Em geral, sabemos explicar muito bem o mundo ao nosso redor. Objetos caindo e madeiras estalando pela ação do vento, luzes vacilando pelo impacto das chuvas ou do calor e vozes ecoadas no tumulto cotidiano. Quando a noite chega, no entanto, tudo vira mistério.
De repente, os objetos bambos desafiam as noções da física. Os sons que entendemos como passos arrepiam a pele. Os sussurros, falas e gritos nos arregalam os olhos e a luz ameaça apagar a qualquer momento. Por algum motivo, na madrugada as lógicas falham e resta o medo. Pior: talvez não estejamos sozinhos.
Todo mundo conhece alguém que viveu uma experiência sobrenatural. Espíritos incorporados, mulheres de preto e assombrações são tão cotidianas, quanto inexplicáveis — e são essas histórias que o média-metragem do O POVO+, Memórias do Medo, explora.
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Em princípio, o medo é motivo de orgulho. É um dos principais fatores que garantem a sobrevivência das espécies, ativando um conjunto de circuitos neuroquímicos relacionados a mecanismos de defesa. Curiosamente, o medo também é um condutor para conhecer o afeto ao sermos protegidos por nossos pais.
“O medo é substituído por essa sensação de segurança a depender dessas relações amorosas afetivas. Então a experimentação do medo deveria ser vista como uma conquista, mas muitas vezes quando esse sujeito não teve uma infância de proteção, de segurança, ele meio que tem essa experimentação ali desvirtuada e o medo vai dominando, né? Ele vai enveredando por esse lugar de maior inquietação”, comenta a psicanalista e neuropsicóloga Katiana da Costa Santiago.
Enquanto alguns medos são mais aceitos e reconhecidos pela sociedade — como medo de altura ou de acidentes de moto —, o temor ao sobrenatural às vezes é banalizado. “O sobrenatural é uma tentativa de justificar situações que muitas vezes não damos conta de definir. O fato de acreditar em coisas sobrenaturais dá uma sensação de que não estamos sós. De alguma forma, a condição de dar ao metafísico uma outra justificativa faz com que venhamos a nos omitir de pensar, de racionalizar.”
Junte isso à forte característica religiosa no Brasil e está pronta a amálgama de medos de fantasmas latentes e dificilmente superados. Inclusive, o sobrenatural pode virar uma arma na mão de pessoas mal intencionadas que usam preceitos religiosos para influenciar as pessoas, reflete Katiana.
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“Esse sobrenatural é uma construção ao longo da vida. Então, por exemplo, as religiões trazem uma certa organização moral e ética, desde que mundo é mundo, mas também influenciam na permanência desse medo. A gente tá em contato numa sustentação muitas vezes de charlatões, de pessoas mal intencionadas que usam o sobrenatural para atormentar mentes.”
Em alguns casos, o medo do sobrenatural pode virar patológico. O neuropsiquiatra Ricardo de Oliveira defende a aceitação clínica da fobia ao sobrenatural.
Para isso, ele publicou um artigo relatando vários casos nos quais o medo do além implicou em vidas contidas: um homem de 54 anos que casou-se com uma mulher que não amava e dispensou viagens de negócio apenas para evitar dormir sozinho. Uma mulher de 46 que dormia com os pais até ver-se morando sozinha e preferir passar as noites em claro em bares a dormir desacompanhada. Uma mulher de 63 que urinava na cama com frequência por medo de levantar à noite para ir ao banheiro. Os relatos seguem, sempre surpreendentes e preocupantes.
De acordo com Ricardo, a vergonha do medo do sobrenatural é um dos principais motivos para ele não ter sido considerado como fobia até o momento. Ninguém quer admitir que tem tanto medo de fantasmas a ponto de viver em limitação, mas muitos com certeza se reconhecem nessa posição. Quando o medo vira fobia? No momento em que ele influencia diretamente no bem estar geral do indivíduo.
"A fobia é muito incapacitante. Mas acho que basicamente as pessoas assumem ser algo normal, ou como uma característica da pessoa", comenta. A fobia ao sobrenatural pode ser tratada como qualquer outra, com psicoterapia e administração de benzodiazepínicos.
Ainda que todas as fobias tenham por característica ser um medo desmedido, é mais fácil entender alguém que tem medo de altura a entender quem teme o sobrenatural. Afinal, a possibilidade de acidentes fatais pela queda de vários andares é bem mais palpável do que a por assombrações.
No entanto, somos constantemente bombardeados por filmes e histórias de possessão, de bonecos assassinos, de mortes misteriosas… Tudo com uma boa dose de religiosidade e de um medo herdado historicamente. "Os fantasmas andam com a gente desde o início da nossa existência", pontua Ricardo.
"Eu não tenho medo porque eu sei que eles estão em todo lugar, a todo momento", ri o jornalista e colunista do OP+ Tarcísio Matos. Espírita, ele foi um dos que compartilhou histórias aterrorizantes no Memórias do Medo, ainda que com um grande sorriso no rosto, diferente dos outros personagens. A razão da tranquilidade é simples: o espírita sabe que almas existem e frequentam os mesmos espaços que nós, apenas em planos diferentes.
A consciência de que não estamos sozinhos pode ser assustadora para alguns, mas para os espíritas é tão natural quanto o nascer do sol. Como ter medo de uma verdade?
“Há uma diferença entre espiritualismo e espiritismo. O espiritualista acredita que há alguma coisa a mais além da matéria. O espírita sabe que tem e entende que há comunicação entre o mundo de lá e o lado de cá”, explica.
Ele lembra do pai, “desencarnado”, e com um sorriso afirma: “Papai está dentro da casa da minha mãe. Ainda demora-se um pouco em casa, sem ter o entendimento de que está no plano espiritual. Ele tenta falar conosco, a gente não vê, a gente não entende”, comenta.
Mas e os espíritos maus? Existem, ué. Carregando rancor e querendo “botar boneco” na vida dos outros, diz Tarcísio.
“Por exemplo, uma pessoa diz assim: ‘Rapaz, eu não vou entrar naquela casa, não, que eu tenho medo porque ela tem fantasma.’ Eu entro sem o menor medo, porque eu sei que eles estão lá. Para entrar lá não é com força física, é pensamento e oração. A melhor forma de você perder o medo é saber que eles existem, eles só estão invisíveis aos meus olhos, e que a melhor coisa para eles é acender luzes na escuridão, e essa luz se chama oração.”
No final das contas, a razão é a força motriz para contornar o medo. Para alguns, ela personifica-se no desacreditar, para outros é a confirmação da existência do sobrenatural.
Com isso em mente, que tal apagar as luzes do quarto e assistir ao Memórias do Medo, no O POVO+?