a também mestre e doutora em Farmacologia. Ela dá um exemplo de mudança durante os anos:
“Tem um estudo que é super interessante feito nos anos 50 e depois nessa última década, no qual pediram para crianças desenharem um cientista. E nos anos 50 a maioria desenhava um homem alto de jaleco. Já na última década, começaram a desenhar mais mulheres”, relembra.
Seguir carreira científica sendo mulher é difícil por causa da ausência de políticas públicas que garantam a permanência delas. Enquanto a proporção de mestres e doutoras é maior, elas começam a perder espaço em cargos hierárquicos mais altos, como bolsas de produtividade e professoras universitárias. Esses são justamente os cargos com mais visibilidade nas mídias.
As bolsas de produtividade são bolsas concorridas por pesquisadores de altíssimo nível: que publicam muitos artigos/livros, que orientam diversos pós-graduandos, que coordenam várias linhas de pesquisa e cujo trabalho científico tem ampla relevância. Elas representam o mais alto nível hierárquico de um pesquisador.
A professora Adriana Rolim, bolsista de produtividade do
Novamente, a pesquisa pontua: “O menor número de bolsistas mulheres ou a sua completa ausência foi predominantemente nas áreas das Ciências Exatas e da Terra (Física, Matemática, Astronomia, Ciência da Computação), Engenharias, além de Medicina, Agronomia, Economia, dentre outras.”
"Exigem que a gente trabalhe como se não tivéssemos filhos e que cuidemos de nossos filhos como se não trabalhássemos."
Interessante destacar que esse estágio da carreira chega, em média, quando as pessoas têm por volta dos 30 anos. Claro, essa é uma afirmação difusa, mas consideremos um caso em que a graduação, o mestrado e o doutorado foram cursados um após o outro, sem atrasos. É nessa faixa etária que
Com a maternidade, conciliar os deveres domésticos ― socialmente impostos à figura feminina ― com a alta produtividade científica fica cada vez mais difícil. Elas ficam literalmente para trás, enquanto homens continuam produzindo com a mesma frequência. Assim, elas vão perdendo espaço na hierarquia e, consequentemente, perdem o reconhecimento.
"Exigem que a gente trabalhe como se não tivéssemos filhos e que cuidemos de nossos filhos como se não trabalhássemos. Esta é uma lógica extremamente perversa, que promove adoecimento e fragiliza a satisfação e saúde de muitas de nós mulheres cientistas", critica Normanda de Morais, professora e coordenadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Unifor e membro afiliada da Academia Brasileira de Ciências (ABC).
Também bolsista de produtividade pelo CNPq e mãe de João Gabriel, de 3 anos, Normanda destaca as políticas públicas que deveriam existir para garantir que as mulheres sigam avançando na carreira científica.
Por outro lado, a maternidade está longe de ser o único ponto de inflexão da carreira de cientistas. O machismo ainda se reflete, por exemplo, na baixa remuneração de mulheres. E, sem surpresa, o impacto é muito maior nas áreas socialmente tidas como “masculinas”.
Entre os mestres, a remuneração nas Ciências Agrárias é 28% menor para mulheres em comparação aos homens; nas Engenharias, 26% menor; e nas Ciências Sociais Aplicadas, 27%. No doutorado, a diferença cai, mas segue longe da equidade: -19%, -15% e -20%, respectivamente.
De acordo com a pesquisa do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), essas são as três áreas com as mais elevadas remunerações médias nacionais entre mestres e doutores. Já as duas grandes áreas com menor diferença de “remuneração entre homens e mulheres – Linguística, letras e artes e Ciências humanas – estão entre as grandes áreas que apresentaram as mais baixas remunerações mensais médias” desses titulados.
Além de mal remuneradas, elas ainda lidam com o assédio moral, afetivo e sexual por parte de professores orientadores, coordenadores e chefes de departamento. “Há o assédio de teor sexual, mas há também o assédio que questiona e põe em cheque a real competência dessas mulheres como pesquisadoras”, frisa Normanda.
Denúncias de abuso sexual dentro das universidades e até mesmo de escolas são constantes. Em junho de 2020, por exemplo, pelo menos 11 professores, coordenadores e estagiários foram demitidos em Fortaleza após denúncias de assédios a adolescentes, vazamento de fotos e vídeos íntimos e até casos de estupro relatados por meio da hashtag #ExposedFortal.
Já nas universidades, diversos casos de professores denunciados por assédio sexual e importunação, assim como comentários de cunho sexual e violentos. Também em 2020, o professor de Medicina Samir Samaan Filho, da Faculdade de Medicina Estácio de Sá de Juazeiro do Norte, disse em aula virtual: “Bora para acabar logo, né? É aquela coisa assim: se o estupro é inevitável, relaxa e goza. Para acabar logo e ficar livre logo disso daí.”
Esses são apenas dois casos amplamente veiculados, mas é certo que muitos outros ocorreram sem denúncias das vítimas, ou sem denúncias levadas em consideração pelas instituições. “Quantas meninas e mulheres talentosas e dedicadas já não ficaram para trás e até tiveram que desistir de seus sonhos, porque não encontraram o apoio necessário para seguir?”, questiona a pesquisadora Normanda.
E quantas das cientistas conhecidas por você têm histórias parecidas com essas?
Em série de reportagens, O POVO + investiga porque mulheres seguem invisibilizadas na Ciência