O Pantanal é uma joia americana cravada no meio do continente, possível por um conjunto de acasos geomorfológicos. É um terreno afundado sem nascentes, bebendo de águas fronteiriças e de rios flutuantes oriundos da Amazônia, responsáveis por alagar o bioma por anos a fio. Em fluxo natural, ele seca aos poucos, vazando por um pequeno gargalo, provocando enchentes e secas plurianuais antiquíssimas. Esse é o Pantanal que deveria ser comemorado nos dias 12 de novembro.
Mas em 2023, ele é um bioma desmatado e incendiado. Por trás do desmantelo ambiental, está o agronegócio. “O agronegócio é o poder aqui”, define a ecóloga Cátia Nunes da Cunha, vice-coordenadora do Laboratório Associado Biodiversidade e Manejo de Áreas Úmidas da Universidade Federal do Mato Grosso (Inau/UFMT). “Já quase não existem pessoas físicas [no bioma]”, alegoriza.
Faltando ainda dois meses para terminar o ano, 2023 já registra o maior número de área desmatada no Pantanal desde 2019. Foram 35.972 hectares (ha) desmatados entre janeiro e setembro, enquanto todo o ano de 2022 registrou a perda de 31.246 ha. A diferença é de 4.726 ha, o equivalente a 189 complexos da Arena Castelão (que tem 25 ha).
O pico do desmatamento neste ano ocorreu em abril, com 2.401,5 ha, mais que o triplo da média mensal dos anos de 2019 a 2022. O primeiro semestre deste ano também supera os números de desmatamento dos anos anteriores em outros biomas, como a Caatinga e o Cerrado.
O Pantanal brasileiro tem cerca de 150.355 km² distribuídos entre os estados do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul. Em 2023, cerca de 85% da área compreendida pelos alertas de desmatamento relacionados ao bioma estão localizados no MS (30,5 mil ha), principalmente nas cidades de Corumbá (17,8 mil ha) e Porto Murtinho (4,6 mil ha). No MT, a cidade com mais alertas de desmatamento é Santo Antônio de Leverger (1,6 mil ha).
De acordo com a ecóloga Cátia, existem três aspectos relacionados ao desmatamento no bioma. “Primeiro, o Pantanal é um bioma de terras baratas”, descreve a pesquisadora, comparando com o cerrado. Além disso, a região é fronteiriça à Bolívia e ao Paraguai, o que favorece planos de desenvolvimento de hidrovias e rodovias, facilitando o transporte. “Nos olhares de empresários, é uma área com muito potencial para o ganho. Muitos tradicionais têm vendido as suas terras porque não têm conseguido competir, manter as terras. Porque manter uma terra dentro do Pantanal é muito difícil”, diz.
O que leva ao segundo ponto: a complexidade do bioma. O Pantanal é caracterizado por um mosaico de paisagens, com campos abertos, espaços alagados e outros mais fechados. O manejo demanda mais esforço, e as matas secas são o principal destino para alocar gado.
Desde 1985, registra-se o avanço do agronegócio no bioma. Enquanto na época 5% do Pantanal estava voltado para a agropecuária, equivalente a 760.958 ha, em 2022 a taxa é de 15% (2.260.066 ha).
Como apresentado no gráfico acima, a expansão agropecuarista ocorre em conjunto com a redução de corpos d’água na região. Este é o terceiro fator: no Pantanal Norte, pontua a pesquisadora, o estilo de inundação é plurianual. Ele tem períodos de muita umidade, como ocorreu entre 1975 e 1990, seguido de vários anos mais secos — é o caso da atualidade. Essa seca facilitaria o desmatamento.
Na animação abaixo, veja a redução dos corpos d’água:
Nesse processo de cheia e seca, algumas espécies lenhosas nativas do Pantanal foram proliferando nos campos, a ponto de ter um impacto negativo na ecologia dos campos e na produção pecuária. Supostamente pensando na recuperação desses ecossistemas, o Governo do Mato Grosso sancionou o Decreto nº 785 de 18/1/2021, que autoriza a limpeza de campos, definida como “a prática de manejo de pastagens nativas e cultivadas, que visa ao controle de espécies colonizadoras indesejadas para a atividade de pecuária extensiva, reduzindo sua densidade a um nível que não interfira na produtividade, na função e nos processos do ecossistema das formações campestres da planície inundável do bioma Pantanal”.
“Só que na verdade não é restauração de campos, porque já tem muitas áreas florestadas neles. Eles simplesmente estão desmatando como se desmatou o Cerrado. Então em nome dessa restauração também se tem promovido esse tipo de desmatamento”, explica Cátia. Em julho de 2023, a Secretaria Extraordinária de Controle do Desmatamento e Ordenamento Ambiental Territorial, do Ministério de Meio Ambiente e Mudanças Climáticas (MMA), publicou uma nota técnica denunciando a situação tanto no MT, quanto no MS.
Na página oito do documento, a secretaria aponta: “Em concordância com a Nota da Abrampa, entende-se que a limpeza de pastagem, apesar de ser uma prática muito comum nas propriedades rurais dentro do bioma Pantanal, não se caracteriza com uma técnica de restauração das formações campestres naturais do bioma, [...] mas de controle de espécies invasoras arbustivas e arbóreas em áreas campestres no Pantanal.”
“Todavia, nem sempre a presença/avanço de espécies arbustivas nas áreas de campo indica invasão. Em muitas situações, esta condição faz parte da composição e dinâmica natural das pastagens, cuja própria recorrência está condicionada principalmente à intensidade e duração da inundação, que é fator de suma importância na manutenção dos campos sem a presença dessas espécies invasoras”, continuam. O órgão ainda pontua que as áreas definidas pelo decreto como passíveis de intervenção são “amplas” e “aparentemente aplicáveis à maior parte do Pantanal no Estado do Mato Grosso".
No gráfico, veja o avanço da agropecuária aliado à redução de áreas florestais (formação florestal e savânica) e ao crescimento das formações naturais não florestais (campos alagados, áreas pantanosas e formações campestres).
Além disso, a seca plurianual do momento é intensificada pelas mudanças climáticas e pela combinação de outros biomas desmatados, como o Cerrado e a Amazônia. “Há uma sinergia entre esses processos naturais, o que culminou na grande seca de 2019 e, em 2020, foi aquele incêndio catastrófico”, relembra a pesquisadora. Com isso, a matéria orgânica vira combustível para mais queimadas naturais e intencionais.
Apesar de não serem anormais incêndios provocados por raios nesses períodos, é preciso diferenciá-los dos fogos criminosos. “Em volta do Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense também está queimando, e não se sabe o quanto é fogo de raio, e o quanto tem interesses que unidades de conservação queimem”, indica.
“É uma inoperância do governo e dos órgãos ambientais que são responsáveis por essas unidades. Inclusive as unidades do estado (os parques estaduais do Guirá e do Encontro das Águas) não têm plano de manejo”, comenta. “É como se a gente não tivesse lei!”
Uma das unidades de conservação afetadas pelo fogo é o Parque Estadual Encontro das Águas, localizado no Mato Grosso e conhecido como o paraíso das onças-pintadas (Panthera onca). O parque concentra a maior população de onças-pintadas no mundo e representa bem o que o Pantanal representa para o mundo: ele ainda é um dos poucos biomas com grandes populações de espécies ameaçadas em outros locais, como as antas, araras-azuis e inúmeras plantas.
“(A queimada e o desmatamento) é uma perda para a região tropical, uma perda de riqueza, de turismo… Você tira todo o recurso dos animais”, lamenta Cátia. Segundo dados atualizados em 2022 na Plataforma Salve, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e do MMA, das 1.382 espécies analisadas, a maioria (93,7%) está classificada como menos preocupante em relação à extinção.
No entanto, o Pantanal segue abrigando 47 espécies ameaçadas. Dessas, o maçarico-esquimó (Numenius borealis) já está regionalmente extinto, enquanto outras 27 estão vulneráveis, 14 quase ameaçadas e 5 em perigo.
A despeito da mudança de pensamento do novo governo federal em relação ao meio ambiente, o impacto do desemparalhamento das instituições ambientais e de pesquisa pelo governo Bolsonaro segue prejudicando os estados.
“A responsabilidade no Mato Grosso, no caso, é do governo estadual, só que o governo estadual ainda é do antigo. Tem outra visão, o governador não está preocupado com a questão ambiental, até porque ele é empresário também, né? Então a questão ambiental, tanto para ele, como as direções dos órgãos ambientais, estão todas ligadas ao agronegócio. É uma luta inglória”, comenta Cátia.
Segundo ela, apenas uma mobilização nacional será capaz de instigar mudanças na proteção do bioma. Em 2020, exemplifica, os recursos para combate das queimadas vieram somente após divulgação da mídia internacional. Faltam planejamentos para mitigação e adaptações às mudanças climáticas, planos de manejo e de combate ao fogo, recursos para helicópteros e outras estruturas relacionadas ao combate de incêndios e desmatamento.
Ainda, é preciso investir em pesquisas para que o bioma tenha melhores indicadores de secas e inundações. “A região central do Brasil ainda não tem marcadores exatos para dizer quantos anos a seca vai durar. E clima é difícil de prever”, menciona a ecóloga.
Se apenas na década de 80 o El Niño e a La Niña passaram a ser compreendidos pela comunidade científica, os efeitos desses fenômenos climáticos no Pantanal ainda precisam ser melhor estudados. Afinal, como o bioma está no centro do continente, longe do litoral, e atrás da Cordilheira dos Andes, as secas tendem a se estender. Isso porque a localização do Pantanal em relação aos Andes causa uma “sombra das chuvas”, quando a formação de chuvas é prejudicada no local.
“Por muito tempo, a ciência esteve concentrada na região sudeste. Para você ter uma ideia, os rios voadores da Amazônia só foram conhecidos após o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, criado em 1988)”, relata. “Nós, pesquisadores do MT, fizemos um esforço muito grande para conseguirmos o Instituto Nacional de Pesquisa do Pantanal. Ele ficou 15 anos só com o prédio”, comenta. "Parece que agora vai começar a ser implementado, mas depende do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI)."
“Nós ficamos muito atrasados, e não sei como recuperar porque nós ficamos sem alunos de pós-graduação de qualidade. Então nós temos um buraco, porque até você formar tudo de novo… Eu não sei se eu vou ver essa geração nova na minha idade”, preocupa-se.
No entanto, a esperança persiste. Para a professora, o brasileiro precisa estar mais atento às belezas do próprio País e se engajar na luta pela preservação dos biomas. Parte desse movimento envolve a visitação do Pantanal, para conhecer o oásis alagado no meio do continente. “A maioria das pessoas que tomam decisões estão nos centros urbanos, em prédios, porque ainda têm o aspecto de repúdio ‘ao mato’. Nós precisamos olhar para o Pantanal de outra forma.”
Para este material foram utilizados dados de alertas de desmatamento em todo o Brasil, entre janeiro de 2019 e setembro de 2023, validados e disponibilizados pela plataforma MapBiomas Alerta. Utilizamos também dados relacionados ao uso e cobertura do solo no Pantanal brasileiro, mantidos pela MapBiomas Brasil, e dados de queimadas em unidades de conservação situadas no bioma, disponibilizados no histórico de cicatriz do fogo no Brasil e no Monitor do Fogo.
Para garantir a transparência e a reprodutibilidade desta e de outras reportagens guiadas por dados, O POVO mantém uma página no Github na qual periodicamente são publicados códigos, metodologias e bases de dados desenvolvidas.