A família Kerbage zarpou do Líbano no dia 20 de outubro de 1949. Nagib Girgis Kerbage e Jamile Hachem, a esposa 20 anos mais nova, carregavam consigo a filha de poucos meses de idade Marta
No passaporte do pai, Marta aponta para a fotografia dos três viajantes. Apesar de ter nascido no Líbano, ela completou o primeiro ano no Brasil e nunca mais voltou ao país natal. Obviamente, não recorda dos primeiros momentos em terras brasileiras; sabe, no entanto, que chegaram a Niterói (RJ) no dia 1º de janeiro de 1950. Nova década, nova vida.
Vieram por recomendação de familiares que já moravam por aqui, espalhados por toda a extensão territorial. “Dá até vontade de chorar”, diz a primogênita de seis filhos com a voz levemente engasgada, durante entrevista com ela e o irmão, Elias Kerbage, enquanto passeia pelas memórias documentadas que restaram; nenhum pertence familiar diretamente do Líbano resistiu à viagem, pois foram roubados na chegada ao Brasil.
Apenas com as roupas do corpo e decididos por mais oportunidades de vida, os libaneses pisaram no Ceará pensando em trabalhar com a agricultura, profissão do pai, mas encontraram o comércio — os famosos armarinhos e fazendas libaneses dominavam as praças e ruas cearenses. Ficaram na casa do tio, quem os convidou para Fortaleza, apesar de terem parentes em Belém (PA). Atualmente, os Kerbage também vivem no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Maranhão e no Rio Grande do Norte.
A família de Marta chegou ao Brasil em um tipo de segunda leva de imigração libanesa. A primeira ocorreu ainda no século XIX, por volta de 1880, quando os patrícios, ainda com passaportes turcos, desbravaram um Brasil cheio de oportunidades.
Anos antes, o imperador Dom Pedro II fez a primeira visita ao Líbano, deixando o Brasil de portas abertas para receber os migrantes. No final do século XIX, o País parecia promissor pela abolição da escravidão e pelo crescimento econômico por meio do café e, posteriormente, do ciclo da borracha; o estímulo para a migração era amplo, especialmente focado em trazer europeus.
Parecia uma boa oportunidade para os libaneses, especialmente os cristãos. Afinal, nessa época o Líbano estava dominado pelo Império Otomano, de fé islâmica e que perseguia cristãos. A socióloga cearense Zaíra Ary, neta de libaneses e autora do livro Libaneses no Ceará: um pequeno ensaio sobre os primórdios de uma imigração, relata na obra que parte da motivação da vinda de Demétrio Dibe ao Brasil (um dos primeiros libaneses a chegar ao Ceará) teria sido o assassinato de um dos irmãos, Antônio, por parte de um muçulmano. O irmão mais novo, Elias, desejava vingança pela morte, mas Demétrio impediu a tragédia ao convencê-lo a emigrar para a América.
Apesar disso, a perseguição religiosa não era o único motivo para a saída. A questão socioeconômica pesava e a militar também: o alistamento era obrigatório, e muitos não queriam lutar na Primeira Guerra Mundial em nome da nação dominadora. O historiador Ruben Maciel, professor no Instituto de Humanidades da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab - Redenção), reforça que podem existir muitas outras razões individuais para a migração de cada família, mas esses macro-fatores ajudam a contextualizar o processo.
O fato é que os libaneses que chegaram ao Brasil no século XIX realmente conseguiram alcançar o ganho de capital desejado, fundando firmas e subindo de classe social com algumas décadas de trabalho. “Os árabes vinham de forma mais espontânea para o Brasil (diferente dos europeus), na perspectiva da “terra da promissão”, até para repassar o acúmulo de capital para a família que ficava no Líbano”, comenta o pesquisador.
A segunda leva, a partir de 1920, veio estimulada pelos patrícios já estabelecidos e para quem trabalhariam. A maioria dos imigrantes do começo do século XX não chegou a enriquecer realmente — na verdade, muitos seguiram vivendo da venda diária.
Em Fortaleza, os libaneses eram maioria dos vendedores em tendas na antiga
Já o pai de Marta e Elias era camelô no Passeio Público: abria a loja todos os dias, mesmo aos sábados e domingos, acompanhado dos filhos. “Na época o Passeio Público era o point”, relembra Elias Kerbage, irmão do meio da família. “Papai vendia meia, roupas”, descreve. Quem comprava as mercadorias era a mãe, Jamile, em São Paulo.
“Ela era analfabeta. Aí o papai transferia o dinheiro para lá, preenchia os cheques e ela ia e pedia para assinarem. Tudo na confiança. A 25 de março, naquela época, era toda de libaneses. Hoje é dominada pelos asiáticos”, conta Elias.
O sonho de Nagib Girgis Kerbage era que os filhos virassem comerciantes, sem deixar de lado os estudos. Como boa parte dos libaneses, diz Elias, ele falava em parábolas e aproveitava-as para imprimir o peso da educação no indivíduo. Seguindo os ensinamentos do pai, a maioria dos Kerbage voltou-se para a saúde: na família, há dentistas, cardiologistas e médicos gerais; enquanto alguns outros escolheram as engenharias.
Segundo o historiador Ruben, este é também um padrão entre as segundas gerações de libaneses. Apesar de terem uma rede de comerciantes articulados em todo o interior, das quais muitas transformaram-se em firmas de varejo e atacado consolidadas — por exemplo, as Lojas Romcy e a Otoch Empreendimentos —, as novas gerações puderam entrar nas universidades e explorar trabalhos liberais. Muitos engenheiros, médicos, advogados e, especialmente, políticos.
Falar sobre o Ceará sem analisar a contribuição libanesa no Estado é contar a história pela metade. A presença da comunidade influenciou a construção do imaginário de um Ceará acolhedor, com tino para o comércio e como uma terra de oportunidades.
“Os galegos são uma parte que forja a identidade cearense. O Ceará como um eixo, um estado com extrema tradição e ímpeto laborioso da população, é construído historicamente pela presença dos libaneses”, comenta Ruben. A própria imagem de um Estado de cultura migratória, seja do interior para a Capital, seja da Capital para as regiões Sul e Norte, é influenciada pelos povos árabes. “Inclusive, esses migrantes cearenses da seca, por exemplo, são empregados por esses libaneses. O Ceará é uma terra de migrantes.”
Ao mesmo tempo, esse reconhecimento e valorização da contribuição do Líbano para com o Estado vem de um esforço ativo da comunidade de se mostrar unida e relevante. Os primeiros imigrantes libaneses lutaram para serem reconhecidos como do Líbano, e não como sírios e turcos.
Aliás, o termo “sírio-libanês” era desgostoso para os primeiros imigrantes, que já precisavam lidar com serem chamados de “turcos”. Eles entendiam que essas nomenclaturas apagavam a real identidade deles.
Concomitantemente, muitos sofreram com o estigma de serem comerciantes ambulantes. Apesar da imagem construída de libaneses ricos, a verdade é que a maioria dos imigrantes estava empobrecida. “A visão do cearense sobre esses imigrantes era de pessoas empobrecidas na rua, carregando um carrinho com muitas mercadorias à prazo com juros. Eram imigrantes que não sabiam falar português ou falavam poucas palavras, mas com sotaque diferente”, explica Ruben. “Havia toda essa questão da diferença, criava uma relação do eu com o outro, né? E ainda mais que os imigrantes com poucos recursos acabavam expressando-se, digamos assim, com roupas desgastadas.”
Construiu-se, então, a imagem do “imigrante sem higiene pessoal, pobre e que se utilizava do comércio para se aproveitar da população mais ingênua do campo para obter lucros” — a eles, deu-se o nome de galegos.
Se hoje o termo refere-se ao vendedor de porta em porta, ou a uma pessoa branca, de olhos bem claros, antigamente era extremamente ofensiva para os libaneses. Tanto que encontram-se registros policiais de brigas físicas entre comerciantes libaneses e locais após serem chamados de galegos, comenta o historiador.
Foi também para desvencilhar-se desses preconceitos que a comunidade fundou o Clube Líbano Brasileiro e uniu-se em diversas campanhas de interesse público. Por muitas décadas, a chamada colônia libanesa ocupou rotineiramente as páginas do jornal, seja pela influência política, seja em especiais sobre a imigração.
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Nagib Girgis Kerbage e Jamile Hachem nunca voltaram ao Líbano, muito menos os seis filhos. A saudade latente manifestava-se ao ouvir discos, ora fazendo os pais chorarem, ora conduzindo-os a dançar pelos corredores. Por muito tempo, mantiveram contato com os parentes usando um rádio instalado pelo pai, com uma antena enorme. Mas um dia, durante a Guerra de 70, Nagib soube de uma bomba que explodiu na casa dos familiares e, pela tristeza, deixou de buscar notícias.
Ao relembrar dos pais, Elias compartilha a teoria de que a tristeza foi a causa do câncer desenvolvido por ambos. Jamile foi a primeira a partir: desde então, Nagib fez voto de silêncio. Passou quatro anos falando o mínimo, por vezes contemplando a paisagem sem manifestar as dores e sofrimentos, até também falecer.
Muito adultos os filhos Kerbage lograram contatar a família do Líbano, por meio do Facebook. Usando ferramentas de tradução, Elias conversa com uma prima materna, responsável por mostrá-los como a casa da avó segue intacta e o terreno deixado à mãe Jamile pelo avô permanece aguardando os parentes. “Eu sinto muito a falta dos meus pais”, divide o filho. “Lamento não terem vivido a facilidade de comunicação de hoje.”
Em 2019, os Kerbage planejavam viajar ao Líbano para finalmente conhecer a terra natal, a família e as paisagens que os moldaram. Infelizmente, veio a pandemia e, depois, a guerra envolvendo Israel e o Hamas. Agora, há poucas esperanças de um dia respirar o ar libanês.
O problema é que esta talvez seja a última geração que mantenha a tradição e memória libanesa em vida, comentam os irmãos. “A tendência mesmo é abrasileirar e esquecer, infelizmente”, define Elias. Segundo ele, a descendência libanesa no Ceará é grande, mas a cultura foi perdida. A comunidade já não é mobilizada como no século passado, e os jovens aos poucos quebram tradições milenares, como a do primogênito carregar o nome do pai como segundo nome.
A preservação da cultura sempre foi uma preocupação entre os imigrantes libaneses. Por isso, estimulavam o casamento entre os patrícios, mas o hábito era especialmente difícil em cidades menores como Fortaleza. Marta e Elias, por exemplo, são casados com cearenses: “Como é que a gente vai impor a cultura libanesa para o brasileiro?”, explica o homem.
Na tentativa de resgatar as memórias dos imigrantes, Elias projeta instaurar o Dia do Imigrante na Paróquia Nossa Senhora do Líbano, como integrante do conselho da igreja católica greco-melquita. A ideia é convidar não apenas os libaneses, mas também representantes de outras nacionalidades migrantes no Ceará.
Ponto de vista
por Elias Hachem Kerbage*
Líbano querido, quantas saudades tenho de ti, me sinto um estranho nessa terra pois sei que em ti estão minhas raízes, sou uma semente levada pelo vento além Atlântico.
Nunca vi teus cedros com os olhos do corpo, ó Montanha Branca, mas os olhos de minha imaginação me fazem transbordar em êxtase e me vejo correndo em tuas florestas majestosas, divinas: um convite a atingir o céu para onde orgulhosamente apontas. Nunca senti teu cheiro com o olfato do corpo mas minha alma aspergêia em meu ser tua essência...
Nunca saboreei dos frutos de teu solo mas sonho com tuas uvas, embriagando-me em pensamento com teus vinhos.
Nunca bebi das águas de tuas fontes ou mesmo experimentei o sabor do sal das águas de tuas praias mas me sinto saciado em saber que esperas por mim e agraciado, por saber que tu queres me envolver com o cristal de tuas águas.
Nunca vivi tuas noites festivas, nem participei de teus festivais de Baalbeck, Byblos ou Beiteddine mas meu coração vibra ao som de tuas músicas e salteia ao ritmo de tuas danças.
Sonho realizando o desejo de Gilbran Khalil e entrar silenciosamente no cemitério de Beirute, caminhar devagar para que meus passos não perturbem a sonolência da morte, parar, humildemente, diante do túmulo de Selma Karamy e murmurar, Gilbran, teu nome, num suspiro profundo e dizer para mim mesmo: aqui estão enterradas todas as esperanças de Gilbran que viveu como escravo do amor além mares, aqui ele esgotou suas lágrimas e desprendeu a sorrir. Eu te entendo, Gilbran, pois sou escravo da saudade além mares, e espero um dia reaprenderei a sorrir o riso solidário do amor, único sentimento que transporta o homem ao eterno e divino.
Saudade de percorrer o vale de Kadisha, teu vale sagrado, e orar em cada corredor dos teus santos mosteiros, me perder em tuas cavernas e me encontrar no teu seio Líbano amado. Gigantesca vontade, queima-me o peito, de sentir a santidade do mosteiro de São Marun de Annaya, pois tenho certeza, me encontraria com a aura de são Charbel, santo amado e inspirador querendo me abençoar.
Tudo isso porque sei que a minha história está nesse rincão precioso e amado que nunca conheci nem senti, por isso me sinto incompleto como se faltasse uma parte de mim mesmo, preso num casulo de saudades que espero um dia me libertar e sentir-me pleno. Embora meus ancestrais repousem em teu sagrado solo sinto que estão me esperando, em espírito; sou uma semente trazida para o Brasil, aqui germinei, cresci, frutifiquei, porque a árvore de onde eu vim era boa, mas sou como uma tâmara que cresceu numa floresta, aqui não é meu habitat.
Quero no inverno rolar em tua neve, no verão ouvir o borbulhar de tuas aguas que descem das montanhas lavando e renovando teu solo, e quero banhar-me no teu mar ao sabor de teu sol. Na primavera, abraçar todas as tuas flores, deliciar-me com seus perfumes e no outono sentir teu calor.
Ah! Quantas saudades do Líbano que nunca vi, do Líbano que nunca ouvi, do Líbano que nunca saboreei... Um dia retornarei a ti e sei que me acolherás como filho pródigo que a casa do pai retorna, então, em teus braços, experimentarei do teu amor e te mostrarei o quanto te amo.
*Elias Hachem Kerbage é odontólogo de ascendência libanesa